Verdade ou complacência?

Christian Smith, sociólogo da Universidade de Notre Dame (Indiana, EUA), lançou no fim do ano passado um livro sobre uma suposta fraqueza da sociologia contemporânea: o fato dela, na maioria de suas vertentes, não tratar dos seres humanos em toda sua complexidade, mas reduzi-los a moléculas sociais, maximizadores de recompensa, máquinas de reprodução genética, constructos fluidos da linguagem e do discurso, etc; ou seja, visões que o próprio sociólogo rejeita quando vive sua vida normal, se ele tiver um mínimo de sanidade. Aqui, uma entrevista em que Smith explica seu livro.

Simpatizo imensamente com a causa; só tenho minhas dúvidas quanto à relevância da proposta. Em que, exatamente,  a sociologia mudaria caso considerasse o papel do verdadeiro amor na constituição do indivíduo? Há algum resultado interessante que a abordagem “realista crítica” (que é como ele se define) tenha a apresentar que a torne superior às demais? No fundo, acho que minha resistência ao discurso de Smith está em que não me convenço de que o debate metodológico e epistemológico tenha grande importância para o futuro das ciências. Os cientistas seguem trabalhando enquanto os filósofos da ciência discutem em vão o que os primeiro fazem, deixam de fazer ou deveriam fazer. Esse debate é importante para a visão de mundo de cada um; um sociólogo evolucionista que realmente veja sua vida como uma corrida darwinista falha como ser humano. Mas seria isso um bom motivo para recusar os insights que a sociologia evolutiva (que é só um exemplo; poderia falar de outras vertentes)?

A posição de Smith é muito confortável, pois ela apela, de partida, ao senso moral do leitor ou interlocutor. Quem, afinal, defenderia a teoria que reduz o homem a uma ameba à outra que oferece nada menos do que os mistérios da pessoa humana e do amor verdadeiro? Mas e se essa suposta superioridade moral e espiritual se revelar uma mera casca de boas intenções que esconde um vazio de contribuições concretas? Por exemplo: a visão positivista é de que o cientista deve se anular enquanto pessoa para ser o mais objetivo possível. Segundo Smith, isso é um erro, pois “o melhor da ciência baseia-se precisamento no conhecimento humano pessoal, no compromisso pessoal com a verdade, acima, por exemplo, do sucesso na carreira…”. E por acaso algum “positivista” diria que o cientista não deve colocar a verdade acima de tudo? O que Smith chama de frisar o lado pessoal da ciência o positivista chama de anular o lado pessoal, mas ambos falam da mesma coisa. Tomemos ainda sua opinião sobre o individualismo excessivo da sociologia contemporânea, cuja conclusão prática seria a ênfase exagerada no direito negativo de cada um de não sofrer interferências dos demais em sua vida. Dado que, hoje em dia, o Estado interfere em absolutamente todas as áreas da vida humana (com exceção do sexo!), e num grau maior do que em qualquer outra período, fica difícil de engolir tal diagnóstico. Entendo o que inspira tal comentário: a percepção de que as pessoas são muito egoístas, pensam apenas em si mesmas; mas é muito ingênuo crer que o problema resida na opção metodológica dos sociólogos, ou ainda num inexistente liberalismo político que decorreria dela.

Há casos em que só é possível explicar um fenômeno levando em conta a racionalidade humana, e há casos em que o modelo da molécula num sistema hidrodinâmico funciona bem. O que não quer dizer, obviamente, que os indivíduos sejam, em qualquer momento, mera molécula. Ocorre que há situações que, para serem entendidas, não demandam profundas meditações sobre o amor verdadeiro. Simpatizo com a causa de Christian Smith (evitar reducionismos que alimentam falsas visões sobre o ser humano), mas me parece que sua abordagem seja mais importante para o desenvolvimento moral e espiritual dos seres humanos – inclusive dos cientistas – do que para a ciência em si.

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