A morte absoluta

de Manuel Bandeira

 

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
a exangue máscara de cera,
cercada de flores,
que apodrecerão – felizes! – num dia,
banhada de lágrimas
nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
a lembrança de uma sombra
em nenhum coração, em nenhum pensamento,
em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
que um dia ao lerem o teu nome num papel
perguntem: “Quem foi?…”

Morrer mais completamente ainda,
– sem deixar sequer esse nome.

 

Muitas vezes, lendo poemas escritos em “verso livre” (antes que venha a pergunta sobre as aspas, como disse T.S. Eliot, “não existe verso livre para quem quer escrever bem”), pergunto-me se a diferença dele para as formas fixas está simplesmente em ter o controle absoluto das pausas. Afinal, mesmo que um período sintático se estenda de um verso a outro sem interrupção, o fim do verso naturalmente sugere uma pausa. Basta ler de novo a frase anterior para ver que ela até parece uma tautologia, já que todo fim é uma espécie de parada. Mas o fim de um verso não indica sempre essa parada; ninguém jamais leria “Sete anos de pastor Jacó servia PAUSA Labão”.

Por isso, se a forma fixa é simultaneamente um apoio e um limite, ao dispensá-la o poeta que escreve em “verso livre” vai na verdade valer-se de outra coisa, que tem seus problemas específicos: a possibilidade de fazer coincidir o significado do que está sendo dito com pausas de enunciação que o respeitem. Ao abandonar rima e métrica, ocorre uma aproximação com a fala, porque só acidentalmente falamos de modo rimado e metrificado. Ao eliminar da obra esse tipo de expectativa, o que mais pode guiar a fluência da enunciação além daquela coincidência? E apesar da impressão de “naturalidade”, dada a semelhança com a fala mais coloquial, o poema continua igualmente “artificial”.

Mas ainda há que distinguir o poema em verso livre do poema em versos com medidas diferentes. O critério que uso, e que aplico a este poema de Manuel Bandeira, está na quantidade de vezes em que as convenções de acentuação interna são respeitadas; neste, como há combinação de versos perfeitamente convencionais com outros bastante heterodoxos, temos o verso livre.

E o verso livre é adequado à intenção do poema: oferecer uma gradativa qualificação do morrer, como quem explica, num monólogo, exatamente aquilo que espera. O título do poema tem um artigo, um nome e um adjetivo, “A morte absoluta”, mas o poema se inicia com uma forma nominal do verbo – ou seja, simultaneamente nome e verbo – que logo começa a ser qualificada, como se tudo que não fosse a palavra “morrer” ocupasse o papel de um advérbio. No entanto, a gramática vai nos dizer que os advérbios qualificam verbos, e Bandeira não está se referindo tanto à ação de morrer quanto ao fato de ter morrido, ao modo como sua existência terá desaparecido. Por isso todo o poema se beneficia dessa ambigüidade da forma nominal, que permite enunciar algo que à primeira vista parece uma ação, um movimento, mas na verdade é um estado definitivo, imóvel, estático.

Interessante é como Bandeira define a sua “morte absoluta” em oposição à imortalidade dos gregos da Ilíada, ainda que se defina pelos termos deles. Os heróis queriam ser lembrados para sempre, isto é, queriam que suas ações tivessem uma espécie de efeito duradouro; Bandeira quer a revogação ou a ausência total de efeitos, para poder ser legítima e devidamente esquecido. Isto é mais importante do que a questão da vida eterna, que aparece apenas em três versos, e mesmo assim colocada em xeque. O que Bandeira gostaria é de uma passagem para a inexistência.

Mais interessante ainda é que, apesar desse desejo de morrer completamente, o poema não expresse em nenhum momento a vontade de nunca ter nascido, nem maldiga a vida sob nenhum aspecto. Existe apenas o desejo de não deixar marcas. Seria demais, talvez, ler aí o desejo de causas sem efeitos, de um bônus sem ônus. Mas o que pode haver de tão indesejável nas conseqüências de nossas ações?