William Faulkner, bardo norte-americano

  

Em A Democracia na América, Alexis de Tocqueville medita sobre a pobreza de uma literatura voltada para os novos padrões da sensibilidade democrática. Alega que faltará a ela uma nova forma de ver as coisas; de que será substituída por uma superficialidade jornalística; de que comoverá os leitores apelando para as paixões baixas e não elevando as virtudes necessárias.

Tocqueville escreveu isso em 1835. O tempo mostrou que ele estava errado. Os EUA produziriam Herman Melville, Emily Dickenson, Walt Whitman, Edgar Allan Poe, Henry James e, enfim, William Faulkner. Este último é a prova de que a América pode produzir um estilo aristocrático, difícil, exigente – e ainda elevar as virtudes humanas a picos mais elevados.

O Brasil redescobre a obra de Faulkner aos poucos, com o lançamento de suas obras mais importantes pela Cosac Naify, como O som e a fúria, Luz em Agosto, Palmeiras Selvagens e agora Sartoris, o primeiro épico que se passa no mítico condado de Yokapathawpha. O próximo lançamento é Absalão, Absalão!, previsto para meados de 2011.

Durante o lançamento de Sartoris no Brasil, a editora trouxe ao país Noah Polk, talvez o maior especialista de William Faulkner em todo o mundo. Foi Polk quem estabeleceu o texto das edições definitivas de O som e a fúria e de As I lay dying, além de organizar as obras completas de Faulkner para a coleção da Library of America. Além disso, ele é professor de literatura na Universidade do Mississipi, onde leciona na catédra de estudos sobre Literatura Americana do Sul, com cursos sobre Eudora Welty e, claro, William Faulkner.

A Dicta&Contradicta conversou por e-mail com Polk, que foi gentil o suficiente para responder a algumas perguntas.

1)  Sartoris é o primeiro grande épico de William Faulkner sobre Yokapathawpha, o mítico condado onde passa a maioria de suas histórias. É necessário conhecer a história da Guerra Civil Americana para entender as sutilezas do universo de Faulkner, especialmente neste romance?

Não, não é necessário. Mas claro que pode ajudar. Acredito que os bons romances suprem tudo aquilo que o leitor precisa saber. O mesmo pode ser dito de Tolstoi e Dostoievski, por exemplo: ninguém precisa de um conhecimento enciclopédico sobre as guerras napoleônicas ou sobre os camponeses russos para lê-los de forma inteligente. A mesma coisa com os escritores da América Latina: ajudaria aos leitores de Cem Anos de Solidão saber um pouco mais sobre o contexto histórico do qual Garcia Márquez se refere, mas o romance é poderoso por si só sem este conhecimento.

 2)  William Faulkner era um escritor obcecado com a passagem do tempo?

É mais exato afirmar que Faulkner era um escritor obcecado com a perda e o seu interesse em relação à passagem do tempo surge como conseqüência disso. Seus personagens sempre estão olhando para trás, sempre tentam recuperar algum momento edênico que perderam – seja um lugar, um amor ou uma experiência que os definiu e que jamais recuperarão. É algo como o conceito cristão do Pecado Original: nós crescemos sentindo que perdemos alguma coisa (inocência? Completude?) que de fato nunca tivemos; portanto, sempre há uma lacuna, uma sinapse, que a passagem do tempo cria porque não podemos, no presente momento, nos conectar com a completude. Penso que Faulkner está mais interessado em como negociamos esta lacuna no nosso presente. E o tempo está sempre envolvido nesta negociação, é claro.

3)  Faulkner usa uma técnica ousada para mostrar ao leitor esta passagem do tempo. Como ela se desenvolve de Sartoris a Luz em Agosto?

Estou convencido de que Faulkner sabia o suficiente sobre as teorias de Einstein para usá-las em O som e a fúria. Neste romance, Quentin Compson medita sobre “os longos e solitários raios de luz” sobre os quais ele vê Jesus caminhando. A frase citada pode ter vindo de Einstein, que entendia como o tempo e o espaço estão relacionados: ele percebeu que a gravidade faz a luz se dobrar, como a matéria, e como ele iguala o tempo com a velocidade da luz, então a luz pode também se dobrar; se o tempo se dobra, não se move de maneira linear de A para B para C. Se ele se dobra, deve dobrar-se de volta para A – portanto, está constantemente se repetindo, nunca se completando. Se isto é verdade, como Faulkner sugere, se podemos nos mover na velocidade da luz, nós poderemos ver Jesus caminhando. Faulkner retrata isto na primeira parte do romance em que o mentalmente incapaz Benjy Compson vive em um constante desdobramento entre 15 ou 16 episódios importantes de sua vida. Os críticos acreditam que sua memória se move para frente e para trás entre os episódios e isto é verdade; mas acredito também que Faulkner pretende mostrar que todos esses mesmos episódios acontecem ao mesmo tempo em sua mente, retornando aos “longos e solitários raios de luz”.

4)  Em Luz em Agosto, Faulkner aborda o tema do racismo com nuances cristãs. Acredita que a obra faulkneriana ajudou por um melhor entendimento do problema racial nos EUA nos últimos 40 anos?

Sim, acredito, apesar de que as observações de Faulkner sobre raça não mudaram muita coisa na arena política dos EUA – afinal, o racismo vive muito bem por aqui. Mas é claro que a obra ajudou os leitores a entenderem melhor o problema da raça de uma forma mais profunda. Penso também que a pessoa que melhor aprendeu sobre o problema da raça foi o próprio Faulkner: quem poderia escrever o que escreveu e não ficar impressionando com o que viu? Creio que foi o seu próprio trabalho que o motivou a entrar no período de ativismo da década de 1950, quando desceu de sua torre modernista e resolveu se engajar publicamente nos assuntos de raça, escrevendo ensaios e aparecendo nos programas de rádios, tentando impedir que acontecesse uma nova guerra civil.

 5)  O que você pode nos dizer a respeito das crenças religiosas de Faulkner, especialmente em livros como Luz em Agosto, Réquiem para uma negra e Uma fábula?

Bem, penso que Faulkner não era uma pessoa religiosa no sentido convencional. Argumentei durante anos que Uma fábula não é uma versão da paixão de Cristo, como boa parte dos críticos entenderam, mas uma reescritura das implicações políticas da crucificação de Cristo. O que Uma fábula denuncia é como a estrutura de poder na Primeira Guerra Mundial – e, portanto, todas as estruturas de poder – cooptam o sacrifício do soldado pela sua vida e como cooptam o seu próprio sentido de poder sobre este mesmo sacrifício. Faulkner entende que o Cristianismo é uma extensão do poder político, que explora tudo aquilo que “Cristo” defende por seus próprios fins.

6) Em Absalão, Absalão!, Faulkner escreve sobre o “grande desígnio” de Thomas Sutpen, que pensa que mudará o mundo. Claro que isto não aconteceu. Será que Faulkner está refletindo sobre uma tirania política que esmaga a vida das pessoas comuns?

Muitos leram Absalão, Absalão! desta maneira. Penso que a vida de Sutpen foi tão caótica quando criança – a pobreza, um pai racista, violento e alcoólatra – que tudo o que ele queria foi impor alguma espécie de ordem. E assim entendeu que para conseguir isso tinha de ter uma grande mansão, com vários empregados, construída por ele mesmo. Se tinha de impor ordem, faria com todos ao seu redor, sem desculpas. Hoje ele seria chamado de “control freak”. Mas como não conseguiu controlar a desordem da sua alma, então tornou-se igual ao pai que nunca quis ser. Acho que, se lido dessa forma, Absalão, Absalão! é mais como uma busca pessoal, não como algo político, apesar de que idéias como controle e poder estão intimamente relacionadas com a política.

7)  Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura de 2010, é um grande fã de Faulkner. Ele é um dos inúmeros escritores latino-americanos que usaram a técnica faulkneriana de contar uma história – e existem outros que foram profundamente influenciados, como Gárcia Márquez, Juan Carlos Onetti e Juan Rulfo. Por que você acha que Faulkner teve essa influência na literatura latino americana?

Esta é uma questão difícil para mim pois conheço muito pouco sobre os escritores latino americanos e, durante a minha visita ao Brasil e ao Uruguai, tentei aprender um pouco mais sobre eles. O que posso falar do pouco que sei é que Faulkner parece ter dado uma espécie de mapa para um novo modo de entender e de usar a linguagem. De várias maneiras ele conseguiu desconstruir a história do Sul: muito do que Absalão, Absalão! fala é como uma história se torna a construção de uma voz narrativa – há sempre duas vozes que conversam entre si, que se contradizem, contam e recontam, aperfeiçoando o que uma disse a outra e só no final ambas chegam a um consenso. A narrativa tenta dar unidade e coerência a um documento, a uma foto, a um pedaço de uma tumba – enfim, a algo que não pode ser contado de forma direta. Os historiadores tentam fazer a mesma coisa: explicam, aperfeiçoam, se contradizem, interpretam, até conseguirem alguma coerência na história de seu país ou de sua região. O que chama atenção em Absalão, Absalão! é precisamente a natureza “construída” de sua história, e mostra como esta mesma construção pode ser usada por políticos para justificarem os seus regimes. Logo, talvez o que Faulkner deu a vários escritores latino americanos – além de grandes romances! – foi o acesso ao que chamamos de “contra-narrativas” que possam “re-contar” as histórias de seus países.

8)  Quem é o herdeiro de William Faulkner na literatura americana atual?

Uma outra questão difícil, já que Faulkner é um desses colossos e sua influência pode ser vista de diferentes formas na literatura atual. Creio que o falecido Barry Hannah foi o único escritor que conseguiu realizar algo parecido na linguagem e no estilo com o que Faulkner tentou realizar, i.e., atravessar novas fronteiras em ambos. Admiro profundamente Philip Roth, um escritor muito diferente de Faulkner, e, claro, Eudora Welty.

9) Qual é o seu romance favorito de Faulkner?

Sempre respondo a esta pergunta da seguinte forma: “Aquele que estou lendo no momento.” Isso é quase verdade porque agora são todos interessantes. Se me perguntar qual romance eu levaria para uma ilha deserta, se eu tivesse que levar um pelo resto da minha vida, a resposta mudaria todo dia! Atualmente, eu diria que meu favorito é Go down, Moses. Se pudesse levar mais quatro livros, seriam O povoado, O som e a fúria, Absalão, Absalão! e A cidade.

10)  William Faulkner é um bom exemplo para os jovens escritores dos nossos tempos, repletos de Kindle, Internet e i Pads?

Sim. Suspeito de que Faulkner jamais usaria um computador (sequer autorizava televisão, rádio ou ar-condicionado em sua casa!), mas ele diria que o importante é o resultado final e não como você chegou lá! Boa literatura é sempre boa literatura: se emocionar o coração sempre será boa, não tenha dúvidas disso.

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