Tiranicídios

 

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Marcos Paulo Fernandes de Araujo

Estivemos, há não muito, em época de eleições no Brasil. A ocorrência deste evento costuma suscitar inevitáveis discussões em torno de um assunto que desde há muito tempo se tornou dominante nos debates políticos, como bem expresso pela frase de Montesquieu: “Os políticos gregos que viviam no governo popular não reconheciam outra força que os pudesse sustentar, a não ser a da virtude. Os de hoje não nos falam senão em manufaturas, em comércio, em finanças, em riquezas[…].”[1]

Em meio à miríade de subtópicos pertencentes a esse universo temático, vemos um que sempre se destaca, ao lado de seu primo, os juros. Vilã da história dos povos no século XX, já foi acusada de tudo, por toda a parte, desde a Alemanha, onde é apontada como uma das responsáveis pela queda da República de Weimar, até a Argentina de Perón e Ménem – e se me limito apenas aos finalistas da última Copa do Mundo, é para evitar a fadiga do leitor.

Utilizada por muitos governos nos dias de hoje para disfarçar efeitos insólitos de políticas sociais insustentáveis, a inflação consistia, na opinião de Juan de Mariana, num dos elementos do governo tirânico, cujo ocupante poderia ser – defendia também o jesuíta – não apenas justa, mas honradamente, assassinado pelo bem da pátria.[2]

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O descontentamento gerado por tal medida é plenamente justificado. Afinal, a inflação induzida (fiat inflation) desvaloriza o dinheiro em um determinado país, corroendo o valor das reservas pessoais. Trata-se, em palavras mais diretas, pura e simplesmente de roubo e, portanto, uma violação intencional da justiça comutativa (a justiça que se dirige às coisas e que apóia em bases aritméticas). Ela é ainda agravada pelo fato de que também afeta a justiça distributiva, nestes dias da informação rápida e cambiante. Nestas situações, os mais ricos, que geralmente têm acesso mais rápido a esse tipo de informação, costumam auferir vantagem em detrimento dos mais pobres.
Muito embora essa conduta, penso eu, não leve mais ninguém a advogar hoje em dia o tiranicídio de quem a pratica, é certo que as altas na inflação continuam a figurar entre os motivos a provocar maior descontentamento da população em um país por elas afetado; não sem razão.

Mas não é o fenômeno inflacionário o tema central deste breve texto, mas sua relação com um outro tipo de prática governamental mais daninha, baseada no mesmo princípio e que, aparentemente, só ultimamente tem começado a ser notada por uma parcela mais ampla do eleitorado – não obstante já fosse ilustrada por alguns livros de ficção distópica no século passado e que talvez já viesse sendo praticada há muito mais tempo, remontando, possivelmente, até os sofistas na Grécia antiga.

Ela consiste, semelhantemente ao que acontece com a inflação, na alteração dos signos representativos das coisas, mas é muito mais perniciosa, pois, em vez de se referir apenas ao valor de troca desses objetos, estende-se por praticamente todo o domínio da realidade: trata-se da alteração dos signos representativos da realidade em geral – as palavras –, tão bem retratada por George Orwell nos seu romance 1984, em que apresenta a ‘novilíngua’, um dos principais instrumentos de manipulação dos cidadãos pelo ‘Ingsoc’.

A inflação, segundo Mariana, ocorre quando o Estado aumenta desmesuradamente os gastos públicos.[3] De igual maneira, pontifica Hayek: “Os governos, em todas as épocas e países, têm sido a causa principal da depreciação da moeda.”[4] Já o economista alemão Guido Hülsmann adverte para o fato de a inflação haver funcionado, desde o início da era moderna, como uma das principais ferramentas de concentração de riqueza (e poder), nas mãos dos governantes e, portanto, de centralização do Estado[5].

A ‘novilíngua’, de igual maneira, é conseqüência do aumento do Estado; não em extensão, mas em intensão: ela deriva de uma expansão da sua área de ingerência, pela pretensão de abarcar todos os aspectos da realidade – sejam eles econômicos ou não. Isto se reflete na tendência surpreendentemente ubíqua, nos últimos anos, do aparecimento de leis que não apenas permitem condutas outrora gravemente interditas e até criminalizadas, mas até mesmo as incentivam, às escâncaras, por meio de políticas governamentais. Isso vem ocorrendo em um sem número de casos como o aborto, a prostituição, a equiparação de todo tipo de relações que não são casamento a ele, etc.
Tal invectiva sobre a história, os costumes e, não raro, a própria natureza do gênero humano só pode ser exercido mediante a violência sobre as palavras e o amplo emprego de expressões eufemísticas, como ‘interrupção voluntária’, hiperbólicas como ‘homofóbico’, metafóricas como ‘profissionais do sexo’ ou ‘direitos dos animais’, quando não tão vagas e imprecisas como um certo discurso proferido a respeito do dia das crianças.

Esse tipo de fenômeno, que alguns fingem não perceber, pondo a cabeça sob o solo ao modo de avestruzes, deveria gerar uma muito maior revolta do que o primeiro. Afinal, se a moeda é a base da justiça comutativa, na palavra se baseia toda a justiça legal e, portanto, todo o Direito Político.

No livro Abuse of language, Abuse of power, o filósofo alemão Josef Pieper demonstra como o abuso da linguagem, usada então não mais para comunicar, mas para a manipular – por meio de propaganda, livros, progamas de TV, reportagens etc. – as opiniões e sentimentos das pessoas, afeta a esfera pública. Quando nos referimos aos mass media, à indústria do entretenimento, diz ele, “não estamos transitando por um território neutro, separado da realidade política e intitulado, digamos, ‘a imprensa’ ou ‘o meio cultural’, ou ‘o universo literário’, como for. O discurso público, a partir do momento em que se torna neutro em relação a um padrão estrito de verdade, torna-se, por sua própria natureza, apto a servir de instrumento nas mãos de qualquer governante a fim de promover todo tipo de planos de poder. O discurso público separado de todo padrão de verdade cria, na medida em se torna prevalente, uma atmosfera de prostração e vulnerabilidade epidêmicas à ascensão do reinado de um tirano.”[6] É a isso que se referia o filósofo alemão Dietrich von Hildebrand ao afirmar que a principal dificuldade de lutar contra o nazismo, era o fato de essa luta se tornar extremamente entediante.[7]

Infelizmente, não se vê ainda, nos dias de hoje, uma reação à depreciação da linguagem de igual magnitude àquela que se opõe à depreciação da moeda. De fato, pode mesmo ser verdade o que um homem polêmico por aí anda dizendo, que quanto mais burro se fica, menos se percebe esse fato, ao passo que o aumento de preços é mais perceptível, mesmo quando ocorre por meios sutis como alterações na quantidade e, mais ocultos ainda, qualidade do produto. Todavia, se aquele que altera o signos representativos das mercadorias estaria sujeito ao tiranicídio, na opinião de Mariana, o que não diria o insígne escolástico espanhol destes que nos procuram vedar o próprio acesso à realidade?

[1]MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, Barão de. O Espírito das leis. Liv III, Cap. III.
[2]MARIANNA. Tratado da moeda. Tradução de Luiz Astroga (no prelo). Cf. também, do mesmo autor. Del rey y de la institución real: Tomo I. Madrid: Publicaciones Españolas, 1961, p. 111.
[3]CHAFUEN, Alejandro. Faith and Liberty.
[4]HAYEK. Fundamentos da liberdade, p. 397.
[5]HÜLSMANN, Jörg Guido. The ethics of money production, p. 176.
[6]PIEPER, Josef. Abuse of language, abuse of power, p. 30-31.
[7]Cf. o artigo sobre Hildebrand escrito por Carl Trueman em First Things: http://www.firstthings.com/blogs/firstthoughts/2014/11/faith-truth-and-defiance

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