Em despeito do amor profano

Baltazar Estaço

Mostra prudência sábia o que é minino,
apresenta-se manso o que é tirano,
aparece sagrado o que é profano,
profanando porém o que é divino.

O siso quer fingir no desatino,
a verdade pintar no falso engano,
disfraçar o proveito em nosso dano,
matando o natural e o peregrino.

Imóvel se afigura o inconstante
Amor, porque de falsa cor se tinge
para que nada dê, mas nada negue.

Tal este amor se mostra e finge ao amante,
mas tal qual este amor se mostra e finge,
tal fica quem o busca e quem o segue.

 

Vamos agora retornar ao ano de 1604, quando o padre Baltazar Estaço publicou em Portugal seu único livro de poemas, Sonetos, canções, églogas e outras rimas, jamais reeditado. O poema que aqui aparece faz parte de uma antologia de poesia maneirista, mas circulam nas universidades fotocópias daquele volume original. Uma leitura superficial e manualesca sugere o simples gosto pelo paradoxo e pelo jogo mental, mas há na verdade uma descrição perfeita da mentira romântica, contrastando aparência e realidade.

Quando Baltazar Estaço diz que “mostra prudência sábia o que é minino”, temos um uso arcaico da palavra “menino” (mantida na grafia original por causa da rima com “divino”), que podia significar Eros, ou Cupido, ou Amor com “A” maiúsculo, como aparece no décimo verso. Não se tratava tanto de um paganismo explícito, mas de uma convenção chique, que pretendia dar foros de misticismo à idolatria de senhoras supostamente perfeitas a quem protegia uma suposta castidade. Ninguém menos do que um padre vem denunciar esta relação como uma escravidão caprichosa, em que nada se dá, mas nada se nega. Como diz René Girard no livro já citado:

“A coquete não deseja entregar sua preciosa pessoa aos desejos que provoca, mas ela não seria preciosa se não os provocasse. A estima que a coquete sente por si mesma está fundada exclusivamente sobre a estima que os outros sentem por ela. É por isso que a coquete busca avidamente as provas dessa estima; ela alimenta e atiça os desejos de seu amante, não para atendê-los, mas para melhor recusá-los.”

Em “Transforma-se o amador na cousa amada”, quem fala é o amante, já percebendo que a insatisfação de seu desejo é sinal de que alguma coisa está errada; “Eros e Psique” coloca essa percepção como estágio intermediário de uma busca; no “Soneto do maior amor”, ouvimos uma dessas coquetes que recebiam presentes de gente que se julgava mui filosófica, retribuindo-lhes com negações. Mas os amantes estão enfeitiçados. Julgam que suas “ídolas” já fazem muito em conceder-lhes alguma companhia, e entendem que as negações são absolutamente merecidas, sentindo-se infinitamente inferiores às amadas.

Baltazar Estaço vem como um verdadeiro pregador dizer que aquele sentimento que parece sublime, que já se imiscui com o fervor religioso, está na verdade usurpando-lhe o lugar: “aparece sagrado o que é profano/ profanando porém o que é divino”. Porém, ao ouvir isso, aqueles que estão comprometidos com a mentira romântica tendem a sentir o desdém que o iniciado sente pelo neófito. Afinal, mesmo entre os poetas do século XVI que confessavam a tristeza causada pelas “sem-razões de Amor”, havia um certo tom de vanglória ao narrar a experiência, sempre mais singular que a do poeta ao lado.

O mais interessante é que o poema termina retomando Camões, mas indo adiante: já percebendo que um sustentáculo do coquetismo é o enamoramento do sujeito pela experiência (“sinto um amor especial; logo, sou especial”), Estaço diz que quem segue Amor (e não uma “cousa amada”) acaba se tornando igual a ele. Quem sofre nas mãos de um amor coquete acaba se tornando coquete. O homem que sofre nas mãos de uma coquete fica entre a humilhação absoluta, como no Werther, de Goethe, e o cinismo, usando as mulheres como crê ter sido usado. A mulher que sofre nas mãos de um caprichoso passa a usar os homens e só consegue amar quem a despreza.

E há quatrocentos anos um padre concentrou essa lição em catorze versos, denunciando as lindas maneiras de falsificar a experiência amorosa.