A baleia e o vírus

Por Leandro Oliveira

Lembro-me sempre de meu assombro infantil quando soube que a baleia não era um peixe e que, a despeito de sua anatomia adaptada à vida aquática, se tratava de um animal mais próximo dos elefantes e nós, humanos, do que de um tubarão. Do mesmo modo, até hoje não consigo esconder meu desconcerto quando leio sobre o vírus, um ser inclassificável que às vezes pode ser entendido como mineral, outras como animal ou vegetal – circunstância que talvez somente os ensaios “científicos” de Ítalo Calvino nos permitam considerar sem os tecnicismos da taxonomia biológica…

De fato, um dos exercícios mais ordinários que qualquer um de nós empreende para tentar entender as manifestações do mundo e do homem é o de tentar estabelecer limites, procurar as características essenciais que permitam compreender algo sobre a integridade ou singularidade de determinada coisa ou situação.

Estas características muitas vezes não são reconhecíveis pela mera análise das aparências. Na verdade, as aparências por vezes são o maior entrave para o dito exercício. Entrave que se torna patente principalmente quando tentamos classificar e agrupar cada manifestação singular em gêneros, espécimes ou graus de parentesco.

É assim que problemas da mesma ordem da “baleia” e do “vírus” surgem quando falamos de música. Uma questão muito rotineira – e talvez por isso tão confusa, seja entre amantes de música, ouvintes eventuais ou mesmo músicos mais ou menos experientes – é sobre “música clássica”, “música popular” e “música comercial”: do que tratamos exatamente quando lidamos com tais distinções? E estas distinções são realmente importantes? Mais do que isso, elas lidam com dados precisos da realidade ou são mera projeção de gosto pessoal, pernosticismo ou idiossincrasia cultural?

Convido o leitor a fazer a seguinte experiência: eleger um fórum qualquer, seja ele de discussão profissional ou amadora sobre música, e perguntar: “O que é música clássica?” É de imaginar que as respostas sejam muitas. Os que prezam as aparências – e como dizia Wilde, apenas os levianos não julgam pela aparência – vão dizer com alguma convicção: “é a música que se toca com orquestra”, ou “música que se ouve em silêncio” ou (já ouvi, acreditem!) “aquela que se toca com casaca e roupa de gala”. Nem preciso me aprofundar em técnicas socráticas para desmontar tais assertivas com alguma facilidade. Pois, quando ouço Metallica (para quem não sabe, uma banda de heavy metal) com a Orquestra Sinfônica de São Francisco, então ouço música clássica? Ou, se ouvir Chitãozinho e Xororó (uma dupla sertaneja… – vai que alguém não conhece!) enquanto trabalho no computador, em silêncio absoluto, faço daquilo um clássico instantâneo? E se toco Vivaldi com roupa punk (como Nigel Kennedy, o violinista inglês), então faço música popular?

Omito as respostas, porque são tão simples quanto pueris as perguntas. Evidentemente, porém, há também ponderações mais sofisticadas. Talvez a mais interessante entre elas se refira à idéia de “clássico” – e isso traduz um conceito comum nas humanidades – como o conjunto das obras que atravessam o tempo, persistem entre gerações, comungando e, ao mesmo tempo, formando uma tradição. Assim, a música clássica seria aquela que de certa maneira “torna-se” clássica, e teria entrado para esse panteão pela sua capacidade de sobrevivência, pelo seu mérito reconhecido e pela suas reverberações na cultura e no passar dos anos.

No entanto, arrisco-me a notar que os problemas de tal ponderação são evidentes. O primeiro deles é o que faz abster-me de um dado da realidade: existem compositores de música “clássica” que são nossos contemporâneos vivos (eu juro!) e, conquanto reivindiquem a eternidade, só o fazem como todos nós, mortais. Ou seja: suas obras só podem ser avaliadas pelo “valor de face” enquanto esperam a valorização ou desvalorização póstuma, mas são chamadas “clássicas”, não só pelos melômanos em geral, mas pelo mercado, programadores de concerto, musicólogos e críticos dos quatro cantos do mundo.

(No Brasil, instala-se hoje uma confusão adicional: o que nos outros países é chamado de “classical music”, “musique classique” ou “klassische Musik”, ganha no Brasil – mas não em Portugal – um apelido bem feioso: “música erudita”. E pretende-se com isso resolver uma distinção que no fundo confunde o público e instaura novos problemas conceituais que nem precisávamos levantar aqui. Não sei não, mas como dizem por aí, “se a coisa só dá no Brasil, não sendo jabuticaba, decerto é besteira…”).

Outro problema evidente desta acepção de clássico é lidar com obras redescobertas: aquelas que são encontradas centenas de anos após o falecimento do seu compositor, tendo permanecido desconhecidas por muito tempo. Resistiram ao tempo apenas num sentido comezinho – seus manuscritos sobreviveram -,
mas sequer foram ouvidas. Seriam “música clássica”, suponhamos, apenas por terem sido feitas por um compositor do chamado “período clássico” e, portanto, não dependerem de qualquer seleção cultural que nos permita valorar suas qualidades intrínsecas?

E poderíamos nos exercitar ainda em outras considerações: quanto tempo, afinal, um autor leva para ser considerado um clássico – no ano da sua morte, dez anos depois, cem? E se “clássico” é o compositor, quantas obras clássicas fazem de um compositor um clássico? Uma vez clássico, sempre clássico – e todas as obras do compositor clássico são, portanto, clássicas? E a pergunta contemporânea que todo diretor de marketing da indústria fonográfica responde sem querer: é clássico porque vende ou vende porque é clássico?

Ora, citemos, a propósito, ao menos um dado histórico: o conceito de “clássico” na música surge exatamente quando, em meados da década de trinta do século XIX, alguns compositores alemães como Felix Mendelssohn tentam delimitar o período áureo da história da música, que se teria estendido do nascimento de Bach (1685) à morte de Beethoven (1827).

Desde então, seus limites temporais expandiram-se muito. Por conta disso, atualmente, é força refletir sobre as bases técnicas em que o gênero está assentado. E somente então uma distinção fundamental é necessariamente levada em consideração: a compreensão de que a tradição da música clássica fundamenta-se em uma tecnologia própria, uma tecnologia de registro, que é a escrita musical.

A premissa desta tese é que as tecnologias de comunicação não são neutras: elas alteram a estrutura do discurso e atuam de maneira mais ou menos radical nas relações que dinamizam uma determinada tradição. Grosso modo, podem-se assumir três maneiras distintas de registro musical: o ouvido, a partitura (manuscrita e impressa) e os registros mecânicos – elétricos ou eletrônicos.

 

A tese de que os procedimentos de registro auditivo – ou, tecnicamente, tecnologias de comunicação oral – determinam de forma própria as manifestações de dada tradição é inaugurada com os estudos do helenista Milman Perry, e desenvolve-se na antropologia de Jack Goddy, Edmund Carpenter e Ruth Finnegan, na tese de Eric Havelock sobre Platão e na obra do lingüista e filósofo americano pe. Walter J. Ong.

Partindo destes estudos, digo que a música cuja forma de registro decorre da memorização auditiva deve ser chamada de “música folclórica”. E assim como qualquer manifestação de cultura oral, esta música deve ter uma dinâmica própria, estruturar-se a partir de elementos de sentido e “perenidade” absolutamente singulares.

Um exemplo que serve de prova empírica da tese – e que pode ser reproduzido por qualquer curioso – foi vivido por mim, e por isso o tomo como referência em seminários e conferências sobre o assunto, tornando-o uma espécie de experimento que chamo de “telefone sem fio expandido”.

Quando me transferi para São Paulo, vindo do Rio de Janeiro, assumi uma classe de iniciação musical privada. Eram alunos de quatro a dez anos – eu com vinte e cinco. Após domar as crianças – e “domar” é um termo apropriado, pois eram verdadeiras feras –
finalmente consigo colocá-las sentadas para ouvir uma “canção comum”. A idéia original era Cai-cai-balão, que, segundo imaginei, todos de certa maneira reconhecem; e a tranqüilidade resistiu até o verso “aqui na minha mão” (resistiu muito pouco, evidentemente). Os meninos se entreolharam e corrigiram, “na rua do sabão, professor”. Sua versão era diferente da minha. Após ouvir sua versão completa, percebi que a estrutura prosódica se mantinha intacta – versos de quatro sílabas num duplo iâmbico (uma sílaba fraca seguida de uma forte) – e a “fraseologia” seguia sem qualquer variação de pulsação – um compasso binário clássico, com ênfase no primeiro tempo. No entanto, todas as palavras que compunham o verso eram diferentes!

Nada mais natural: se imaginarmos as distâncias geográficas e temporais entre a versão que ouvi na minha infância e aquela a que os meninos tiveram acesso trezentos quilômetros e vinte anos depois, o inusitado seria o contrário. E a reprodução dessa experiência me permite assumir que tais adaptações acontecem em maior ou menor grau com todas as canções de roda tradicionais – o que é previsto pelos estudos de oralidade citados acima e me permite assumir que seja um dado intrínseco a toda tradição musical folclórica. Outras questões como as relações de autoria (quem escreveu Cai-cai-balão?), fidelidade e desempenho (velocidade, precisão rítmica, diapasão, naturalidade para absorção de ornamentação e improvisações) são tratadas de forma absolutamente singular por essa tradição.

 

Os grandes autores a debruçar-se sobre a escrita e a imprensa – consideradas como tecnologias de registro que reorganizam os processos de comunicação em geral – foram o economista Harold Innis, o comunicólogo Marshall McLuhan, o educador Neil Postman e a historiadora Elizabeth Eisenstein.

A prática da notação musical sempre esteve presente de forma esotérica desde a mais remota Antigüidade, ao menos de certa maneira. No entanto, a proposta de notação como um código reconhecível por gerações é originária de meados do século IX, e foi desenvolvida inicialmente na esfera religiosa com as primeiras notações por nêumas – um sistema de pontos e traços posicionados acima do texto alfabético.

Desde então se pode traçar uma árvore genealógica mais ou menos reconhecível desta tradição – com a Ars Nova, Guido d’Arezzo e assim por diante. E será a partir da tradição escrita que se criam as questões de fidelidade (música como criação cujo “mapa” deve ser respeitado), autoria (identificação de criador da obra musical), disseminação (tocar música de uma cidade em outra cidade, de outras eras em outros contextos), estilização (formas particulares de notar a partitura), preservação e interpretação (formas de ler a partitura) tais como as conhecemos hoje.

Chamar esta tradição de “música clássica” é menos um dado estético – e que partiria de juízos de valor determinados – que uma questão de precisão ontológica. Afinal, se existe algo que nos permite situar numa mesma linha de tradição Hildegard von Bingen e John Cage, é exatamente a relação que cada uma de suas obras tem com a tecnologia de registro, a relação de como cada um destes autores estrutura suas músicas por e a partir do texto musical escrito.

O fonógrafo, por sua vez, foi inventado em finais do século XIX. O aparelho fez a inserção de procedimentos mecânicos e elétricos na gravação e reprodução das ondas sonoras. A tecnologia, inventada inicialmente para registrar dada manifestação – assim como a escrita musical, a propósito -, acaba inventando novas palavras de ordem para a própria criação. O musicólogo americano Mark Katz aponta-nos que alguns aspectos como tangibilidade (“pegar” e colecionar música), portabilidade (levar a música do teatro para casa), invisibilidade (não fazer questão de ver quem está tocando), repetição (ouvir a mesma performance diversas vezes, às vezes por horas a fio), limitação de tempo (um disco no início da era do fonograma tinha pouco mais de três minutos) e a manipulação (mencionemos só a edição dos melhores excertos, ou mais modernamente o DJ) são questões colocadas diretamente pela tecnologia e fundadoras de uma nova tradição. Nada disso seria pensável antes do fonógrafo.

A tradição do fonógrafo é a da música popular. Uma parte desta tradição culmina no jazz (para entender como o jazz, desde sua origem, é influenciado pela tecnologia do fonógrafo, sugiro a leitura de Capturing Sound, do mesmo Mark Katz), outra parte revisita algumas tradições folclóricas e se subdivide nas muitas manifestações do nosso dia-a-dia, como o blues moderno, o rock, a dita world music ou o nosso samba.

Com a origem desta tecnologia, a escrita musical se torna necessariamente obsoleta. Há, evidentemente, tanto perdas como ganhos com a introdução do fonógrafo, e para a tradição da música clássica a nova tecnologia gera conseqüências bastante evidentes. Ilustro algumas delas, para reflexão:

1) Para o público, a música se tornou mais acessível e mais barata, e o seu cultivo mais passivo e descontextualizado;

2) para o intérprete, existe a possibilidade de ter acesso a executantes de outros tempos ou escolas: o caráter pedagógico da gravação é incontestável; por outro lado, a “cadeia produtiva” se tornou mais complexa, e agora, para “produzir-se profissionalmente”, o músico deve lidar com todo um aparato industrial de comercialização, com estratégias próprias de mercado, marketing e produtos agregados que extrapolam em muito o mero conhecimento musical;

3) para o compositor, a tendência natural é confundir-se cada vez mais com o intérprete da obra – visto que o autor fica credenciado naturalmente como a voz máxima na certificação de determinado registro fonográfico – e uma vez registrada, a referência perdurará para sempre, como as gravações a que temos acesso de obras de Villa Lobos por ele mesmo, ou Stravinski regendo suas próprias obras. Por outro lado, o suporte escrito passa a ser o ponto de partida da própria questão criativa: afinal, se “escrever” música torna-se uma prática antiquada, em que condições tal prática pode manter um caráter genuíno?

 

De certa maneira, toda manifestação da tradição clássica do pós-guerra problematiza o suporte de registro, a escrita mesma por onde a música de tal tradição se disponibiliza –
e isso persiste nas técnicas seriais de Olivier Messiaen (1908-1992) e nas partituras gráficas de George Crumb (*1929) e Murray Schafer (*1933).

Fica evidente que a partir das três formas de registro – auditivo, gráfico e fonográfico – torna-se possível determinar as tradições existentes, suas propriedades específicas e complexidades aparentes. Sabendo disso, o melômano pode exercitar-se e tentar distinguir, dentro de cada gênero, as músicas de maior ou menor densidade. Afinal a tradição folclórica conta com cantigas de roda, as canções de kuarup e as riquíssimas obras kletzmer de raiz judaica, por exemplo. Na música clássica entram coisas deliciosas e diferentíssimas como as valsas da família Strauss, as sinfonias de Mahler, as suítes ou cantatas de Bach, os Gruppen de Stockhausen. O gênero popular guarda em si Sérgio Mendes, Richard Clayderman e Keith Jarret (só para ficar no terreno do piano)!

Aí, e somente aí, entra a questão do gosto, que é definitivamente um problema mais complexo a ser ponderado pelas expectativas culturais e disponibilidade pessoal; pode se julgar cada obra não só pelo seu valor intrínseco, mas também – e principalmente – pela sua posição com respeito a toda tradição onde está inserida. O que não dá é imaginar que um gênero por si só seja suficiente para qualificar qualquer coisa: há música clássica ruim, música folclórica boa, música popular excelente. E o contrário: a aventura da arte no nosso tempo é submergir e imergir em cada uma das tradições disponíveis e sacar dali aquilo que definitivamente tem o poder de transformar cada um de nós. É nesse ponto, e somente nesse, que tanto faz se ouvimos alhos ou bugalhos, clássico ou rock, de fraque ou sungão… Este é o momento quando, meio infantis, “peixe” passa a ser tudo que está na água, seja baleia, tubarão, sereia ou tartaruga; o importante é se jogar no mar!

 

Leandro Oliveira é regente e anfitrião do projeto “Falando de Música” da Fundação OSESP.