Vinte anos depois

por Nelson Ascher

Há várias maneiras de abordar os eventos de 1989, que entraram para a história como a queda do Muro de Berlim. Para começar, junto com o desmantelamento, dois anos depois, da União Soviética, eles representam o fim da Guerra Fria, o conflito que, depois da Segunda Guerra Mundial e por quase meio século, dividiu o planeta em dois blocos antagônicos. Eles apresentaram também, para quem tivesse a mente e os olhos abertos, os resultados do maior experimento de engenharia social realizado não com ratinhos de laboratório, mas com gente de verdade. Quando acompanhados de perto, eles pertencem ademais à história de cada nação, de cada uma das sociedades envolvidas. Abordados sob esses variados ângulos, os fatos nos oferecem lições diversas e complementares, um autêntico leque de narrativas que têm em comum, todas elas, a ausência de um final feliz.

A Guerra Fria, como se sabe, foi mais do que um simples embate entre dois blocos em busca da hegemonia. Desde o começo, talvez com mais cinismo entre as lideranças e com mais sinceridade e empenho entre os militantes, ela representou o conflito não só de duas visões de mundo ou de duas formas de organização sócio-política. Ela contrapôs, isto sim, duas concepções da própria natureza humana. Embora –graças a uma espécie consensual de amnésia– elas continuem existindo e se digladiando quase como se todas aquelas décadas não tivessem existido nem produzido resultados concretos, a vantagem de sua competição aberta foi justamente a de propiciar uma comparação visível e mensurável de ambas. Isto se deu porque, desde sua imposição na Rússia e, em seguida, nos países vizinhos, os partidários da engenharia social, isto é, os comunistas, fizeram previsões e promessas verificáveis a olho nu.

O adversário que, recorrendo a um termo duvidoso, reducionista e uniformizador da heterogeneidade, chamavam de capitalismo estava fadado a se autodestruir por meio de uma sequência acelerada de crises cada vez mais graves. Já o comunismo, livre de contradições internas por ter reorganizado as forças produtivas numa base racional, assegurava, se mais nada, pelo menos uma fartura material bem distribuída. Uma vez feitas, era impossível impedir que tais previsões e promessas fossem constantemente monitoradas e, quanto mais, em termos de abastança ou afluência, os países capitalistas deixavam as nações socialistas para trás, mais o comunismo se desmoralizava aos olhos de seus súditos e menos atraente ele se mostrava no mundo desenvolvido. Os resultados comparativos do milagre econômico na Europa Ocidental patentearam aos poucos, salvo para os militantes mais cegos, que o que mantinha o comunismo no poder na outra metade do continente não era qualquer opção ideológica da população, mas simplesmente os tanques soviéticos. Entre regimes que propiciavam o enriquecimento progressivo de seus cidadãos e aqueles que mal conseguiam nutrir seus súditos, não havia ideologia capaz de justificar estes últimos.

Sabe-se hoje que, durante suas décadas finais (um pouco esticadas, aliás, pela alta do petróleo que, a partir de 1973, beneficiou a Rússia), a URSS via, como possível salvação, mesmo que provisória, a incorporação, sob a forma de satélite, da Europa Ocidental a seu bloco. Foram as iniciativas defensivas de Ronald Reagan e Margareth Thatcher que tornaram essas hipóteses inviáveis e, obrigando seus rivais a aumentarem desmesuradamente seus gastos militares, culminaram com a bancarrota pacífica do sistema soviético.

Quanto aos habitantes de países como a Polônia, Hungria, Romênia, Tchecoslováquia etc., o sistema em questão, além de um tipo particularmente insuportável de opressão do indivíduo pelo estado, significou também o esmagamento de suas aspirações nacionais. Apesar de suas diferentes trajetórias mais antigas, cada qual desses países era, em 1945, uma nação relativamente nova. A Polônia que, associada à Lituânia, fora um importante reino medieval e desempenhara inclusive um papel destacado tanto na Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) quanto na defesa da cristandade contra o invasor otomano, desagregara-se no final do século XVIII, quando se deu sua partilha e seus territórios foram incorporados à Rússia, Prússia e à Áustria. Foi somente após a Primeira Guerra (1914-18) que ela reapareceu como entidade unitária e independente no mapa.

 Data dessa mesma época a criação seja da Tchecoslováquia, seja da Iugoslávia, ambos países multiétnicos e multilinguísticos, formados ao redor de reinos que remontavam à Idade Média: respectivamente a Boêmia e a Sérvia. No que diz respeito a ambos, o mosaico de nacionalidades que viviam desconfortavelmente juntas revelou cedo, já no entreguerras, sua inviabilidade, a qual se confirmaria com sua dissolução nos anos 90. Outras tantas tensões internas e externas marcaram a primeira tentativa de vida independente desses países. O que eles têm em comum é o fato de, situados geograficamente entre a Alemanha e a URSS, todos terem sido, de uma forma ou de outra, envolvidos na Segunda Guerra que, em seus territórios, mostrou-se muito mais selvagem e destrutiva do que na Europa Ocidental. Tal envolvimento, porém, não foi uniforme. Invadi da quase concomitantemente pela Alemanha nazista e pela URSS em 1939, a Polônia lutou contra as duas até o fim, e perdeu 20% de sua população (3 milhões de poloneses cristãos e 3 milhões de judeus). A Tchecoslováquia e a Iugoslávia se dividiram em partes diversas, algumas das quais resistiram aos alemães e outras que colaboraram com eles. A Hungria, a Romênia e a Bulgária, cada qual em maior ou menor medida, colaboraram com o 3º Reich, e o mesmo vale para parcelas significativas da população dos países bálticos.

Embora isso pareça história antiga, a verdade é que, congelando as contradições e conflitos internos desses países, o comunismo contribuiu decisivamente para que, uma vez independentes, eles retomassem suas histórias individuais do ponto onde elas foram interrompidas. Assim, eles ressurgiram em 1989 muito mais etnicamente divididos do que seus vizinhos ocidentais e com muito mais contas a acertar com a história. O caso mais grave, sem dúvida, foi o da Iugoslávia. Embora se reconheça atualmente que o principal agente de sua guerra civil nos anos 90 foi o nacionalismo sérvio manipulado por oportunistas e demagogos como Milosevic, não há razão alguma para inocentar o nacionalismo croata, nem se pode negar que os muçulmanos relativamente laicos e seculares da Bósnia aceitaram de bom-grado o apoio e a intervenção direta de fundamentalistas que ligaram, assim, aquele conflito localizado à nova conflagração global.

Vale a pena igualmente observar que os estragos decorrentes de décadas de comunismo se revelaram mais profundos e duradouros do que se esperava. Imaginava-se, em 1989, que, capitaneados pela metade oriental da Alemanha e apoiados pela (ainda então) Comunidade Européia, os ex-países socialistas logo se emparelhariam com o resto do continente. Se é verdade que o nível de vida ali melhorou substancialmente, ele segue longe do que vigora no mundo desenvolvido e, devido à relativa fragilidade das respectivas economias, nada indica que alguém nascido ainda no comunismo viva para presenciar grandes avanços. Toda a infraestrutura daquelas nações também estava tão degradada que, em muitos casos, teve que ser reconstruída do zero, tarefa que está longe de concluída. De resto, o modo de vida imposto pelo regime de partido único e a desarticulação de qualquer núcleo de sociedade civil garantiram que, quando os cidadãos recomeçassem a se organizar por conta própria, muitos o fariam segundo moldes que, em outros lugares, seriam considerados arcaicos e falidos. Há, portanto, em toda região uma pluralidade de grupos, partidos e até de milícias de extrema direita que, por seu caráter nacionalista e/ou clericalista e/ou abertamente racista (anti-cigano e antissemita), assemelham-se ao que se podia encontrar no continente 70/80 anos atrás. Não se deve tampouco omitir que, quando sem programa nem planejamento, as economias locais mais ou menos adotaram o livre mercado, os indivíduos mais bem colocados para se beneficiarem disso foram justamente os membros do antigo partido reinante. Há, consequentemente, uma coincidência entre as velhas e as novas elites bem como uma continuidade da corrupção, fatores que têm perpetuado e mesmo acentuado o cinismo do homem comum.

Nada disso, porém, significa que a situação atual não seja visivelmente superior à que prevalecia anteriormente. Na pior das hipóteses, tchecos ou eslovenos, romenos ou poloneses podem fazer as malas, vender a mobília e mudar de país, algo que lhes era proibido no antigo regime. Para os que se habituaram às fronteiras abertas, assim como para a maioria dos habitantes de um mundo caracterizado por fluxos migratórios cada vez maiores e mais intensos, isso talvez pareça um detalhe pouco significativo. Este era, no entanto, a marca registrada do sistema comunista que via –e tratava—os indivíduos como propriedade privada do estado, ou seja, do Partido, ou seja, do autocrata ou do grupúsculo de burocratas que se agregavam no Comitê Central. Para todos os efeitos –algo se constata ainda hoje em Cuba ou na Coréia do Norte—o sistema soviético não foi nem mais nem menos do que a plena reinstauração da escravatura, e nada o demonstra melhor do que o seguinte fato: a forma mais óbvia e generalizada de discordância, insatisfação e ou oposição ao regime era, não a atividade de intelectuais e dissidentes, mas a simples vontade, não raro desesperada, de emigrar, ou melhor, fugir dali.  Muitos morreram tentando fazê-lo, e outros tantos amargaram anos de cadeia ou em campos de prisioneiros. Como Berlim estava dividida em duas metades, uma pertencente à Alemanha Ocidental, outra à Alemanha Oriental, ela passou a simbolizar a própria divisão do continente –e do planeta—em dois blocos definidos, afinal, menos pela oposição entre liberdade e tirania do que pela diferença entre afluência e penúria material. E foi lá que se construiu o igualmente simbólico muro cujo objetivo era não impedir uma invasão, mas, sim, bloquear a evasão, a fuga de gente que, reduzida à escravidão e privada de seus principais direitos, pertencia ao estado e ao Partido. Quanto à Iugoslávia, trata-se de um caso à parte que não é, porém, como os nostálgicos supõe, decorrência do fim do comunismo. Pelo contrário. Os elementos da guerra civil interétnica, interconfessional e intercomunitária estavam presentes desde a formação do país e já tinham se manifestado abertamente durante o conflito de 1939-45. Que, durante os mais de 40 anos que perdurou o regime da partido único, sua violência potencial não se atenuasse nem eles tivessem sido equacionados e muito menos resolvidos, é outra prova da ineficiência estrutural (e não apenas econômica) do comunismo realmente existente.

Toda uma geração cresceu e chegou à idade adulta desde 1989, e tanto os acontecimentos daquele ano quanto as esperanças que despertaram parecem extremamente remotas. Não é difícil, contudo, entender o que, naquele momento, provocou um otimismo até desmesurado. A Guerra Fria havia perdurado por quase meio século e fora travada, no mundo inteiro, entre os mais diversos países e mesmo no interior de muitos. Cada qual desses conflitos tinha raízes e motivos próprios, mas o fato de se desenrolarem no contexto de uma conflagração maior criou a ilusão de que, uma vez que esta terminasse, nada mais havia nem haveria de suficientemente grave para contrapor populações e desencadear guerras. Inspirada também na unificação de um continente –o europeu— cuja desunião deflagrara duas guerras mundiais, essa visão otimista acreditava na iminência da paz universal e depositava suas esperanças em instituições multilaterais e organismos transnacionais. Prevalecendo, à sua maneira, em parte substancial do mundo desenvolvido, sobretudo na Europa ocidental, tal otimismo impede seus adeptos de levarem a sério ameaças como a do jihadismo ou fundamentalismo islâmico e do neopopulismo autoritário de esquerda que se afirma na América Latina. O curioso é que, tendo se esquecido das origens de seu otimismo na derrota da tirania comunista, os otimistas fazem agora causa comum com os derrotados de 1989, aqueles que não tomaram o desmoronamento do bloco soviético como uma refutação de suas crenças. Talvez seja justamente por causa dessa estranha aliança que, embora até haja alguma celebração, fala-se tão pouco sobre/e se investiga menos ainda o sistema que ruiu junto com o Muro de Berlim.

 

Nelson Ascher é poeta, jornalista e tradutor.

10 comentários em “Vinte anos depois

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  3. Artigo muito profundo. Eu vivi na Berlim cercada pelo muro, em 1970, quando fazia um curso de pós-graduação. Estive na Berlim Comunista e em Praga. Nunca me esqueço da conversa que tive com um alemão oriental, no trem, ele me narrando o sistema de vida que levava, mostrando-me a péssima máquina fotográfica, falando dos automóveis, etc., e, de repente, mudou de conversa elogiando o governo e tudo o mais. É porque passava por nós e nos observava certamente ume espião.

  4. Nem é preciso ir tão longe. Sugiro a todos os leitores que, na próxima viagem ao caribe não deixem de visitar Cuba. Com meia dúzia de dolares é possível conhecer um cubano e, após conquistar sua confiança, tentar retirar dele um banho de imersão do que é o regime escravagista em que vive e o único sonho acalentado por um povo que não dorme porque mal tem cama: emigrar, ou melhor, escapar do regime.
    E de quebra, pode-se descansar numa praia com areias brancas como talco, provando os melhores puros de Havana em Varadero, pq ninguém é de ferro, rsrsrs.

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  6. Bela análise do império soviético cujos gulags a esquerda ainda teima ocultar. Notou que a palavra comunismo foi banida da imprensa? Hoje, a correspondente da CBN, em despacho de Berlim, narrou as comemorações da queda do muro, mas evitou declinar aquele vocábulo contornando-o com vagas alusões.

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