Agir com vistas ao bem?

Por Júlio Lemos

 

O esplendor das ações

 Um homem anônimo passa diante de um prédio cujo segundo andar está em chamas. Labaredas e fumaça espessa saem pelas janelas. Não há nenhum carro de bombeiros por perto. Ele ouve os gritos de uma mulher e o choro de uma criança vindos do segundo andar, e prontamente entra no edifício e sobe as escadas. Chegando ao segundo andar, penetra no apartamento e vê que a comunicação da sala com um dos quartos está obstruída por uma porta e outros móveis em chamas. Supondo que a mulher e a criança estariam no quarto, toma uma mesa e tenta derrubar a porta com ela; a fumaça quase o faz desmaiar, mas ele é bem sucedido. Entrando no quarto, toma a criança nos braços e sai com ela e a mulher do apartamento, chamando em seguida uma ambulância e os bombeiros.

Mais tarde, quando alguém da imprensa lhe pergunta pelo motivo dessa boa ação, o homem anônimo diz simplesmente: “Fiz o que tinha de fazer”, e vai para casa.

Embora imaginário, o caso é verossímil e nos leva a considerar uma pergunta básica em filosofia moral: em que consiste “fazer o bem”? E porque ações como a desse homem anônimo que salva uma criança e uma mulher nunca perdem o seu caráter admirável?

O niilismo ético, bem como as outras variantes da moral contemporânea nos levam a duvidar, com certa freqüência, de que haja uma base genuína para a ação humana. Será a virtude apenas uma ilusão reservada aos ingênuos?

Certamente não pensamos assim, ao menos na prática, especialmente quando o assunto diz respeito a nós mesmos e às pessoas que estão próximas de nós. Por mais que neguemos um fundamento essencial, verdadeiro, para as virtudes, continuamos a valorizar e a agradecer sinceramente a presença ao nosso lado de uma pessoa que as tem, e, vice-versa, desagrada-nos quem não as vive. Nunca aprovamos alguém que escreve um artigo jornalístico só para exibir o seu “amor aos pobres”; condenamos a corrupção, e até os homens de governo que fazem boas obras, mas com fins eleitoreiros; exigimos que os outros respeitem as nossas mães e irmãs, e assim por diante.

  

De acordo com os fatos da vida

 A idéia de Aristóteles, que usou várias vezes a expressão tou kalou heneka, “agir com vistas ao bem”, era justamente essa: defender a virtude a partir da nossa experiência comum. A sua tese é que não é necessário procurar por outras razões além do próprio esplendor das ações feitas pelo motivo certo.

Platão, antecessor de Aristóteles, diz-nos na sua Carta VII que “palavras acadêmicas não nos podem dizer o que é o bem” (com perdão da paráfrase); é somente “depois de uma convivência constante com aquilo que é a matéria mesma do saber, de uma real convivência com ela, é que se produz na alma esse conhecimento, como uma luz que se acende” [1].

O próprio Aristóteles repete freqüentemente que só se pode saber o que é um homem virtuoso observando e convivendo ativamente com um deles; só assim podemos apreender o que é a virtude e, portanto, o que é o bem. Aquilo que é evidente – ex videntia, que está “à vista” – não pode ser transmitido ou definido por palavras: cada qual tem de descobri-lo por si mesmo. A vida de Sócrates, que não deixou nada escrito, mas cujos atos e palavras marcaram profundamente os que conviveram com ele e tentaram transmitir-nos essa experiência, é um exemplo disso.

Em matéria de razão prática – dessa capacidade que nos permite agir bem -, não se dá conhecimento no mesmo sentido em que ele se dá na metafísica ou nas ciências naturais.

Por exemplo, podemos apreender com a inteligência a essência de um cavalo, ou seja, aquilo que faz com que ele seja um cavalo e não uma árvore, e captar com os sentidos os seus vários acidentes, como a sua cor branca, que vemos, ou o seu peso, que pode ser medido com uma balança.

Mas não podemos saber exatamente em que consiste a coragem; podemos, sim, reconhecê-la, e nossa opinião a respeito dela terá um grau de certeza adequado à natureza complexa e variada das ações humanas, que, apesar do seu valor universal, só existem e fazem sentido num determinado contexto histórico, social, pessoal etc. É impossível captar com um olhar esse contexto, ou pesá-lo em uma balança; e muito menos avaliar infalivelmente a retidão da ação corajosa.

Nesse sentido, diz Aristóteles no livro 10, capítulo 8 da Ética a Nicômaco – e esse ponto nunca será suficientemente enfatizado – que a verdade, em assuntos práticos, é discernida de acordo com os fatos da vida [2]. Diante da pergunta: “Alice agiu bem ao vender a sua mansão e doar o preço recebido à instituição filantrópica x?”, temos de poder julgar, com o grau adequado de certeza, se essa conduta está justificada de acordo com as suas circunstâncias. Para isso precisaremos investigar o caso, levantando os dados pertinentes. Necessitamos saber se ela ainda ficou com um lugar onde morar, se checou a idoneidade da instituição, se realmente queria ajudá-la e não simplesmente obter reconhecimento social, ou mesmo se não queria se vingar dos futuros herdeiros dessa mansão.

  

Segundo a razão

 A ética filosófica lida, com efeito, com os critérios para uma ação virtuosa. Esses critérios é que constituem o bem da ação.

Ora, se o que distingue o homem dos animais, colocando-o num patamar mais elevado, é precisamente a razão (logos), agir de acordo com a razão fará com que determinada ação seja propriamente humana. É por isso que chamamos “animal” a um homem habitualmente cruel. Qualquer filósofo, na sua vida privada, por mais que na vida acadêmica empregue argumentos supostamente filosóficos para aprovar o comportamento irracional, condenaria prontamente alguém que não agisse de acordo com a razão.

Um exemplo: Alberto, professor associado do Departamento de Filosofia provido ao cargo com a tese “A transgressão como modo de vida em Bataille”, descobre que um antigo aluno seu, Carlos, fraudou o concurso para professor titular do mesmo departamento, ocupando o lugar que ele, Alberto, planejava ocupar há muito tempo. Alberto então procura Carlos e tenta convencê-lo a buscar uma saída honrosa, confessando a fraude. Carlos, em contrapartida, argumenta que Alberto defendeu por vinte anos a transgressão a todas as regras racionais, particularmente as da convivência, nas suas aulas sobre Bataille; e que, além disso, Carlos aprendeu dele essa atitude de desprezo. Se assumir a sua contradição e continuar condenando abertamente a conduta de Carlos, Alberto se verá obrigado a levar o caso às autoridades, pedindo a abertura de um processo administrativo a fim de anular o concurso. No requerimento inicial, não pode, mesmo a contragosto, deixar de acrescentar frases como “a atitude do requerido choca-se frontalmente com os mais importantes princípios do direito administrativo e da ética universitária”, etc. etc.

 

 O kalón

 Pensemos agora, mais diretamente, na expressão tou kalou heneka, “agir com vistas ao bem”. Ela aparece seis vezes na Ética a Nicômaco, uma delas na seguinte definição: “ações virtuosas são sempre nobres e feitas em razão do que é nobre” (1120a). Esse princípio é em seguida aplicado ao homem liberal, que dá a quantidade certa de dinheiro para a pessoa certa e no momento certo, agindo assim em razão do kalón; isso em contraposição ao homem desprovido de virtude, que dará, por exemplo, uma gorjeta exagerada antes de um serviço prestado, querendo afetar generosidade.

Ela aparece em outra passagem aplicada ao magnificente – aquele que sabe despender dinheiro em obras de valor -, que investirá grandes somas numa obra adequada, buscando o kalón (1122b). Ao contrário, o homem vaidoso fará grandes obras buscando não o kalón, mas a auto-exibição (1123a).

No livro III, é aplicada ao homem corajoso, que enfrenta, mesmo com medo, qualquer situação de perigo, mas, novamente, “com vistas ao kalón” (1115b). O covarde terá medo daquilo que não representa perigo, ou temerá de um modo inadequado, ou no momento inadequado, etc. Ou, o que é pior, enfrentará uma situação de perigo por um motivo vil, como alguém que desafia a morte para praticar um assalto. Isso porque, diz Aristóteles, “a coragem é kalón, e portanto a finalidade dela também o é”.

Para tornar mais inteligível essa expressão, empregaremos aqui a distinção entre os três possíveis objetos de uma ação: o kalón, o útil e o prazeroso (1104b31). Ela nos leva a uma importante conclusão: agir com vistas ao kalón não é agir em função do prazer, e nem agir em função da utilidade, mas sim agir em função do bem inerente à própria ação moral [3].

Isso significa que, na teoria aristotélica, a máxima perfeição – a virtude – é atingida quando o agente moral realiza as ações por elas mesmas, ou seja, movido pelo seu valor intrínseco, e não pela sua utilidade ou pelo prazer que causam (o que implica, desde já, uma refutação do utilitarismo e do hedonismo).

Posso abster-me de tomar parte em um banquete pouco frugal, por exemplo, (i) porque estou seguindo um regime alimentar, (ii) porque assim vou poder assistir ao meu seriado favorito, (iii) ou porque quero aprender a ser uma pessoa mais moderada. Não há problema moral algum com qualquer uma dessas alternativas; o que há é uma hierarquia entre elas. Age virtuosamente quem, nesse contexto, escolhe agir moderadamente a fim de ser uma pessoa moderada (kalón), e não simplesmente emagrecer (utilidade) ou trocar um prazer por outro (prazer). Na vida real, essas situações são muito mais complexas, mas a phrônesis (prudência) permite selecionar os elementos essenciais da ação e do contexto e decidir com base neles.

Kalón será, aqui, portanto, o valor intrínseco da ação: aquilo que constitui a sua beleza moral (honestum, na tradição latina), a sua correção e até a sua simetria [4].

  

Orientação para a felicidade

 Alguém objetará que é praticamente impossível ao agente considerar esse valor no momento em que realiza a ação. A objeção procede em parte: conscientemente, o agente virtuoso sequer considera a razão última do seu agir [5]. “Eu só quis tirar o pobre garoto daquele quarto em chamas. Fiz o que tinha de fazer”, dirá o homem anônimo da nossa situação inicial.

Isso não impede, porém, que na realidade o agente tenha agido em razão desse motivo intrínseco, pois “o valor moral da ação” consiste justamente em “salvar uma pessoa indefesa em perigo”, sem qualquer interesse numa eventual recompensa em termos de utilidade, prazer ou boa fama.

Parece fácil, mas temos experiência de como é raro alguém agir apenas por um motivo nobre e poder dizer, sem mentir: “Fiz o que tinha de fazer”.

A explicação para esse valor intrínseco da ação virtuosa reside na finalidade última do homem: a eudaimonia, a felicidade. Se a vida feliz ou bem-sucedida é a vida virtuosa, a conclusão óbvia é que as ações virtuosas têm o seu fim último nelas mesmas (afinal, não faz sentido procurar a felicidade como meio para outro fim). Procuramos ser corajosos porque ter coragem é condição sine qua non para que um homem possa suportar as dificuldades da vida e procurar com persistência os “bens árduos”, como a prática da justiça, a ajuda aos outros, a paciência nas contrariedades e até a estabilidade emocional [6]. Em poucas palavras: procuramos ser corajosos porque só assim seremos felizes, pois a coragem é parte integrante da felicidade.

A ética aristotélica logra um alto grau de credibilidade justamente por deixar transparecer o auto-evidente esplendor – to kalón! –
das ações moralmente corretas. Esse brilho é difícil de descrever nos tratados de filosofia,

mas podemos vê-lo em qualquer ação realiza-
da diante de nós for the sake of the fine, como a expressão grega costuma vir traduzida nas versões inglesas.

E o que isso tem a ver conosco? Tudo. Aristóteles não estava concebendo simplesmente uma teoria válida para o seu tempo: pretendia descrever fatos essenciais do comportamento humano. Por incrível que pareça, grande parte da confusão moral da modernidade se deve ao esquecimento de que a ética implica uma orientação para a felicidade, conceito substituído pelo de um conjunto de preceitos e tabus.

A palavra “felicidade” desgastou-se, obviamente, com o tempo, mas sabemos muito bem, embora confusamente, o que ela quer dizer: viver à altura das potencialidades humanas, buscando a excelência em tudo o que fazemos, sem esquecer da nossa fragilidade.

Falei em “bens árduos” – e a felicidade é o bem árduo por antonomásia – porque não se pode ignorar que a exc


 

[1] Stephanus 341c; tradução nossa, como as seguintes. Ver também Robert Spaemann, Moralische Grundlagen. Munique: C. H. Beck, 1982, págs. 1-3 (prólogo).

 

[2] 1179a18-19. Citamos conforme as páginas e seções da edição grega de Bekker, utilizada em quase todas as boas traduções.

 

[3] Por exemplo na Ética Eudêmia 1249b19.

 

[4] Cf. Nicomachean Ethics, trad. Terence Irwin, Indianapolis: Hackett, 1999, pág. 329.

 

[5] Especialmente porque é característica da virtude o agir prontamente. A ação virtuosa é fruto de uma disposição estável do agente.

 

[6] Embora Aristóteles tenha uma definição um tanto particular da coragem – seus exemplos incluem situações específicas como a guerra, mas parecem excluir, por exemplo, o enfrentamento da doença -, preferimos adotar aqui a concepção mais ampliada dessa virtude, segundo o desenvolvimento posterior da ética das virtudes (veja-se Josef Pieper, Vom Sinn der Tapferkeit, München: Kösel, 1957).