Soneto do maior amor

Vinícius de Moraes

 

Maior amor nem mais estranho existe
que o meu, que não sossega a coisa amada
e quando a sente alegre, fica triste
e se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
o amado coração, e que se agrada
mais da eterna aventura em que persiste
que de uma vida mal aventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
e quando fere vibra, mas prefere
ferir a fenecer – e vive a esmo

fiel à sua lei de cada instante
desassombrado, doido, delirante
numa paixão de tudo e de si mesmo.

 

Oxford, 1938.

 

 

Amar exige uma admissão da própria insuficiência, e não é por acaso que o primeiro grau do amor é a humildade. Por isso também não é estranho que Vinícius de Moraes declare que seu amor, o “maior”, é o “mais estranho”. Afinal, comprazendo-se em torturar a coisa amada, parece tudo menos humilde.

A percepção dessa estranheza nasce daquilo que René Girard chamou de “mentira romântica” (idéia que permeia esta primeira edição de Anatomia do poema), isto é, a negação ou a tentativa de elidir a estrutura mimética de certos desejos. O amador quer transformar-se na coisa amada porque a percebe como divina em sua auto-suficiência. Admitir a sua própria insuficiência é uma humilhação tão insuportável que, para Fernando Pessoa, parece uma verdade iniciática (e pensemos no famoso “Poema em linha reta”). A mentira romântica existe para encobrir essa humilhação e afetar no sujeito aquela auto-suficiência que ele julga perceber no outro.

Trata-se de um amor de si mesmo e não do outro – “uma paixão de tudo e de si mesmo”. O amor romântico, nesse sentido, não passa de um jogo de soma zero; quanto mais o outro tiver, mais ele será; e quanto mais ele tiver e for, menos eu terei e serei. Por isso é que o poeta fica triste quando sente o outro alegre; por isso é que dá risada quando o outro está triste.

Contudo, Vinícius de Moraes, poeta imensamente talentoso, aqui fica a meio do caminho. Se a função primeira da linguagem é nomear, e se esperamos da literatura que nomeie aquilo que não conseguimos dizer como o sol ilumina o mundo, podemos admitir que Camões apontou um problema e Pessoa, de modo mais oblíquo, tocou na mesma questão. Mas Vinícius não dá o salto: um amor que seja tão maligno não pode ser propriamente chamado amor. Do que poderia ser chamado, então? René Girard, usando um termo de Stendhal em O vermelho e o negro, diria que se trata simplesmente de vaidade. Quando o poeta se refere ao “amado” coração, está claro que o sentido principal do adjetivo é “valorizado”, e é por isso que lhe agrada mais permanecer na eterna tensão do que satisfazê-la, já que é melhor prender a atenção de um objeto valorizado do que dar-se a ele e correr o risco de, satisfazendo-o, perdê-lo.

O leitor, entretanto, poderia alegar que uma das prerrogativas do poeta é uma certa obscuridade. Por isso é que Vinícius de Moraes poderia expor tão perfeitamente uma vaidade e ainda assim chamá-la de “amor”: para mostrar que isso que se percebe como amor nada mais é do que a “paixão de tudo e de si mesmo”. Mas sua linguagem é franca e direta, não há inversões, não há nada que sugira a obrigatoriedade de uma leitura mais detida. Se ele quisesse fazer essa denúncia, a faria de imediato, até porque denunciar de maneira oblíqua não é lá muito eficiente. Ficamos sem saber o que se pretende. Confissão romântica de quem acredita possuir o maior amor e não passa de um caprichoso? Teríamos uma ironia que não combina com quem precisa se levar tão a sério. De novo, denúncia do capricho e da vaidade? Seria preciso algo mais enérgico.

De Camões a Pessoa, vemos que o significado pode se tornar menos imediato, mas a atitude geral dos poemas é coerente e é isso que lhes dá unidade – e, em última instância, força. Talvez Vinícius de Moraes vença no quesito fluência imediata, mas perde por não saber exatamente o que pretende comunicar, acreditando que aquilo que sente pode ser de fato amor. Ou, para falar com a mesma franqueza de seu poema, por estar comprometido demais com a mentira romântica.