Você já conseguiu o seu pacote de emergência hoje?

Quando era um dissidente político, o ex-presidente tcheco Vaclav Havel afirmava que, ao sair de casa, tinha de levar um “pacote de emergência” com cigarros, roupas de baixo, escova de dente e alguns livros, caso fosse preso sem aviso.

Se algum dia eu precisar de um “pacote de emergência”, entre os livros escolhidos estará “O Poder – História Natural de seu Crescimento”, de Bertrand De Jouvenel.

De Jouvenel foi uma figura polêmica na França de seu tempo. Teve um caso com sua madrasta, ninguém menos que a escritora Colette. Foi acusado de ser fascista. Depois, acusado de ser socialista. Em 1945, escreveu o livro apresentado nesta resenha, enquanto se refugiava da Ocupação alemã em um castelo abandonado com a esposa e os filhos.

“O Poder” mostra as marcas do tempo da sua redação, mas vai além, muito além. Tornou-se também uma profecia dos nossos tempos.

O livro destrói qualquer espécie de ingenuidade que se possa ter a respeito desta palavrinha mágica chamada “Poder”. Graças à cumplicidade dos intelectuais e, claro, dos políticos, o Poder – escrito em maiúscula, como se fosse uma entidade viva, com uma lógica idiossincrática, quiçá misteriosa – cresceu exponencialmente no final do século 19 e início do 20.

Antes ele queria apenas o seu dinheiro (através dos impostos), o seu sangue (através da guerra) e a livre-iniciativa (através da burocracia); agora, quer nada mais nada menos do que a sua alma.

Como bom profeta, De Jouvenel mostra que isso aconteceu sem que ninguém suspeitasse. Na verdade, o argumento mais perturbador é o de que deixamos o Poder invadir nossa vida íntima porque gostamos disso.

Usar o termo “gostar” é um eufemismo. A palavra certa é “idolatrar”. É nesta distinção que De Jouvenel supera, por exemplo, Elias Canetti em “Massa e Poder” e se iguala a Ortega y Gasset em “A Rebelião das Massas”.

Como Ortega, o escritor francês reconhece que o ser humano só se torna pleno quando aceita a sua existência como um constante naufrágio, repleto de incerteza. O Poder inverte as expectativas: dê a sua alma, ele diz, que darei a segurança que você precisa para continuar a sua vidinha com a paz e o conforto que merece.

O homem democrático aceitou o pacto sem reclamações. Entre a dor e o nada, em vez de escolher a primeira, ficou com o segundo, disfarçado de grandes oportunidades e de sonhos jamais realizados.

Parece um vaticínio terrível, e é. Mas De Jouvenel mostra que a solução existe na capacidade do homem escolher e conquistar a sua própria liberdade – e mantê-la sob constante vigilância. O Poder quer permanecer a qualquer custo, independente das ideologias de esquerda e de direita; e o ser humano também, com a diferença de que ele sempre esteve acima de tudo isso.

Afinal, se não fosse por esse bom combate, valeria a pena viver tal história? Ou será que já escolhemos viver com “pacotes de emergência”, um atrás do outro, esperando a prisão sem aviso?

4 comentários em “Você já conseguiu o seu pacote de emergência hoje?

  1. Legal… coincidência. Estou no meio do livro, e estou gostando mesmo. Pelo menos, não tem erros de porquês (até porque é em inglês).

  2. Acredito que a grande maioria escolheu o nada (as oportunidades e sonhos jamais realizados) ao invés da dor (realidade). Na minha opinião todos escolheram o conforto, pois somos seres majotariamente afeitos ao conforto. A realidade, nua e crua, é por demais crua (cruel?) a nossos míseros interesses humanos.
    Não acredito que sejamos seres para o sofrimento, somos seres para a felicidade (ridícula, eu sei), mas é o que somos, simplesmente.

  3. O livro está na lista para ser lido. Obrigado pela lembrança, porém o pressuposto do seu comentário está torto: não se pode escolher a dor, Martim, isso é masoquismo. A realidade sem alguém com ela, sem alguém por ela, é nilismo completo. A conquista da liberdade passa pela constatação de que ela é concedida por Deus. Para não dizer das flores teológicas digo ao menos a realidade de um grande Bem, da possibilidade de existir a transcendência do Bem que paira sobre nós e que é algo que nos inspira alguma forma de esperança a partir de agora e não tão somente na vida do além túmulo.

    Fora tal pressuposto, o resto está justo. A luta é contínua.

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