Dialética da transgressão

Por Carlos Felipe Moisés

Cerca de meio século atrás, foi moeda corrente, entre nós, a idéia de uma “ciência da literatura”, que deveria conduzir, um dia, à fixação de um “vocabulário técnico”, básico, capaz de garantir a inteligibilidade de todos os textos críticos, assim como um grau mínimo de objetividade aos juízos de valor. O obstáculo a vencer era o “impressionismo”, designação genérica dos vícios e distorções de uma crítica subordinada às idiossincrasias ou à suposta “autoridade” do crítico, quando não à força da inércia. A estratégia prioritária pedia a aniquilação das “falácias” (biografismo, historicismo, psicologismo, sociologismo etc.), isto é, das visões apriorísticas, com base nas quais a obra literária seria sempre reduzida à condição de mero exemplo comprobatório de generalidades onipotentes e onipresentes, ponto de partida e, ao mesmo tempo, de chegada do esforço crítico.

A primeira grande conquista, visível já no início dos anos 60 (na Europa e nos Estados Unidos, algo equivalente vinha ocorrendo fazia algum tempo), foi o “primado do texto”, passo inicial no rumo de uma definição suficiente da “especificidade” literária. Na época, quem lidasse com arte cinematográfica, por exemplo, referia-se, com ar grave e pleno de intenções, ao “específico fílmico”, no mesmo diapasão com que os interessados em artes plásticas tratavam de isolar, fenomenologicamente, o “específico pictórico”, uns e outros a praticar seu ato de devoção a uma espécie de pureza substancial, exclusiva de cada linguagem, vale dizer o fundamento ontológico sem o qual não seria possível assegurar que um quadro é só quadro ou que um filme é só filme, de modo que nenhum deles corresse o risco de se confundir com outro objeto qualquer. Se assim era, um pouco por toda a parte, a literatura não poderia ficar atrás.

Partiu-se então no encalço do “específico literário”, que só poderia estar no texto, e as condições para que a empreitada fosse bem sucedida eram claras: os estudos literários só farão jus ao status superior de “ciência” se lograrem, primeiro, definir adequadamente seu objeto; se forem capazes de formular um método próprio, alicerçado em rigor e objetividade; e, por fim, se da empreitada resultar uma terminologia representativa das “verdades” comuns, que dariam embasamento ao sonho realizado: uma ciência geral da literatura. Se essas condições eram claras, não o era, porém, na mesma medida, o fato de que se tratava de uma concepção demasiado estreita de ciência, de extração francamente positivista, a se arrastar século XX adentro. Não é de estranhar, pois, que hoje estejamos mais distantes dessa ciência do que estávamos meio século atrás.

Tem sido inegável, desde então, o refinamento dos estudos literários, com notórios avanços no rumo da investigação epistemológica e da fundamentação teórica, não raro excessivas em seu arremedo de “ciência”, em sua sofisticação terminológica e no culto fetichista do mais moderno e avançado, ainda que não passe de velharia requentada. Um pouco por isso, o que passou a prevalecer foi o relativismo generalizado. Hoje, ninguém hesita em aceitar que cada caso é um caso, cada juízo é um juízo, todos igualmente válidos.

Um dos efeitos do relativismo foi a perda progressiva, nos últimos 50 anos, das referências e critérios comuns, em matéria de juízo de valor. Antes, a poeira dos equívocos naturais, ou das distorções mali­ciosas, em pouco tempo assen­tava e todos fica­vam sabendo quem era quem – que autores, obras e tendências mereciam de fato o apreço dos leitores e esta­vam aí para ficar, embora não indefinidamente. Meio século atrás, essa espécie de acordo tácito começou a se desfazer, graças, em parte, à drástica redução do espaço concedido à litera­tura pela imprensa, espaço até então ocupado pela crítica especializada, cujos juízos se faziam acessíveis a todos os interessados. A partir daí, especialistas passaram a dialogar com outros especialistas, a portas fecha­das, e os juízos de valor com chance de vingar foram aos poucos se subordinando à impondera­bilidade da troca de favores e do jogo de conve­niên­cias. O poder literário, antes decorrente do mérito e de alguma força iner­cial, passou a de­pender da capaci­dade de persuasão dos escritores que se em­pe­nharam no es­forço da autopromoção, ou dos feudos formados pelos grupos de pressão, que se multi­plicaram pelo país. Mérito, qualidade e talento foram sendo substituídos por uma boa es­tratégia de marketing.

Antigamente, os mais jovens se queixavam, alguns com razão, de que não tinham vez, mas muitos acreditavam que a dita “vez” só poderia resultar do vácuo deixado por algum velho desistente, como se a lógica das academias, com seus 40 imortais, valesse para a generali­dade do sistema literário, e como se todos os velhos fossem invejosos e arrivistas, lutando para não perder o lu­gar. Hoje, em compensação, jovens e velhos já não têm de que se queixar, hoje todos têm vez, isto é, todos os que se dispuserem a fazer que sua vez aconteça, custe o que custar, antecipando-se ao agora inviável julgamento de consenso. Mas só os mais ingênuos ficarão espan­tados: entre esse quadro e o anterior, a diferença é de grau, não de substância. A diferença é que, antes, só cor­riam atrás da glória efêmera os menos dotados, quase sempre morrendo de vergonha, cien­tes de que aquele acordo tácito cedo ou tarde se incumbi­ria de desmascará-los, colo­cando as coisas no devido lugar.

  

O exorcismo da história

 Um dos fatores determinantes desse processo tem que ver com o fantasma da historiografia literária, ou dos estu­dos de literatura concebidos como visão panorâmica, exor­ci­zado quando entre nós se esbo­çou o sonho de uma ciência literária. Conse­qüência ine­vitável do primado do texto, conde­naram-se os prestimosos excursos generali­za­dores, que se atinham aos estilos de época, às tendências dominantes e ao contexto socio­cultural, para em seguida aí “situar” os escritores “representativos”, descartando-se os demais. Muito justa a condenação: essa espécie de visão fornecia, da literatura, uma imagem claramente distorcida, pois negligenciava o que o fenômeno literário tem de específico: o texto e sua singularidade. Tal concepção fazia a delícia de críticos que se lançavam, com apetite, aos aperitivos e entradas, e se ausentavam da mesa no momento em que seria servido o prato principal; e ao mesmo tempo frustrava leitores mais exigentes, incapazes de enquadrar, a contento, qualquer autor em qualquer estilo de época.

Mas parece ter havido algum exagero nessa condenação sumária: o que havia a condenar era tão só a má qualidade de uma história contada por historiadores desprovidos de estofo crítico e, portanto, impossibilitados de lidar com as diferenças. Por outro lado, o exagero conduziu as correntes baseadas no primado do texto a uma espécie de beco-sem-saída, condenando a obra literária a passar por objeto auto-suficiente, fora do espaço e do tempo. Condenou-se a (má) historiografia e atirou-se no ralo a historicidade, ou seja, a consciência do processo histórico, que faz da literatura um conjunto orgânico de fenômenos inextricavelmente interrelacionados, diacrônica e sincronicamente.

Em sintonia com o que veio ocorrendo nas demais esferas da cultura moderna e pós-moderna, a história deixou de ser entendida como “passagem” de vetores que transitam do passado para o presente, permitindo gerar o futuro, e se converteu em tábula rasa, espécie de eterno presente que parece ter zarpado com sofreguidão no rumo do futuro, deixando para trás todo o passado inútil. Mas só parece. Na verdade, esse presente de ritmo freneticamente acelerado não partiu na direção de parte alguma, está desde o início encalhado no mesmo lugar, em meio ao atravancamento de ruínas produzidas pela tempestade-progresso que, na conhecida visão de Walter Benjamin, arrasta o “An­gelus Novus”, de Paul Klee, irresistivelmente, e de costas, na direção do futuro.[1] O presente esvaziado de antecedentes não tem como gerar futuro al­gum, muito menos o futuro redentor prometido pelo fetiche da novidade absoluta, sempre prestes a se realizar mas que jamais se realiza, pois, em seguida à sua apoteótica aparição, tudo será sempre engolfado pela redun­dância de um novo presente, que se pretende presente e novo para todo o sempre.

Antigamente, não havia dificuldade em “situar” um Gregório, um Gonzaga, um Gonçalves Dias e até mesmo um Bilac ou um Cruz e Sousa, cada qual em seu respectivo contexto ou estilo de época. Isso era bom? Difícil admitir que sim. Era quando muito tranqüilizador, pois propiciava a confortante sensação de que a literatura, a despeito de sua impressionante heterogeneidade, não passava de um imenso armário, com suas estantes e prateleiras, suas gavetas e escaninhos muito bem arrumados: tudo no devido lugar. Mas, e hoje? Hoje não temos onde “situar” nenhum dos escritores do século XX, a não ser que continuemos a enquadrá-los nos mesmos compartimentos do velho armário, carunchado e inútil, e transformado em caricatura, pelo acréscimo (da metade do século para cá) de novas gavetas e prateleiras, ainda mais falsas que as da tradição anterior.

A objeção, claro está, será imediata: não temos onde “situar” nossos escritores porque não estamos interessados nisso, não é esse o alvo dos modernos estudos literários. Um passo adiante foi dado e há que ser coerente. Mas, se assim é, por que insistimos, todos nós, em… situá-los? Por que não levamos a coerência até o fim e abrimos mão de certo historicismo, que nos incita a comparar este autor àquele outro, para invariavelmente detectar tendências comuns, que permitam agrupá-los em esferas de influência e afinidade? Aquela equivocada historiografia, de fato, morreu, mas a necessidade de perspectiva histórica e o apetite pelas visões micro ou macropanorâmicas permanecem, mais vivos do que nunca.

Nos anos recentes, à medida que vai ganhando corpo a consciência do exagero, já se esboça a reação primária do privilégio concedido aos chamados “estudos culturais”, variante da contracultura dos anos anteriores. Tais estudos empenham-se em vasculhar um pouco de tudo, nos arredores do fenômeno literário, agora transformado em pretexto para a veiculação de outros interesses, pouco afeitos à literatura, o que só faz reviver a velha falácia determinista, superada meio século atrás. Mas para os arautos da pseudonovidade “culturalista” nada foi superado e o que poderia representar avanço, ou correção de rota, não é senão melancólico retrocesso.

  

A hipertrofia da transgressão

 Outra conseqüência, paralela à condenação da história literária, foi a hipertrofia do conceito de “transgressão”, forjada na esteira que a antiga miragem de uma “ciência da literatura” deixou, ao implodir. Se o que pretendemos é o novo permanentemente renovado, então não há como escapar: é preciso romper com o passado (e também com o que há pouco era “novo”, mas fatalmente deixou de ser?), é preciso transgredir. Tendo migrado da esfera do religioso para a da ordem jurídica (ou das Tábuas da Lei para o Código Penal), “transgressão” acabou por se constituir, também, em categoria estética, passando a designar a postura do artista que, sentindo-se cerceado pela rigidez do sistema vigente, lute por livrar-se dele ou para torná-lo mais flexível. O receio da punição –
a divina ou a da lei dos homens – poderia funcionar como freio à transgressão generalizada, de ordem religiosa ou moral, mas, na passagem para o âmbito da arte, já não há o que temer, para além da volatilidade das metáforas: caso sua transgressão atente contra alguma regra do sistema, o artista não corre o risco de ser condenado ao inferno nem ao cárcere. E há sempre a possibilidade de o sistema ceder à pressão e os sinais se inverterem: o interdito passa a ser o que deve ser dito. Se a transgressão é claramente desencorajada pelas Tábuas da Lei e pelo Código Penal, as prerrogativas dominantes do mundo moderno, pós-iluminista, só fazem encorajar e estimular o ato transgressor. Por isso, razão tem Affonso Romano de Sant´Anna, ao constatar: “Um dos princípios da arte moderna é a transgressão. Trans­gre­dir tornou-se o primeiro e, em alguns casos, o único mandamento da moderni­dade”.[2]

Mas transgressão não é privilégio exclusivo de escritores modernos e pós-modernos. Toda grande literatura, de todos os tempos, nunca fez outra coisa senão… inovar, romper com o passado, transgredir, caso contrário estaríamos recitando Homero até hoje. Transgredir tem sido necessário, desde sempre, e isto se aplica à minoria de escritores superdotados, anunciadores de algo efetivamente novo. Mas repetir e confirmar, para ampliar o território conquistado, tem sido igualmente necessário – embora isto só se aplique ao meritório e indispensável esforço da imensa maioria dos medianamente dotados, sem os quais o sistema desmorona e a própria transgressão deixa de ser uma necessidade.

Tal constatação nos põe diante de uma noção eminentemente histórica (voilà!), no sentido de transitória e efêmera, adstrita a específicas circunstâncias de época: a transgressão de ontem ou se esvaiu, sem deixar vestígio, ou se converteu na moda de hoje. No primeiro caso, o experi­men­tal revelou-se inócuo e a novidade vazia foi descar­tada; no segundo, o experi­mento vingou e deixou de ser experimento, para se transformar em realização menos precária. O novo, como tal, não tem como se auto-sustentar, é só a ponte desejável entre o já-não-mais e o ainda-não. Inovar radica numa pulsão substanci­almente dialética: não há como pensar-se em inovação sem que seu contrapeso – a manu­tenção da ordem vigente – se faça presente. Imposto como valor em si, o novo se condena ad aeternum a seguir implodindo no vazio da au­sên­cia de normas às quais se contrapor.

Transgressão tem que ver com desobediência, irreverência, contestação, insubmissão, rebeldia, insubordinação, subversão, blasfêmia, iconoclastia… Desde tempos bíblicos, o leque de atributos é imenso… Para que sua meta seja atingida, o transgressor conta, necessariamente, com a existência de uma Ordem ou um Sistema, rígido e intolerante, cerceador da liberdade ilimitada que ele almeja privilegiar. Diante da Ordem (ou Lei, ou Regra), não haveria senão duas alternativas: obedecer ou transgredir; diante do Sistema, também: é inserir-se nele ou manter-se à margem. Afinada por esse diapasão, a cantilena do maniqueísmo é praticamente inevitável. De início, transgredir foi o último recurso dos artistas de vanguarda, na esteira da rebeldia romântica; mas aos poucos, século XX adentro, passou a contar com o beneplácito da maioria, convertendo-se em regra geral e até mesmo em necessidade de sobrevivência: transgrida ou pereça, isto é, condene-se ao (merecido) ostracismo. Na origem, como num Rimbaud, transgressão é estratégia de combate: “desregramento de todos os sentidos”, no encalço da “verdadeira vida”, e projetos utópicos, empenhados na “verdadeira vida”, exigem de fato altas doses de insurreição, exigem minar pela base todos os obstáculos, sobretudo os morais e religiosos, que se contrapõem à liberdade sem limites.

Firme na convicção de que é preciso romper com todos os tabus, o transgressor (refiro-me aos pioneiros, quando ainda havia um “sistema” forte e pujante, largamente reconhecido como inimigo a combater) não hesita diante do insulto e da blasfêmia, fazendo ao mesmo tempo o elogio premeditado do que a “boa” sociedade considera vício, libertinagem ou perver­são. Com isso, sua poesia passa a de­pender da cumplicidade do leitor – parceiro indispensável, quer endosse a icono­clastia do poeta, quer se deixe ofender. Imagine-se quão melancólica será a transgressão que não encontre quem se sinta ofendido…

Em 1922, com a irreverência de sua clássica “Ode ao burguês”,[3] Mário de Andrade tra­tou de cho­car e escandalizar, lançando seu libelo contra o “burguês-níquel”, o “burguês funesto”, o “burguês-mensal”, o “burguês de giolhos / cheirando religião e que não crê em Deus” etc., e foi bem sucedido, pois contou com a reação ofendida de uma quantidade de leitores, críticos e escritores, que vestiram a carapuça. Graças ao choque e ao escândalo, muitos, quem sabe, libertaram-se pelo menos alguma repressão, ex­te­­rior e interior, e ade­riram ao projeto de vida plena. Pelo menos era o que a transgressão esperava. Mas ha­verá, hoje, algum burguês – níquel ou euro, real ou dólar – que se deixe escan­dalizar por qualquer espécie de blasfêmia?

O homem me­dío­cre, vi­sado por essa forma de irreverência, fez-se de todo impermeável, e passou a encarar o insulto como mera excentricidade, irrelevante. Isidore Ducasse, o conde de Lau­tré­amont, temia a rea­ção do pai, e a da censura policial de Napoleão III, por isso escon­deu-se sob o pseu­dônimo. O escritor que insista nessa espécie de transgressão teria, hoje, algo a temer, de quem quer que seja? Sua fúria iconoclasta parece condenada a ecoar, apenas, junto àqueles que já parti­lham da mesma fé e só fazem confirmar e aplaudir. Não é o que o poeta “maldito” esperaria, em sua cruzada no encalço da “verdadeira vida”: ele certamente preferi­ria que as pessoas, físicas e jurídi­cas, se ofendessem para valer e reagissem com indignação. Com isso, quem sabe, a utopia estaria menos distante.

Não se trata, por ora, de aferir os verdadeiros propósitos do ato transgressor. Trata-se de constatar o esperto mecanismo de autodefesa que o burguês-níquel de outrora tratou de desenvolver, tão logo isso tudo começou – para não recuarmos muito, em 1863, quando Edouard Manet ex­pôs, em Paris, no Salão dos Recusados, sua escan­dalosa (?) tela Le déjeuner sur l’herbe, inocente paisagem bucólica, em que uma senhora nua, re­costada na relva, desfruta seu farnel, ao lado de dois senho­res engra­vatados, enquanto no segundo plano vê-se ou­tra se­nhora, em trajes diáfanos, recli­nada –
versão levemente irônica de alguma ninfa neo­clássica. Não obstante, as reações da burguesia ofen­dida foram inten­sas. Nas décadas seguintes, outros transgressores insistiram, com entusiasmo crescente, intensificando a ousa­dia e a blasfêmia, na mesma proporção em que a me­diocri­dade bem pensante ia apren­dendo a absorver o golpe, a fim de que tudo continuasse no melhor dos mundos.

Ordem e Transgressão, ou Sis­tema e Margi­na­lidade, de fato entretêm um jogo dialético inescapavelmente capcioso, de ambos os lados, posto a circular a partir do final do século XIX. Graças ao desconcerto geral do mundo moderno, transgressão & marginalidade granjearam adeptos em quantidade – falsos adeptos, já se vê: com amigos desses, quem precisa de ini­migos? A transgressão já não ofende e o marginal deixou de estar à margem: passou a fazer parte do sistema ou foi engolido por este. Mas a ironia do quadro corresponde ao capítulo final da novela, cujo entrecho é como segue.

 

 O final da novela

 “Qualquer artista iniciante”, observa Sant´Anna, “começa por trans­gre­dir. Ainda não sabe as regras, mas já as renega. E cria-se uma situação ab­surda. Transgredir o quê, se antes dele, no passado recente, só havia transgres­sores?”.[4] Tal é o caso do transgressor de segunda geração, enredado na armadi­lha de uma concepção linear do processo histórico, que induz cada geração a terçar armas com a imediatamente ante­rior. Mas, para além dessa linearidade, há que levar em conta a circularidade que tomou conta do processo, induzindo cada geração a repetir ad nauseam a rebeldia dos pioneiros. Assim, nas últimas décadas, os recém-chegados não têm tido dificuldade em fa­rejar a “ver­dade” incontestada, segundo a qual todo o passado, o próximo e o remoto, virou obsoles­cência. Ato contínuo, sentindo-se desobrigados de conhecer as experiências pregressas, para levá-las adiante, ig­noram o que aconteceu na véspera, retroagem à antevéspera e se­guem conde­nando à morte os cadáveres já decom­postos do “sistema”, da “tradição” ou dos “cânones”, como se estes ainda estivessem aí, plenos de saúde, ou como se eles, os recém-chegados, estivessem de volta ao ano da Graça de 1863, quando Ma­net deu início ao pro­cesso.

No âmbito jurídico, alegar desconhecimento das leis não exime de culpa o infra­tor, que sempre estará sujeito às punições previstas; já no âmbito de certa arte moderna, transgressão veio a ser sinônimo de ignorância, não apenas das normas a serem rompidas, mas de todo o resto. Em vez de se assenhorear da ampla e flexível com­plexidade da arte dos antecessores, para a partir daí atuar contra o sistema, como faz  todo artista verdadeiro, o parvenu ignora quase tudo e passa a vender como “transgressão” qualquer sandice ou frivolidade que lhe venha à mente. Essa espécie de “vanguarda” não tem servido senão de álibi para arrivismo e soberba.

Dependendo da trincheira em que o leitor se situe, “sis­te­ma” será sinô­nimo de mesmice e medio­cridade, e por isso pode ser sumariamente ignorado, como se nunca tivesse existido, ou, pior, como se não continuasse a existir, em suas suces­sivas metamorfoses; e “marginalidade” será a afirmação triunfante de que nem tudo está perdido: a esté­tica e a ética dessa caricatura de transgressão passam por ser a última espe­rança. Ao mesmo tempo, para os do outro lado, “marginali­dade” quer dizer apenas aberra­ção e gratuidade, e só o “sistema” é que vale – mas estes pensam apenas no sistema anterior à rebeldia, como se jamais tivesse havido uma transgressão genuína. As duas posições, afinal, se equivalem, enquanto maniqueísmo primário, rejeição decla­rada da possibilidade de mescla e intercâmbio. Am­bas revelam deplorável desconheci­mento da efetiva realidade literária do último meio sé­culo.

Desde o início do século XX, transgressão e marginalidade têm lugar garantido em todos os grandes índices do sistema, que são – além dos museus – os manuais de história da arte e da literatura, que continuam a proliferar; as enciclopédias, as retrospectivas, as galerias e os catálogos; assim como as colunas sociais, as revistas de variedades e as estratégias mercadológicas, com seus ícones de consumismo e exibicionismo – tudo sempre debaixo de rótulos variá­veis, como “ousados”, “rebeldes”, “dissidentes”, “independentes” e congêneres, aplicáveis tanto à arte quanto aos “valores” sociais vigentes. Inovar e transgredir passaram a ser encarados não só com benevolência mas com indisfarçável simpatia, vindo a contar, in limine, com aprovação e aplauso gerais. Não é ime­diato, portanto, concluir que a aposta na transgressão pode representar apenas um caminho mais fácil, rápido e seguro, para ser aceito pelo sistema?

Curiosa compla­cência a desse sistema que simula rejeitar o que na verdade ama incluir, ou finge incluir o que na verdade deveria rejeitar – não por ser “contra”, mas por sua evidente má qualidade. “Qualidade”? Mas não foi decretado que o novo é automática e intrinsecamente bom? Quem ousaria enfrentar o risco de ser tachado de reacionário ou coisa pior? Afinal, transgressão o que é? Marginal é o que está do lado de fora mas almeja entrar? Ou é o que faz de tudo para permanecer de fora, mesmo, mas para isso precisa que haja um “dentro”, robusto e saudável, que lhe sirva de contraponto e o justifique? Logo, o transgressor da periferia acaba por colaborar, com extrema eficácia, para que o centro continue exatamente como e onde está. (Com inimigos desses, quem precisa de amigos?) Como são maioria, os da mar­gem passam a ser o sistema, cujos ex-adeptos, ipso facto, devem migrar para a margi­nalidade, de modo que obedecer com discrição e tolerar com equanimidade passam a ser a única forma legítima de… transgredir. E quando já não houver autênticos transgressores e autênticos margi­nais, o sistema terá ruído de ina­nição.[5] É o rumo que se descortina a partir da entronização da liberdade absoluta, razão pela qual, talvez, o mundo moderno es­teja condenado a conhecer, em meio a heróicas revoluções libertárias, algumas das mais hediondas manifestações de tirania e despotismo de toda a História – quer as que se abrigam sob o manto da intolerância religiosa ou ideológica, quer as que assumem o dis­farce da alta tecnologia triunfante, a serviço da dominação econômica.

Será que tudo não passa de jogo semântico? O termo “transgressão”, transformado em fetiche, teria sido mal esco­lhido? A sonhada “ciência da literatura” teria dado cobro ao exagero? Com efeito, se não houver uma ordem constituída, transgredir será gesto gratuito, sem sentido; sem um sistema que lhe sirva de anteparo e justificativa, a mera hipótese da marginalidade será absurda. Por outro lado, quem perceberá que existe um centro, se não houver periferia? E a lógica vale nos dois sentidos: o do pseudomarginal, que ambiciona tão somente garantir seu lugarzinho entre os acolhidos pelo sistema, e o do marginal genuíno, verdadeira­mente empenhado em minar e subverter, ciente de que isso não deve ser feito de fora, mas de dentro: a periferia contestadora só faz fortalecer o centro, em permanente expansão.

Transgressão e marginalidade, além de contestação estético-literária, presumivelmente amoral, subentendem também contestação política, sempre próxima da moral. A estratégia é basicamente a mesma: para sentir-se mais à vontade, e para que não venha a sofrer sua influência maligna, o contestador de carreira coloca-se fora do sistema e ataca-o em todas as frentes – como se a possibilidade de contestar, e os (bons) argumentos utilizados para levar adiante a empreitada, não guardassem relação alguma com o sistema; como se o contestador tivesse nascido, e se formado, do outro lado do espelho. E como se destruir o sistema não destruísse junto a razão para se­guir contestando, isto é, a razão de ser de quem contesta.

Ao condenar e repudiar o sistema, o transgressor oportunista não abre mão das regalias que o gesto lhe possa proporcionar –
no caso do escritor, ser lido por milhões de pessoas, em muitos idiomas; ser apontado pela mídia internacional como paladino da Justiça e da Liberdade; engordar sua conta bancária com apetitosos cachês e direitos de tradução ou adaptação para cinema e tv; e, se a sorte o permitir, embolsar o milhão de dólares com que a vetusta Academia, de ano em ano, contempla um autor de destaque. Os donos do Poder, como os anciãos do Prêmio Nobel, amam alardear a hipócrita magnanimidade com que acolhem desfavorecidos e desafetos. Quando, no fim da vida, Jean-Paul Sartre recu­sou o prêmio, talvez tenha tentado passar uma imagem de “coerência” (não sei se alguém se preocuparia em lhe cobrar isso), mas já era tarde. Após uma vida inteira de luta, à margem do sistema, acabou por ser universalmente admitido. E domesticado. Receber ou não receber a honraria do Nobel não faria (não fez) diferença. O fato é que o prêmio foi concedido, prova definitiva de assimilação. E da inoperância dessa forma de transgressão protocolar e institucionalizada.

O sarampo da transgressão radical e a catapora do absolutamente novo, combinados com boas doses de má-fé e arrogância, indigência cul­tural e inaptidão literária, não che­gam a ser doenças, são achaques benignos, que só contribuem para fortalecer tanto o paciente quanto a medicina que os atende. Esse pequeno teatro, em suma, não constitui ameaça ao sistema; ao contrário, é a melhor garantia de sua lon­ge­vidade. O burocrata da transgressão é tão dependente do sistema quanto o mais con­victo dos conservadores.

Durante décadas, a partir do início do século XX, a chave do êxito seguro foi épater le bourgeois, mas o processo contaminou a soci­e­dade, como um todo, a ponto de a categoria “burguês” ter-se esva­zi­ado de sentido. Medio­cridade e intolerância deixaram de ser privilégio da burguesia e já não escolhem classe ou estamento social onde se instalem. O fato é que a transgressão de hoje, caso bem sucedida, será a badalação de amanhã, em qualquer dos altares do grande templo do consumo em que se transfor­mou toda a sociedade. Nossos solertes comunicadores qualifi­cariam de “descolada” a blasfêmia da moda, ou até mesmo de chic.

A ironia está em que o escritor de fato maldito, ao in­sis­tir esteti­ca­mente na apologia do Mal, conforme a lição pioneira de Baudelaire, não faz senão chamar a atenção para um Bem supremo, utópico, ignorado por todos. Em nossa sociedade aneste­siada, o verdadeiro inimigo do Bem não cometerá a inge­nuidade de se apre­sen­tar como vilão, mas assumirá o disfarce do bom mocinho. Já o escritor da transgressão protocolar não usa disfarces, preferindo pôr em ação seu moralismo de sinal invertido.

Ciência da literatura? Quem se preocupa com isso? Essa transgressão, a que propósitos serve, afinal?

 

 

Carlos Felipe Moisés é poeta (Noite nula, 2008), ensaísta (Poesia e utopia, 2007) e tradutor (O poder do mito, 1990). Seu livro Conversa com Fernando Pessoa (2007) recebeu recentemente o Selo de Qualidade da FNLIJ, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. É mestre e doutor em letras clássicas pela USP.

 

 


 

[1] W. Benjamin, “Theses on the philosophy of history”, in Illuminations, trad. norte-amer., org. e intr. de Hannah Arendt, New York, Shocken Books, 1969, pp. 257-258.

 

[2] “Museu da transgressão”, in Desconstruir Duchamp: arte na hora da revisão, Rio de Janeiro, Vieira & Lent, 2003, p. 79.

 

[3] Affonso Romano de Sant´Anna (op.cit., p. 81) foi o primeiro a fazer essa associação.

 

[4] A.R. de Sant´Anna, op. cit., p. 79.

 

[5] Cf. Sérgio Paulo Rouanet, Mal-estar na modernidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1993, especial­mente o ensaio de abertura “Iluminismo ou barbárie”, pp. 9-45.