A Torre e o Príncipe: assombros de Lampedusa

Por Rodrigo Duarte Garcia

“Quando se chega ao declínio da vida, é preciso tentar reunir o quanto possível as sensações que passaram por nosso organismo. Poucos podem assim ter sucesso em criar uma obra-prima (Rousseau, Stendhal e Proust), mas todos deveriam, de algum modo, buscar preservar as coisas que sem este leve esforço estariam perdidas para sempre”.

A afirmação é de Dom Giuseppe Tomasi, Duque de Palma, Príncipe de Lampedusa. Aos 58 anos, depois de uma vida toda imersa em leituras, ele começava a escrever sua autobiografia – I luoghi della mia prima infanzia -, na monumental tentativa de preservar um mundo que se lhe escapava das mãos, em ruínas. Tendo por modelo e inspiração La vie de Henri Brulard, de Stendhal, Tomasi di Lampedusa não conseguiu fazer dos seus apontamentos de primeira infância uma obra-prima, como o haviam feito os franceses em que se espelhava, mas o fato é que esse processo de atualização da memória abriu-lhe as portas para uma produção literária que iria consumir os seus últimos três anos de vida e resultar no assombroso O Gattopardo, certamente um dos maiores romances do século XX.

E não foram poucos os degraus até esse longo resgate. Giuseppe Tomasi nasceu em Palermo, a 23 de dezembro de 1896, e alguns dias depois morreu-lhe a única irmã, atacada pela difteria. Foi educado em casa por um preceptor – mais tarde cursaria o liceu clássico –
e desde cedo aprendeu o francês e o inglês como línguas nativas, além do alemão de que se encarregava uma governanta tipicamente rígida. E, com isso, lia, lia muito. Sua paixão pela literatura francesa era imensa: tinha Montaigne como o maior escritor de prosa e, em Stendhal – para ele o autor da maior obra-prima escrita em qualquer língua, A Cartuxa de Parma -, seu herói literário. Lampedusa chegou até mesmo a escrever um breve estudo intitulado Le lezioni su Stendhal, além de outro volume sobre literatura francesa antiga, Invito alle lettere francesi del Cinquecento.

Esse amor às letras de França equiparava-se apenas à obsessão que possuía pela Inglaterra, onde esteve pela primeira vez nos anos vinte – seu tio era o embaixador italiano em Londres -, encantado por conhecer as paisagens sobre as quais lia. Além de identificar-se com os modos ingleses – ele tinha a reserva, o autocontrole e o humor irônico característicos -, era apaixonado pela literatura do old empire: amava Dickens – especialmente The Pickwick Papers – e Sir Walter Scott, de quem havia lido e relido rigorosamente todas as obras. Lampedusa também conhecia a fundo as peças dos dramaturgos elizabetanos menores e recitava, de cabeça, poemas obscuros do período da Restauração.

E, naturalmente, havia Shakespeare. Ainda criança, no pequeno teatro da propriedade de Santa Margherita Belice, assistia às peças encenadas por companhias itinerantes, e essa fixação o acompanharia por toda a vida. Lampedusa costumava trazer sempre um volume consigo – muitas vezes, Measure for Measure, a obra menor que admirava às escondidas, dizendo-a sua amante secreta -, para que se pudesse consolar ao ver alguma coisa desagradável na rua. E não hesitaria em sacrificar dez anos da vida para conhecer em carne e osso Sir John Falstaff. Ele amava os personagens de Shakespeare como pessoas reais: “em Shakespeare, não existem personagens simbólicos, mas simplesmente um número de homens e mulheres que sofrem, lutam e morrem, como nós”.

A literatura foi mesmo a vida de Lampedusa, que nunca considerou seriamente a hipótese de trabalhar. Em 1915, já morando em Roma, chegou a freqüentar a faculdade de Direito – talvez pensando em seguir carreira diplomática, como o tio -, mas deixaria os estudos inacabados ao ser convocado para servir o exército italiano. Lutou na batalha de Caporetto e caiu prisioneiro dos austríacos. Depois de algum tempo preso na Hungria, conseguiu fugir e voltar à Itália a pé.

Em 1925, numa viagem a Londres, Tomasi conheceu a baronesa Alexandra Wolff-Stomersee, da corte de Nicolau II, mulher interessantíssima e muito culta com quem acabaria se casando sete anos depois, em Riga. Viveram algum tempo juntos no Palazzo Lampedusa, mas as constantes brigas de Licy – como era chamada – com a mãe do escritor fizeram com que ela regressasse ao castelo da família, nos Balcãs. Voltariam a morar juntos apenas no auge da Segunda Guerra – à época, Lampedusa já havia herdado o título de príncipe -, quando ele e a mãe se viram obrigados a deixar Palermo para escapar dos bombardeios que destruiriam o lendário palácio de Via Lampedusa. Depois, Tomasi e Licy viveriam sem filhos na gentil decadência de um reformado palazzo de segunda linha, com o gás permanentemente vazando. Ela ajudava-o a ler as obras russas no original e ele passava o tempo folheando volumes de Conrad como um antídoto contra a estagnação da vida siciliana.

Por volta dos cinqüenta e poucos anos, Lampedusa passou a dedicar grande parte do tempo a um grupo de jovens intelectuais. Os encontros furtivos em pequenos cafés acabaram transformando-se em aulas informais de literatura que ele ministrava no palazzo de via Butera. E Lampedusa sentia um enorme prazer em poder compartilhar, na verdade pela primeira vez, toda a sua erudição e paixão pelos livros. Sentia também inveja daqueles rapazes que ainda teriam o prazer de ler pela primeira vez obras que ele já conhecia e amava a fundo. Como material para o curso, escreveu mais de mil páginas com notas sobre literatura inglesa, de Beda a Chesterton e Graham Greene. São insights brilhantes e leves, não de um acadêmico metódico e aborrecido, mas de alguém confortável em sua vasta cultura, apaixonado pelo que escrevia.

As aulas prepararam o turning point do verão de 1954, quando Giuseppe Tomasi viajou para as Termas de San Pellegrino a fim de acompanhar o primo à convenção literária de novos talentos do Salão do Kursaal. Lucio Piccolo havia enviado seus poemas a Eugenio Montale e acabou premiado no evento. Aqueles acontecimentos marcaram-no profundamente, e Lampedusa voltou da viagem com a enorme impressão de que a ali elogiada nova geração literária italiana – inclusive o seu primo – não passava de um bando de beletristas. Ele diria por carta a um amigo, no Brasil: “Estando matematicamente certo de que eu não era mais estúpido do que Lucio, sentei à minha escrivaninha e escrevi um romance”.

De fato, a partir de então começaria a produzir diariamente, levando a cabo uma obra pequena, composta de O Gattopardo, sua autobiografia, alguns ensaios e uns poucos contos: I Gattini siechi (na verdade, o primeiro capítulo de um romance inconcluído); La gioia e la legge; Linghea; e Il mattino di un mezzandro. Morreria três anos depois, no verão de 1957, vítima de câncer pulmonar, sem ver o seu grande livro publicado.

 

É interessante acompanhar o percurso da produção literária de Lampedusa, partindo das aulas informais até que iniciasse O Gattopardo, depois do evento em San Pellegrino. Se a princípio escrevia apenas “pour s’amuser”, como dizia, Tomasi aos poucos foi sentindo a necessidade de ordenar as reminiscências pessoais como aquela urgente forma de preservação, o que explica o projeto paralelo de botar no papel os apontamentos de I luoghi della mia prima infanzia. No entanto, não demorou muito para que topasse com as limitações artísticas de uma simples memorialística. A certa altura, a amplitude do objeto perseguido obrigou-o a deixar de lado a autobiografia – que acabaria para sempre inconcluída -,
e a dedicar-se integralmente à construção de O Gattopardo, uma obra espelhada naquelas experiências vividas, engrandecidas por todo o senso estético e a profunda erudição que o faziam ser conhecido por “Il Mostro”.

A comparação entre O Gattopardo e I luoghi della mia prima infanzia é importante para que se perceba o verdadeiro alcance de uma obra-prima. Em suas Lectures on Literature, Vladimir Nabokov dizia que a literatura não nasceu no dia em que um garotinho Neandertal saiu correndo pelo vale, gritando “o lobo, o lobo”, com o bicho em seu encalço; mas sim no dia em que esse mesmo menino saiu correndo pelo vale, gritando “o lobo, o lobo”, e não havia nada à vista. O poeta é mesmo um fingidor. O autor transfere para a obra sua experiência da realidade e do humano, criando ambientes e paisagens, personagens e detalhes que se incorporam e expandem o universo do leitor. Civilizam-no. E o prazer que experimentamos ao mergulhar na voragem de cada detalhe é um reflexo – essencial –
desse resgate que a linguagem faz da realidade nas grandes obras da literatura.

Evidentemente, o caráter verídico não impede que I luoghi della mia prima infanzia seja formado por relatos deliciosos de um tempo que Lampedusa recorda como “o Paraíso na terra”. São descrições lindas de palácios e seus jardins, as viagens empoeiradas nas doze horas de trem para a propriedade de Santa Margherita Belice – onde a família passava os meses de verão -, a solidão e o lento correr do tempo entre leituras naquela casa imensa de trezentos quartos, e em que moravam apenas doze pessoas. Ele fala de cada canto e nós ficamos a enxergar a galeria de seus antepassados desde 1080, repleta de quadros com títulos e atos de bravura: “Riccardo, defendeu Antioquia contra os Infiéis”; as excursões de almoço na “cabana” de caça – impossível não imaginar o maccaroni com prosciutto e trufas, seguido de peru e bolinhos gelados, uma especialidade preparada pelos cozinheiros que chegavam ao amanhecer para deixar tudo pronto. O gênio de Lampedusa aparece em cada detalhe, no estilo sem pressas com que pinta – de fato, à maneira de um quadro – a Sicília da sua infância.

Mas a verdade é que aquilo não lhe poderia bastar. O Palazzo Lampedusa estava no chão, o mundo mudava vertiginosamente e o resgate artístico de certos valores e experiências teria de ir além das recordações autobiográficas, de modo que a realização de O Gattopardo foi esse passo adiante para que ele buscasse, realmente, “preservar as coisas que sem este leve esforço estariam perdidas para sempre”. E havia muito a ser preservado.

Como o Yeats de The Tower – sobre quem Lampedusa havia publicado um ensaio no periódico genovês Le opere e i giorni –  era hora de escrever seu testamento: “E para diante lanço a imaginação / Sob o luminoso dia que declina, e invoco / Imagens e memórias / De ruínas ou de árvores antigas, / Pois a todos interrogarei” (trad. José Agostinho Baptista). Tomando por base as reminiscências de infância, os diários do avô, sua larga erudição e o talento brutal, Lampedusa escreveu um dos livros mais sublimes do século, recriando aquele mundo que se desfazia, um mundo em defesa do belo contra o filistinismo de burgueses sem educação, em defesa de valores morais e estéticos que então pareciam completamente esquecidos.

 

O Gattopardo é um romance do gênero “história de família” – segundo Otto Maria Carpeaux, o maior deles – e conta a história de Dom Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, no contexto do Risorgimento, a unificação italiana. A princípio, Lampedusa havia pensado o livro como o relato de vinte e quatro horas da vida do seu bisavô, no desembarque das tropas de Garibaldi em Marsala. Depois, reconhecendo que “não saberia fazer o Ulysses”, estruturou-o em três períodos de vinte cinco anos, de maneira que acompanhamos a trajetória dos Salina entre 1860 e 1910, em um testemunho impotente do declínio da aristocracia siciliana.

O Príncipe de Salina é um assombro: a personalidade forte – com todas as fraquezas a ela inerentes – e o porte físico de uma liderança natural que dão contornos à sua aguda percepção dos acontecimentos e à resignação orgulhosa de quem vê o inevitável na estupidez de uma revolução que, como todas, quer reinventar o mundo à base de abstrações conceituais. Ele procura o exílio solitário na companhia do cachorro Bendicò, em longas caçadas e na astronomia – o bisavô de Lampedusa fora realmente o descobridor de dois asteróides -, amargurado por não reconhecer nos filhos o próprio caráter. Mas enxerga-se em Tancredi, o sobrinho charmoso que adere à causa de Garibaldi e desaponta as esperanças apaixonadas de Concetta – sua filha sem-graça – para entregar-se à estonteante Angelica Sedàra. Há também Don Calogero – pai de Angelica -, enriquecendo rapidamente e ultrapassando a fortuna dos Salina, sem o menor gosto ou educação; e o espetacular Padre Pirrone, capelão jesuíta da família, que observa o desenrolar das coisas acuado perante o anti-clericalismo violento da revolução.

As mudanças vertiginosas e as escolhas morais diante da agitação social e política, a grandeza de algumas atitudes, a covardia de outras, os dramas pessoais da inevitável passagem do tempo e da presença insondável da morte a cada instante, tudo isso é construído por Lampedusa com riqueza de cenas, paisagens e detalhes memoráveis, em um estilo límpido que, ao menos em tese, tinha Stendhal por modelo. Ele adorava citar o francês: “Meu ideal de estilo é aquele do Código Civil”, entendendo que a perfeição estética estava em “sugerir e evocar as paisagens e a atmosfera com toques sutis, sem quase nunca descrever”. Admirava grandemente a capacidade que escritores não-descritivos tinham de dar um “sentimento da paisagem” através de personagens e eventos, como a Escócia rural de Shakespeare, em MacBeth, ou a frase que Tolstói entendia como o máximo da concisão para descrever o inverno russo: “uma ponte de madeira sobre um riacho congelado, cruzada por duas botas andando sozinhas”.

No entanto, a verdade é que essa aversão à descrição não encontra eco na prática – ao que devemos agradecer. O Gattopardo é repleto de paisagens detalhadas e passagens muito belas, em um estilo que reflete o caldeirão de influências de Lampedusa, com o apuro estético francês – alternando muitos adjetivos com a exatidão cirúrgica do mot juste – refreado à justa medida pela ironia e o humor auto-depreciativo tipicamente ingleses.

Ele escreve sobre o perfume de laranjais que anulam a paisagem noturna e, da mesma forma – também por aromas – descreve o jardim dos Salina: “Mas o jardim, contido e macerado entre as suas barreiras, exalava perfumes untuosos, carnais e suavemente podres, como os aromáticos líquidos da decomposição destilados pelas relíquias de certas santas; as cravinas sobrepunham seu cheiro apimentado ao perfume protocolar das rosas e ao odor oleoso das magnólias que pendiam pesadas nos cantos; leve, corria por baixo destes o perfume de hortelã misturado ao cheiro infantil da acácia e ao aroma confeitado da murta, e por cima do muro laranjeiras e limoeiros transbordavam o perfume de alcova das primeiras flores. Era um jardim para cegos” [1]. Talvez essa seja também a melhor definição da literatura já feita: um jardim para cegos.

Em outra passagem, ele descreve com delicadeza o cair da tarde: “Tendo chegado ao alto da escadaria que através de lentas curvas e longas pausas nos patamares subia do jardim ao palácio, viram além das árvores o horizonte vespertino: do lado do mar enormes nuvens cor de tinta escalavam o céu”. Muito simples, muito bonito. E, naturalmente, há as famosas cenas dos banquetes, com “lagostas cor de coral cozidas vivas”, os “perus que o calor dos fornos dourara, as narcejas desossadas deitadas em seus túmulos de torradas cor de âmbar decoradas com as próprias vísceras trituradas, rosados patês de foie-gras sob a couraça da gelatina”.

E essas descrições não são um aspecto menor da obra. Muito pelo contrário, mostram toda a excelência artística e o prazer estético que a articulação da linguagem pode causar, resgatando a realidade em detalhes sublimes, como aquelas nuvens cor de tinta escalando o céu, do lado do mar. Em 1934, Hilaire Belloc assim justificava por que P.G. Wodehouse era então o maior escritor vivo: “A perfeição em toda arte é atingir o fim a que ela se destina. O fim da literatura é a produção de certas imagens e emoções. E o meio para esse fim é o uso de palavras em qualquer idioma; o uso perfeito desse meio é a escolha das palavras exatas, colocando-as na ordem correta”. Belloc estava certíssimo e Dom Giuseppe Tomasi fazia isso como poucos.

Naturalmente, o imaginário da maioria dos críticos da época não alcançava essa visão e o reducionismo marxista resultou em ataques ferozes a O Gattopardo. A sua riqueza de detalhes foi considerada apenas uma frivolidade decadentista e Lampedusa – já morto -, um fascista da pior estirpe.

A defesa da aristocracia contra as hordas de Garibaldi também causava arrepios na intelligentsia italiana, incapaz de perceber que a briga de Tomasi era muito maior: a guerra pela cultura e os valores espirituais do próprio mundo ocidental. Em uma cena clássica, o Príncipe de Salina tenta falar de arte com Don Calogero, mas o bom burguês, em todo seu filistinismo, só consegue pensar no dinheiro que as obras valem. Na verdade, ali é a civilização que agoniza, acuada pelos novos bárbaros de que nos fala Ortega y Gasset.

E se Lampedusa defende a figura em ruínas do gentleman, é por dar-se conta de que um homem bem-educado “no fundo nada mais é do que alguém que elimina as manifestações sempre desagradáveis de grande parte da condição humana e que exerce uma espécie de proveitoso altruísmo”. A boa educação tem para ele muito da fortaleza virtuosa que refreia os impulsos maus da nossa natureza.

No entanto, isso não implica saídas fáceis e polarizadas. Lampedusa não poupa ninguém. Há um certo cinismo, mas também a profunda percepção de que os novos tempos anunciados pela revolução não mudarão a natureza do homem. Se muita coisa será mesmo pior, por outro lado já antes os homens eram vaidosos, prepotentes, e assim continuarão. Depois da vitória fácil de Garibaldi, Dom Fabrizio recebe a visita de um mensageiro que o quer fazer Senador do novo regime, e a oposição entre os dois é evidente. Chevalley, o enviado, olha o universo dos Salina com desprezo e orgulho: “Este estado de coisas não vai durar; a nossa administração, nova, ágil, moderna, mudará tudo”. De seu lado, o Príncipe mantém a dignidade de não se deixar seduzir pelo cargo, mas se resigna às mudanças inevitáveis: “Tudo isso, pensava, não deveria poder durar; mas vai durar, sempre; o sempre humano, é claro, um século, dois séculos…; e depois será diferente, porém pior. Nós fomos os Gattopardos [“Leopardos”] e os Leões; os que vão nos substituir serão pequenos chacais, hienas; e todos, Gattopardos, chacais e ovelhas continuaremos a crer que somos o sal da terra”. A falta de senso histórico e temporal é mesmo a mãe do orgulho.

 

Em O Gattopardo, Lampedusa retrata com genialidade as tensões que envolvem a passagem do tempo, entre a permanência do que é possível e as mudanças do mundo. Se a precariedade da vida é a realidade humana mais imediata, essa presença incessante da morte é contrastada com detalhes e instantes tão intensos quanto o protesto dos reis e o consenso dos mártires – copyright Bruno Tolentino. E o livro torna esses instantes também nossos.

Talvez a cena mais bonita – e marcante – ocorra durante o baile no palácio Ponteleone. Enfastiado, Dom Fabrizio isola-se na biblioteca e, a partir de uma reprodução pendurada à parede de A Morte do Justo, de Greuze, começa a meditar sobre a própria morte: com que roupa seria enterrado – talvez aquele mesmo fraque -, a necessidade de fazer alguns consertos no túmulo da família, etc. A essa altura, é surpreendido pelo sobrinho Tancredi e a bela Angelica Sedàra: “Os dois jovens olhavam o quadro com absoluta indiferença. Para ambos o conhecimento da morte era puramente intelectual, era, digamos, um dado cultural e nada mais, não uma experiência que lhes varasse a medula dos ossos. A morte existia, sim, sem dúvida, mas era coisa para uso alheio”.

Angelica pede-lhe então uma dança e o Príncipe dirige-se ao salão, contentíssimo. Dançam: “Os enormes pés do Príncipe moviam-se com delicadeza surpreendente e os sapatinhos de cetim da sua dama não correram o risco de serem aflorados; a patorra dele apertava-lhe a cintura com vigorosa firmeza, o queixo encostava nas ondas letéias dos cabelos dela; do decote de Angelica subia um perfume de bouquet à la Maréchale, sobretudo um aroma de pele jovem e lisa. […] A cada rodopio um ano lhe caía dos ombros; logo estava se sentindo como aos vinte anos quando nesse mesmo salão dançava com Stella, quando ainda ignorava o que eram as desilusões, o tédio, o resto. Por um instante, aquela noite, a morte foi novamente aos seus olhos ‘coisa dos outros'”. Há melancolia, mas uma doce melancolia. E grandeza em cada palavra.

A passagem é mesmo tremenda e o talento de Lampedusa equilibra as tensões da incessante marcha do tempo com aqueles breves instantes de eternidade. Algum tempo depois, no leito de morte, o Príncipe de Salina faz o balanço da sua vida – o trecho é de um lirismo irônico e comovente – e recorda-se desses momentos fugazes, que talvez fossem “doações prévias das beatitudes mortuárias”.

O Gattopardo é, ao mesmo tempo, um longo adeus e o esforço monumental de preservação contra a finitude inevitável. Aqui nesse mundo, o resgate artístico pela memória é tudo o que resta para que nossos impulsos rumo à imortalidade não pereçam. E fazê-lo, atendendo à vocação insondável, é um dever do escritor. Em Moby Dick, Ismael é o único sobrevivente do desastre e a ele cabe contar a tragédia do Pequod. O Príncipe de Lampedusa talvez tenha sido também o último sobrevivente de um mundo imemorial, e a ele coube preservá-lo, transcendendo as limitações da tarefa com o sublime e a beleza de palavras que fazem da experiência estética esse espelho misterioso com seus breves lampejos de eternidade.

 

Rodrigo Scalamandré Duarte Garcia, poeta, escritor e ensaísta, é formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e trabalha como advogado em São Paulo.

 

 


 

[1] Todas as citações de O Gattopardo remetem à excelente tradução de Marina Colasanti. Rio de Janeiro: Record, 2006.