A melancolia do rock

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Não sou um sujeito que vá com freqüência ao teatro. Geralmente, prefiro ver filmes, ler um livro, escutar por uma hora completa algum álbum dos Beatles. Mas abri uma exceção na semana passada por um simples motivo. Fui ver Rock’n’Roll,  de Tom Stoppard.

Só mesmo Tom Stoppard para me tirar de casa, convencer a consorte e ir ao SESC Pinheiros, com seu público modernete, para ver uma peça feita por uma companhia de teatro brasileira. Contudo, não é sempre que se vê uma peça de Tom Stoppard no Brasil; alías, nunca se viu uma peça de Stoppard por aqui; esta é a primeira vez que fazem isso e, como o comercial do Valisére, a primeira vez a gente nunca esquece, etc. e tal.

Confesso que estava com medo, muito medo. Para mim, Stoppard é um dos grandes dramaturgos atuais na língua inglesa, ao lado de David Mamet e Alan Bennett. Seus textos são díficeis de montar, tanto pelo apecto logístico como pelo aspecto intelectual – seus personagens ficam falando sobre idéias e mais idéias, que o público tem de possuir uma considerável dose de cultura geral para entendê-las corretamente. Além disso, no ano passado, quando veio ao Brasil para se apresentar na FLIP, Stoppard foi mal-aproveitado pela mídia, que fez perguntas rídiculas a um homem que tinha muito mais a dizer.

Bem, fui surpreendido. A montagem de Rock’n’Roll é digna da concepção de Stoppard, exceto por um ou outro detalhe que comentarei logo mais. A direção de Felipe Vidal e Tato Consorti consegue dar ritmo a uma peça que dura três horas e tem noção da delicadeza dos conflitos emocionais e ideológicos a que o texto stoppardiano nos remete o tempo todo.

Eu poderia fazer um resumo da trama da peça, mas isto seria tirar o gostinho do leitor em querer saber qual é o seu assunto. Adianto-lhes que ela se chama Rock’n’Roll por um motivo simples: seu tema é o embate entre os ideais que carregamos a vida inteira e que, no final, descobrimos que não valeram a pena. A única coisa de que temos certeza (se existir alguma) é que it’s only rock’n’roll and I like it.

A trilha sonora da peça, escolhida a dedo pelo próprio Stoppard, tem pérolas de Pink Floyd – seja na fase Syd Barrett, uma referência constante entre os personagens, seja na fase Roger Waters – , Rolling Stones, sobrando até para a banda tcheca de rock progressivo The Plastic People of the Universe, pivô da Revolução de Veludo que se disseminou pela Tchecoslováquia e detonou a chamada dissidência soviética (Uma dica: o espectador só vai entender alguns diálogos se leu os textos de Václav Havel, para quem a peça foi dedicada).

Nesta teia de citações e referências, a única atriz na montagem que parece que não entendeu o que se passava foi, infelizmente, a que tinha o papel mais importante: Giséle Froés, que interpreta tanto Eleonor, a professora de grego consumida por um câncer, como sua filha Esmé, já na idade adulta. Ela tem momentos desiguais; às vezes cai no caricato (como no longo monólogo de Esmé no início do segundo ato, que deveria ser uma brincadeira com o ritmo das palavras, mas torna-se um arrozoado de uma simples maconheira) e às vezes cai no sublime (como no monólogo final de Eleanor, em que esta declama para seu esposo Max: Eu não sou meu corpo!). Trata-se de um overacting que parece colocar a atriz acima da peça e, de certa forma, prejudica a atuação dos outros atores, que, apesar disso, estão excelentes (destaque para os globais Otávio Augusto – igual ao Brian Cox que fez o papel original na montagem inglesa – e, pasmem, Thiago Fragoso).

Além disso, a atuação desigual prejudica a própria compreensão do que Stoppard queria dizer na peça. Não, não se preocupem, Rock’n’Roll não possui uma mensagem – algo que o autor tcheco-britânico abomina. Mas há um inegável travo amargo no final da peça, uma melancolia que só mesmo o rock poderia capturar nas entrelinhas da alma de cada personagem. Na montagem brasileira, apesar de todas as suas virtudes, esta tristeza foi atenuada, talvez porque o nosso povo – em especial, a nossa classe artística – ainda não saiba o que é perder verdadeiramente a liberdade. Ainda assim, quando escutamos no final da peça os acordes de Satisfaction e percebemos que o seu refrão é I can’t get no satisfaction, percebemos o terreno bittersweet onde transita Stoppard. Sim, os Stones finalmente tocaram na Tchecoslováquia, depois de trinta anos de totalitarismo comunista, mas para as pessoas que estão lá, que finalmente puderam ver o show, o vazio também estava lá, à espera, na boca da caverna dos leões.

Rock’n’Roll é a lição de um escritor machucado pelos anos de experiência, mas que sabe que a vida só pode ser enfrentada quando não se tem mais certeza das coisas deste mundo. E só por isso vale a pena sair da sua casa sem nenhum constrangimento.

ROCK’N’ROLL, de Tom Stoppard. Sesc Pinheiros. R. Paes Leme 195, 3095-9400.  Ingressos: R$ 5 (trabalhador no comércio e serviço matriculado) a R$ 20. A peça fica em cartaz na cidade até 18 de outubro.

5 comentários em “A melancolia do rock

  1. 1) Obrigado pela dica, Martim. Eu também não vou muito ao teatro, justamente porque já fui algumas vezes. Mas é bom saber que ainda há um fôlego de qualidade.

    2) Sem querer ser chato, mas acho que é “que se dissEminou pela Tchecoslováquia”.

    Abraço.

  2. Marcelo:

    Não se avexe, menino! Pode querer consertar à vontade. Aliás, erro já reparado. Valeu!

    Abraços

    Martim

  3. A montagem da peça estreou aqui no Rio, e como um bom “fã” do Stoppard, eu fui vê-la. E pelo visto a Gisele Fróes ainda não se tocou da peça, achei o mesmo dela aqui, Martim. No monólogo da Eleonor, que é interessantíssimo, e teatralmente tem um ritmo ótimo, a moça chegou a ser enfadonha; poxa, no dia em que fui assistir, pensei ter dado azar de ter pego um daqueles maus dias de um ator. Você me confirma agora que não.

    Cheguei a saber que outras peças do Stoppard tiveram seus direitos comprados por brasileiros, gostaria de ver tudo dele encenado por aqui, mas confesso que iria num The Invention of Love também para reparar na platéia (!), ver os tipos que vão assistir a uma peça como essa (que considero, no momento, inviável para o público de teatro brasileiro; imagina uma platéia brasileira ouvindo um Jowett e um Housman discutindo sobre um erro de latim “freti-freri” ao se recitar uma passagem de Catulo! Só teríamos espectadores ‘highbrow’?!)

    Só não entendi a relação (direta) que você aponta com os textos do Havel, mesmo já tendo lido algumas de suas peças (e sabendo que o Tom dedica o Rock’n’roll a ele).

    Fiquemos na espera das outras peças!

    Abraço.

  4. Martin, uma correção e um comentário: Stoppard foi encenado no Brasil sim, uma única vez antes de Rock’n’Roll, não sei dizer qual peça mas sei que ficou em curtíssima temporada num teatro na Tijuca, zone norte do RJ — parece lenda urbana mas é fato. O comentário: no final, você diz que “Na montagem brasileira … esta tristeza foi atenuada, talvez porque o nosso povo … ainda não saiba o que é perder verdadeiramente a liberdade”, afirmação questionável, ou você nunca leu nada sobre a ditadura Vargas? Eu arriscaria dizer que quem passou por uma ditadura como a de Vargas não saiba o que é perder a liberdade.

  5. Caro Rafael:

    Obrigado pela correção – eu realmente não sabia desta apresentação lendária.

    Já sobre sua observação, tendo a concordar apenas em parte. Claro que Vargas foi um ditador – pelo menos em seu período do Estado Novo – mas devemos lembrar que, por coincidência, esta foi a época em que houve um grande fermento intelectual no Brasil. É só lembrar a própria geração de 45 na poesia – que, na verdade, veio muito antes -, os livros de Sergio Buarque de Hollanda, a poesia de Carlos Drummond e Manuel Bandeira. Enfim, o governo podia prender alguns “dissidentes” e até monopolizar o jornalismo – por meio do bom e velho Chatô – mas havia uma grande pluralidade de opiniões artísticas e até políticas (Vargas podia deixar o seu opositor no ostracismo, mas geralmente não o matava). Foi algo muito diferente do que aconteceu na Tchecoslováquia descrita na peça de Stoppard, onde nem sequer o rock´n´roll era suportado.

    Enfim, o Brasil pode ter tido momentos históricos em que a liberdade foi quase para a lata do lixo, mas, se vc quiser medir desgraças, creio que o que aconteceu na Era Vargas foi fichinha perto do que aconteceu no Leste Europeu, na Alemanha e na Itália.

    Abraços

    Martim

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