Uma perda de tempo?

E a Economist, uma das poucas revistas no mundo que ainda não perdeu o padrão de qualidade, apesar de algumas bolas-fora recentes (p.ex: a reportagem sobre o Brasil brasileiro que inflou o ego dos Smierdiakovs da vida), resolveu publicar uma matéria que prova que o doutorado acadêmico é uma perda de tempo.

Como todo bom texto que se ampara em fatos e estatísticas, a tese é provada de forma assustadora e mostra que talvez eles estejam certos. No meu caso, que faço doutorado em uma universidade da qual reclamei a minha vida inteira, não me comoveu nem um pouco.

O motivo é simples: não entrei na vida acadêmica por motivos profissionais – leia-se: ganhar mais dinheiro – e sim porque precisava de mais disciplina na minha vida de estudos. Atualmente, no Brasil, existem duas tendências opostas e igualmente desagradáveis: ou o sujeito resolve ficar fora da universidade e parte para o autodidatismo – com todas as falhas de formação que isso implica – ou o mesmo infeliz resolve ir à universidade para suprir o seu vazio existencial e vira mais um títere nas mãos de ideólogos, epígonos e outros estúpidos, intitulados sabe-se lá como de “professores”.

São dois exemplos de estupidez que não chegam a lugar algum – e o texto da Economist parece defender um terceiro, o da busca pela segurança material e financeira que uma vida de estudos pode proporcionar em uma carreira profissional.

Ora, meus amigos, a vida contemplativa, a bios theoretikos do velho Ari, não tem nada a ver com isso. Uma vida de estudos é feita com muita disciplina, persistência e fortaleza moral. Você precisa realmente estar possuído por um problema que o incomoda como um espinho para que resolva dedicar sua vida a analisá-lo sem misericórdia. E as grandes vantagens de um mestrado e de doutorado são as de confrontar e comparar outras visões de mundo em que se é obrigado a debater sem impor a sua visão aos outros.

Aí vem um outro problema, que atinge tanto o Brasil como o resto do mundo: ninguém mais sabe debater um mísero assunto. Tudo não passa de um arremedo de opinião. Nada mais é apoiado em princípios e sim apenas em rivalidades – que, por sua vez, começam a criar falsos princípios. Mas isso é um outro assunto que deve ser discutido em um outro dia – e não tenho a mínima paciência para fazer isso agora.

Se um doutorado é uma perda de tempo? Negativo, caro leitor. Agora, se você busca somente o sucesso e esqueceu que a roda da fortuna também apronta das suas, não posso fazer mais nada para ajudá-lo. Good night and good luck.

11 comentários em “Uma perda de tempo?

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  2. Caríssimo.

    Li o texto todo da “The Economist” e tenho alguns comentários, como sempre, desprezíveis.

    1) De início, seu comentário de 3 dúzias de linhas atinge o ponto central da questão do valor de uma pesquisa intelectual mais do que todo o universo tolo e enfadonho das estatísticas e do mercado. A matéria só toca no ponto essencial de que o que move a vida contemplativa é um páthos, para levemente dizer que é algo “subjetivo” que “objetivamente” nada significa já que os próprios estudantes estão mentindo para si mesmos.

    2) Um doutorado, índice de uma pesquisa, é parte de um percurso que se faz, na maioria das vezes, sozinho. Sobretudo em humanas, por mais que se possa dizer que o debate é parte integrante do processo, bem sabemos que o que ocorre de mais importante se dá “do lado de dentro”. Assim, de saída, só pode emitir um juízo de valor acerca do doutoramento a partir de critérios como “espaço no mercado” ou “diferença de ganho entre mestrado e doutorado” quem nem chegou perto do que envolve uma pesquisa nesse nível.

    3) Aqui, pode-se dizer que sou ingênuo; mas quero ir mais longe: a verdadeira ingenuidade está em quem, subvertendo a vocação primordial da vida teorética que deveria se hipostasiar sobretudo na universidade, encara a vida intelectual como meio e não como fim. De fato, a subversão a que me referi estende-se para o papel social da universidade como mola propulsora da carreira ou das finanças. Assim, ingenuidade é achar que a vida intelectual (e a universidade) é para todos…

    4) Para além disso, há um erro lógico no movimento do texto. Ele faz algo como assumir um princípio (que a validade do doutorado estaria em seu reconhecimento social e profissional), coleta dados que mostram que, de fato, sob este aspecto, ele é inútil e, brilhantemente, chega à conclusão que ele não serve pra nada. Algo como a crítica de Nietzsche às ciências: ela esconde algo atrás do arbusto, dá a volta e se encanta por ter encontrado algo ali que se encaixa exatamente em suas expectativas.

    O que ocorre é que o princípio não é nada óbvio. Um doutorado não é para dar um “up” na carreira e nem deveria ser. Se se quer apontar que a remuneração e o reconhecimento não são condizentes com o tempo e a profundidade da formação, ok, mas aferir daí a um juízo de valor que não o estritamente referente a tal princípio (duvidoso), é uma extrapolação indevida.

    5) Por último, mas não menos importante, se o autor do texto tivesse pesquisado (no sentido rigoroso que pouco tem a ver com recolher a doxa das pessoas), saberia que cristãos jamais poderiam “comprar” sua entrada no céu (da Igreja), posto que ela nunca a vendeu. Lutero que não pesquisou direito sobre o que são indulgências.

    Abs.
    G.

  3. Para mim a questão mais importante na defesa da vida acadêmica, e é uma questão que nem o texto coloca e nem o Martim teve a coragem de confrontar de frente é: os acadêmicos modelos, aqueles que realmente não querem o sucesso no mercado, eles ao menos estão aprendendo algo e se aproximando daquela “bios theoretikos”?

    Para a imensa maioria a resposta é provavelmente não. Estão atrás de uma posição numa hierarquia pífia e do respeito de seus colegas. Tanto que sempre inventam mais distinções irrelevantes, como o “pós-doutorado”.

    A vida intelectual, como o Gabriel bem disse, não é meio. Mas a academia é. E quando ela, e os processoes que a mantêm viva, são elevados à categoria de fim, daí temos uma perversão tão odiosa que dá medo até de olhar. O perfeito acadêmico, o sujeito que abre mão de tudo por um estudo técnico de alguma questão menor e deixa de lado a busca da sabedoria.

  4. Martim,
    Também li a matéria do “Economist”, embora não tenha mestrado nem doutorado.
    No meu tempo, aqui no Brasil não existia o primeiro e o segundo, em pouquíssimas faculdades, mas apenas como uma espécie de ornamento intelectual.
    A forma mais comum de obtê-lo era fazendo um concurso de catedrático ou de livre docente; com a aprovação, o título vinha junto.
    Porém concordo com o Joel (já está chato eu dizer isso aqui na “Dicta”), sobretudo porque me lembro da aula inaugural de um breve curso de especialização que fiz nos anos 60 na Harvard Law School, no qual o Dean, nos apresentando a universidade disse mais ou menos o seguinte: “aqui nós não temos alunos ruins; temos somente alunos ótimos, muito bons, e bons! Os primeiros nós retemos como professores; os segundos, vão ser juízes da Suprema Corte; e os terceiros vão ser advogados, ficar milionários e manter a universidade com as suas generosas doações”.
    Como vê, para o Dean da HLS, o “ótimo”, o “doutor”, era o que perseguia a sabedoria, obtendo-a, ensinando-a e, assim, alcançando o sucesso intelectual; não para guardá-la e usá-la como instrumento de aquisição do sucesso material. Este último era apenas o “bom”.

  5. Virgilio,

    No seu entender, que catástrofe aconteceu com Harvard para o saudoso William Buckley afirmar que “preferia confiar o controle do governo americano às 200 primeiras pessoas da lista telefônica em vez da universidade de Harvard”?

  6. Bem, o artigo da The Economist analisou o assunto sob o seu aspecto… econômico, né? Como era de se prever, aliás. Com certeza não é esse o mais nobre e elevado aspecto da questão; mas é um deles, e evidentemente tem, sim, a sua importância.

    O estilo de um vida de um intelectual tende a ser caro. Há livros e discos para comprar; concertos, filmes, peças e espetáculos para assistir; viagens para fazer; cursos para frequentar. Sem contar as necessidades universais de comer, vestir, ir e vir, consultar o médico e manter um teto para si e para a família. O dinheiro para tudo isso não é pouco e tem que sair de alguma fonte, e é melhor que seja lícita e honrada.

    Não vejo absolutamente nada de ilegítimo na expectativa que certos indivíduos com vocação intelectual possam ter em tentar conciliar a sua vocação com as suas necessidades econômicas dedicando-se à carreira universitária. Eu sei que nem todos conseguem satisfazer ao mesmo tempo as exigências intelectuais de sua vocação com as exigências profissionais da academia; e considero plausível que, nos dias de hoje, talvez a maioria não consiga. Mas não diria que ninguém seja capaz disso. E, em todo caso, esse é também o mesmo dilema do autodidatismo, da vida intelectual de fim de semana e, enfim, de todas as alternativas concebíveis: de um jeito ou de outro, dar conta do feijão e do sonho ao mesmo tempo não é nada fácil (a não ser, talvez, para um punhado de herdeiros, parasitas e outros felizardos). E quem foi que disse que viver dando sentido à vida é fácil?

    Para aqueles que estão pensando em tentar conciliar sua vocação e suas necessidades por meio de uma carreira acadêmica, esse artigo da The Economist traz informações relevantes e melancólicas.

  7. Caro Henrique,
    Buckley quis fazer piada e assim fortaleceu a campanha da direita burra americana (existe também a direita inteligente, embora os esquerdóides neguem) contra o liberalismo intelectual/político das grandes universidades.
    Mas eu admito que a qualidade de Harvard, e de outras, decaiu muito depois que andei por lá há mais de 40 anos. Creio que a causa disso é a peste “politicamente correta” que assola o mundo civilizado.
    A besteira de que universidade “é pra todo mundo” incrementou muito a distribuição de bolsas e a busca do que os “politcorrect” chamam de “diversidade” (o filme “Legalmente Loira” mostra isso de forma ridícula), sem indagar dos propósitos genuinamente intelectuais dos postulantes às novas “políticas”, seja para fins acadêmicos seja para fins profissionais.
    A patrulha dos “politcorrectfascists” chegou ao absurdo de demitir um reitor de Harvard porque ele disse estar preocupado com o fato de haver poucas mulheres nos cursos de engenharia e ciências exatas. As feministas bradaram que ele dissera serem “as mulheres mais burras do que os homens em matemática” e o reitor foi demitido.
    Têm-se que usar sempre “he or she” nas aulas e palavras como “nigger” e “spook” estão proíbidas. A coisa vai por aí afora e não é de admirar que o ambiente universitário americano tenha se deteriorado tanto desde os anos 60.
    É isso aí.

  8. A vantagem de uma especialização como mestrado e doutorado se resume à disciplina. O aluno vê-se obrigado a discernir o objeto de estudo, exauri-lo, escrever a tese com objetividade. O ganho é na disciplina, na faculdade de melhor escrever; na bibliografia talvez, que seu orientador, com mais experiência de estudos, terá em mãos.

    Quanto à especialização no Brasil, nesse caso específico há um grande problema: as bibliotecas. Ausência de obras fundamentais, provincianismo de nossos bibliotecários – senão preguiça! -, resumos fáceis de todo um tema ao redor de teses francesas e americanas. O mundo intelectual na cabeça de um pós-graduando brasileiro médio se resume a uma dúzia de universidades anglo-saxônicas, a Sciences Po, a Sorbonne, talvez Salamanca. E ignoram grandes obras alheias ao circuito acadêmico (eu conheço mais de um estudante de História da USP que nunca ouviu falar de Spengler, por exemplo). Outro problema nosso são as gerações anteriores. Quando eu ouço do Prof. Franklin Leopoldo, tido em alta conta no e mui requisitado para orientações, que ele pretende reservar sua aposentadoria para se aprofundar em Sartre…

    Se é o caso de citar exemplos de estudiosos cuja erudição é incontestável, que há 3 décadas já se lamentavam quanto ao ensino e à carreira acadêmica, eu cito um, conhecido de todos, cujas obras se encontram em qualquer biblioteca. Raymond Aron, numa entrevista na década de 70, dizia que ao sair da École Normale Supérieure, onde foi o primeiro aluno na entrada e na saída, atravessara uma crise existencial. Teve em conta que estudara com os melhores professores, num dos melhores centros de estudos do mundo na época, e não sabia quase nada sobre a vida do homem comum, sobre a sociedade, sobre a realidade do Mundo como ele é.

  9. Pingback: O Drama de Fugir à Deserção | Vivências | Protosophos

  10. Martim, gostaria muito mais de saber sobre sua própria experiência em seu atual doutorado, ao invés de conjecturar sobre suas vantagens de desvantagens. E aí, ele está correspondendo ao que você queria?!

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