Gustavo França*
Tarefa que urge no ambiente cultural brasileiro é a recuperação da produção de ideias. Lamentavelmente, o debate cotidiano em nossas terras vem sendo essencialmente marcado por ataques pessoais, xingamentos, picuinhas, exercícios de vaidade, rótulos, jargões, dicotomias simplificadoras e nenhuma ideia, nenhuma autêntica atividade intelectual de estudo sério e de contemplação dedicada das complexidades da realidade. Imperam as rixas de Facebook e escasseiam as teses de doutorado.
Pode-se, de imediato, pensar na responsabilidade dos grupinhos de culto ideológico da esquerda festiva, que tomaram de assalto os meios culturais do país, com sua incorrigível mania de todas as questões complexas reduzir a um esquema binário de opressores/oprimidos, bons/maus (em geral, encaixam-se na definição de Orwell dos homens que “pensam em slogans e falam em balas de revólver”).
Todavia, a nossa denominada direita em nada contribui para alterar o nível do debate intelectual. Mergulhados até o pescoço na “guerra cultural”, ditos liberais e conservadores incorporaram a linguagem do campo de batalha e os esquemas de amigo/inimigo, abandonando a construção de uma cosmovisão reflexiva fundada nas verdades da ordem natural, nos padrões morais absolutos, no Estado de direito, nas liberdades individuais e econômicas. Representada na mídia por colunistas dados a muitos pontos de exclamação e a poucos argumentos, a direita tupiniquim, com honrosas exceções, oferece chiliques e diatribes antiesquerdistas, anticomunistas, antipetistas e nenhum projeto de sedimentação cultural em valores civilizacionais.
O objetivo é sempre “destruir o inimigo”, “atropelá-lo no debate”. Inexiste preocupação em formar pessoas de caráter, comprometidas com uma vida reta, que enfrentem o mal fazendo apenas o bem. A busca pela conversão de todas as almas e a construção de uma comunidade sólida e solidária são tão avessas ao pragmatismo, ao utilitarismo, ao materialismo dessa direita raivosa quanto aos erros evidentes da esquerda festiva.
Em todo esse quadro, o que se afigura é a falta, em nossa sociedade, de verdadeira formação intelectual e moral de cada pessoa. A boa educação deve ensinar a cada um que o objeto de nossas atenções vitais não são as contingências políticas e econômicas do nosso tempo, mas as verdades eternas (aquilo que permanece, que sobrevive a todas as aparentemente caóticas voltas do mundo). Como já ensinou Aristóteles, no magnífico livro X de sua “Ética a Nicômaco”, a vida excelente para o homem é a vida contemplativa, em que ele eleva a sua dignidade ao se tornar autônomo de todas as materialidades mundanas, erguendo-se à transcendência sobrenatural. De fato, a vida intelectual do homem não é para o ativismo dos ringues de luta, mas para a contemplação dos padrões objetivos de normatividade: a verdade, o bem e a beleza.
Ilustra bem essa problemática a total desvinculação (e essas observações não mais se limitam à realidade brasileira) entre o que podemos chamar de ciências práticas (Direito, Política, Economia, Sociologia) e a Ética. Todo o estudo da conduta humana e das instituições sociais deveria se constituir de conclusões extraídas dos princípios transcendentais do agir, compreendidos pela teoria moral, cotejados com a análise fática. Refiro-me à minha área, ao Direito. Se Platão mandou inscrever na entrada de sua Academia “Que aqui não entre quem não for geômetra”, eu poria na entrada de cada faculdade de Direito “Que aqui não entre quem não for filósofo moral”. Estudos básicos de Ética deveriam ser pré-requisito para o ingresso em qualquer escola superior jurídica. O resultado de não ser assim é uma visão do direito apartada de seus fundamentos numa ordem universal. O ensino jurídico hoje nada fornece para uma formação humana, oscilando entre a repetição de tecnicismos bestializantes e a ideologização ametódica.
Também a política jamais poderia ser considerada senão como o reflexo institucional e orgânico da ordem interna do espírito. A visão maquiavélica de uma política que se basta pela pragmática do poder é a responsável pelas aberrações da arena pública contemporânea. E que dizer da economia? Em suas duas origens remotas, ela nasceu da pena de moralistas: primeiro, dos teólogos da escolástica tardia no século XVI, que começaram a refletir sobre temas econômicos a partir dos estudos clássicos da ordem natural; segundo, de Adam Smith, professor de Filosofia Moral da Universidade de Glasgow, cujo curso durava quatro anos, e “A riqueza das nações” era parte do último, em que se discutiam aplicações práticas dos fundamentos filosóficos longamente aprofundados.
A dissolução dos pilares teológicos, filosóficos, lógicos que integram o conhecimento pelo triunfo de visões de mundo pragmáticas, materialistas e relativistas, típicas da pós-modernidade, esvazia a formação cultural e moral dos indivíduos, povoando a sociedade com os “homens ocos”, de que fala T. S. Eliot.
Portanto, está clara a necessidade de um retorno às tradições de pensamento que ergueram a nossa civilização. Aqui há uma tentação a ser evitada: o que posso chamar de tentação reacionária. O reacionário é um utopista (tanto quanto o revolucionário), mas sua utopia está num passado idealizado. Enquanto o conservador pensa em princípios eternos que se amoldam a todas as realidades, respeitando a diversidade dos tempos, o reacionário quer o engessamento de uma realidade passada, inclusive em suas contingências. É o caso de alguns tradicionalistas, que enxergam a Idade Média como a mais perfeita (e única possível) manifestação da cristandade. Devemos aceitar a existência que nos é dada, compreendendo que em todos os momentos é possível vislumbrar, a seu modo, os padrões eternos de normatividade.
Se o estado de coisas é alarmante, traz uma grande esperança o retorno da revista Dicta & Contradicta e deste site, canais desde o seu nascedouro comprometidos com a produção de grandes ideias e com a formação intelectual. Para mim é um imerecido orgulho fazer parte desse trabalho. Neste espaço que me cabe, comprometo-me a tratar sempre de ideias e nunca de disputas pessoais. Aos que querem travar a guerra cultural responderei com a serenidade de quem busca a verdade e não a vitória.
*Gustavo França é graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista Dicta & Contradicta
Excelente texto para dar o pontapé inicial à nova Dicta
Muito bom, França
Excelente texto. Mas o que fazer para ministrar a dosagem correta de moral na sociedade brasileira?
Excelente texto. Mas o que fazer para ministrar a dosagem certa de moral na sociedade brasileira?
Ótima notícia, boa sorte para a nova fase da Dicta!