Eros e Psique

Fernando Pessoa, Cancioneiro

 

“… E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.”

Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio da Ordem Templária de Portugal

Conta a lenda que dormia
uma Princesa encantada
a quem só despertaria
um Infante, que viria
de além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
vencer o mal e o bem,
antes que, já libertado,
deixasse o caminho errado
por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
e orna-lhe a fronte esquecida,
verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
sem saber que intuito tem,
rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino –
ela dormindo encantada,
ele buscando-a sem tino
pelo processo divino
que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
tudo pela estrada fora,
e falso, ele vem seguro,
e, vencendo estrada e muro,
chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
à cabeça, em maresia,
ergue a mão, e encontra hera,
e vê que ele mesmo era
a Princesa que dormia.

No século XX, após todos os golpes que sofreu Portugal, quando Os Lusíadas já eram relíquias da casa velha, Fernando Pessoa surgiu como a voz de um país marginal e subterrâneo, dirigindo-se ao único espaço onde se podia falar francamente: o da intimidade da consciência. Mesmo assim, a sua é uma consciência conturbada, aprisionada, obscura, em que o sonhado é confundido com o visto e o pensado com o vivido. Ignorar é ser; saber é não ser, ou ser menos. Em Pessoa, ortônimo e heterônimos, encontramos sempre o desejo da pura espontaneidade, alheia a tudo e a todos; melhor fulgurar um instante do que meditar por uma vida. Por isso mesmo esse falar francamente precisa ser de certo modo encantatório, como se houvesse mais sinceridade e comunicação na sugestão do que na apresentação de teses claras. Não se trata de apresentar problemas, nem de descrever com clareza uma experiência paradoxal, mas de colocar a incerteza no próprio texto do poema.

A quantidade de vezes que “Eros e Psique” é apresentado como poema de amor mostra a força dessa sugestão e testemunha que a “música que se faz com as idéias” – e com as palavras – pode facilmente confundir o intelecto. Mesmo assim, é curioso que, ainda que a epígrafe ocultista seja costumeiramente suprimida, não se perceba, já no meio do poema, que “ela para ele é ninguém”, o que, mesmo não sendo dito em tom de desprezo, dificilmente sugere um enamoramento. Eros segue por um “caminho errado” para chegar à Princesa, e o faz antes de vencer o Bem e o Mal – ou seja, encontrá-la será apenas um passo intermediário. Não é à toa que a epígrafe nos informa que se trata da diferença entre uma verdade recebida pelo neófito e outra recebida pelo Adepto Menor. O Infante é “esforçado”, mas não sabe por que faz o que faz; o próprio “processo divino” é obscuro, ainda que Pessoa o esteja descrevendo naquele momento, em mais um dos paradoxos do poema. Ao fim, ignorante do que faz, mas “esforçado” e “seguro”, Eros finalmente encontra Psique. Mais curioso ainda é que Eros leva a mão à própria cabeça, encontra a hera que cobre a “fronte esquecida” de Psique, mas… não levanta o último véu! Atendo-nos ao texto do poema, é olhando para a hera e não para seu rosto que Eros percebe que “ele mesmo era / a Princesa que dormia”, reforçando a tese de que estamos falando ainda de uma suposta verdade intermediária, e não da verdade final da busca.

Camões nos deixava perplexos por fazer ver um problema real; basta ler seus poemas com calma e atenção para que nos fique claro do que é que ele está falando. Pessoa opta pelas sete sílabas, ritmo embalador das cantigas, ao mesmo tempo em que entrecorta a sintaxe com inversões na ordem habitual – como em “orna-lhe a fronte esquecida, verde, uma grinalda de hera”, em que até parece que a fronte é que é verde -, quebrando expectativas e criando uma espécie de dissonância cognitiva. Tudo para mostrar que seu amador pode se transformar na coisa amada, mas é coisa amada sem saber, ou não é verdadeiramente amada, já que não é o verdadeiro término da busca. Mesmo enquanto etapa, ela não passa de uma princesa adormecida e alheia cujo rosto, ainda recoberto de hera, devolve a ignorância e a indiferença. Pessoa parece estar seguindo Camões à sua maneira ocultista e denunciando também que o amor não se encerra na imitação, que encontrar-se a si mesmo no outro pode parecer muito profundo, mas sem dúvida não é suficiente – nem enquanto resultado final, nem enquanto identidade em nenhum momento.