A Lei Rouanet

Nove bilhões de reais, seis ministros e vinte anos depois, a Lei Rouanet se tornou fundamental. Como aponta Henilton Menezes, o Secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do MinC, hoje a Lei é responsável pela manutenção de instituições como o Centro Cultural Banco do Brasil, o Museu de Arte de São Paulo e a Fundação Iberê Camargo, publicações como a Bravo, a Cult ou a Revista de História, a restauração de edifícios como o Theatro Municipal e o Convento de Santo Antônio. Através dela são viabilizados o Festival de Gramado, o Festival de Cinema de São Paulo, a Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), o Festival de Teatro de Curitiba e praticamente todo movimento teatral das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Com ela mantém-se o Teatro Oficina, o Grupo Galpão, o grupo “Corpo”, a Cia. de Dança Deborah Colker. A Lei dá uma forcinha nada singela ao Instituto Cultural Itaú, à Academia Brasileira de Letras, ao Rock In Rio, aos carnavais do Rio de Janeiro, de Pernambuco e da Bahia, às festas juninas do Nordeste…

Tudo de uma vez só. É de se pensar o que foi a produção cultural brasileira antes da Lei e a impressão que uma lista como essa nos dá, inevitavelmente, é que antes não havia nada. Muito embora contemos com lembranças melancólicas da atividade operacional da cultura em franco diletantismo, a indústria do cinema em frangalhos, as orquestras sinfônicas miseráveis e de teatros funcionando em guerrilha [link restrito para assinantes do UOL], há hoje, com a lei em vigor, evidentemente algo para lamentar e o mais relevante é que sua penetração na vida cultural cria uma cadeia insólita de artistas que não arriscam ou do sucesso que prescinde de público. E cria a figura curiosa do mecenas que não gasta dinheiro.

Pois é costumeiro, embora inverídico, dizermos por aí que não temos no Brasil a cultura do mecenato. Nossa história conta o contrário, e temos personalidades relevantes no patrocínio das artes no passado recente, em figuras como Paulo Prado, Francisco Matarazzo, Arnaldo Guinle, Octávio Gouveia Bulhões, Osvaldo Riso, João Moreira Salles, Mario Henrique Simonsen, entre outros. Nenhum deles usou a Rouanet. Atualmente poderíamos discorrer uma lista similar com novos nomes, atores significativos que mantém acervos particulares, realizam contribuições regulares ou se lançam em projetos de absoluta relevância cultural e impossível retorno financeiro – e que não estão nem aí para leis de incentivo.

Há uma parcela da crítica cultural que acusa a Lei Rouanet de ter acabado com esta figura quase ingênua do amante que investe em arte – leia-se, artistas. A Lei teria permitido que o investidor seja vilão não do próprio dinheiro, mas do dinheiro público. A Rouanet realizaria essa perversa “democratização” do mecenato, não no sentido em que todos possamos investir em arte mas a de obrigar a todos, querendo ou não, que invistamos em arte. O dinheiro que paga parte da produção das festas juninas, do filme nacional que ninguém vê, e do sucesso da Festa Literária de Paraty é descontado daquele que uma empresa deveria pagar ao governo em forma de imposto de renda; ao invés de dar ao estado, ela direciona ao projeto que lhe convém. Ou seja, ao invés de tornar-se dinheiro público segue sendo dinheiro privado, de uso público (mais ou menos, dependendo do projeto).

Em sua defesa podemos comentar o óbvio: sabemos muito bem da destreza do funcionalismo em investir e podemos imaginar, por inferência, os caminhos que o dinheiro do imposto devido passaria para retornar como investimento em cultura. O pensamento por trás da Rouanet é, portanto, uma forma curiosa de pragmatismo liberal: se temos que pagar impostos altíssimos, e tais impostos são notoriamente mal usados, melhor seria não pagar tais impostos; mas isso seria crime, então, por que não criar um mecanismo que permita ao contribuinte usar diretamente parte do valor do imposto devido? Imagino que se tivéssemos um mecanismo como a Rouanet em outros ambientes que não o cultural, e a empresa ou cada um de nós, ao invés de dar ao governo parte do exorbitante imposto devido, aplicássemos diretamente na escola do bairro, no recapeamento das estradas e ruas… Seria uma solução engenhosa, que criaria outros problemas curiosos, mas certamente não o fortalecimento do funcionalismo.

No entanto, nestes termos específicos, o dilema maior da Rouanet segue sendo exatamente um fato, o de que o mecenas não tira do bolso seu investimento. O imposto é devido, e muito embora possamos fazer críticas severas à alta carga tributária do país e seu mau uso, o fato é que, pelas regras do jogo, aquele dinheiro não deixa de ser dinheiro do governo – ou seja, de todos os contribuintes. A única forma de tornar a Rouanet menos perversa, nestes termos, é diminuindo a carga tributária e, concomitantemente, aperfeiçoando os serviços da estrutura estatal. Alguém vê isso no horizonte?

Não deixa de ser um acaso feliz que tenha sido o meu, o nosso dinheiro a financiar o sucesso do primeiro “Tropa de Elite”, a vinda de Tom Stoppard para a FLIP e a de Peter Brook para o Festival de Porto Alegre, os quentões e salsichões dos arraiais deste Brasilzão de Deus. Não ter desfrutado de tudo daquilo não é realmente um problema; parodio a máxima de Sergei Diaghilev, empresário dos balés russos: afinal, por que perder minha imaginação (e dinheiro) comigo mesmo? Tranquilizo-me pensando que poderia ter servido para coisas piores, como aparentemente servirá em breve, com a aprovação dos games e do gospel como modalidades passíveis de patrocínio… Mas isso é outra história.

2 comentários em “A Lei Rouanet

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