Carnificina Sutil

Pode não parecer, mas Deus da Carnificina (Carnage) é um filme de Roman Polanski. O diretor que, com filmes como O Bebê de Rosemary, Repulsa ao Sexo e O Inquilino, dedicou-se ao terror e ao surreal, encontrou uma forma mais sutil, porém não menos interessante, de abordar os mesmos temas. De forma mais amena (e engraçada) do que a maioria de suas obras, trata da nossa aparente racionalidade e civilidade que, ao menor sinal de provocação, se destroem, implodindo nossas relações com os outros e com nós mesmos.

No início, dois meninos parecem discutir em um parque. Não é possível ouvir o que falam e também não é importante saber o motivo da briga, mas apenas que um deles golpeia o outro na cabeça com um galho. Na cena seguinte, estão os pais dos meninos reunidos para discutir o problema (o garoto perdeu alguns dentes e precisa de tratamento). Christoph Waltz e Kate Winslet interpretam o pai e a mãe do “agressor”. John C. Reilly e Jodie Foster são o pai e a mãe da “vítima”. Aqui, as palavras importam mais do que nunca porque dizer que o menino estava “armado” com um bastão é, para os pais, exagerar o ato do filho e vitimizar o outro – melhor dizer que ele estava “carregando” ou que “utilizou” um galho. A situação é delicada porque, de início, nenhum casal quer mexer com os brios do outro, mas a medida que o tempo passa e que provocações mínimas escapam, eles mandam a educação às favas, e nada mais engraçado do que adultos supostamente sérios perdendo a compostura.

Não é a primeira vez que Polanski trabalha com o humor. A Dança dos Vampiros (The Fearless Vampire Killers or Pardon Me, But Your Teeth Are In My Neck, de 1967) é um exemplo da sua noção de timing para comédia e da forma soberba com que mistura gêneros. Filmes que conseguem fazer rir e assustar são raridades e Polanski é um dos poucos que conseguiu fazê-lo. Há em Deus da Carnificina, contudo, um tipo de humor mais refinado, baseado em sugestões, em entonações de voz e gestos mínimos.

O filme depende quase que inteiramente das performances de seus atores e do entendimento que eles têm de seus personagens, do que está sendo dito e com qual intenção. De fato, estão todos muitíssimo bem e é difícil imaginar o mesmo filme com atores diferentes (Jodie Foster faz um retrato perfeito da passividade-agressiva tão reconhecível na vida real), mas é Christoph Waltz, ganhador do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por Bastardos Inglórios, quem se destaca. Seu personagem é o mais seco e direto, sem muita disposição para as gentilezas sociais, mas sua impaciência crescente nunca parece sem razão – ela é sólida e cortante como um bom argumento.

Alianças e oposições se formam e se desfazem; casal contra casal, mulheres contra homens, liberais contra conservadores. Como em O Anjo Exterminador de Buñuel, eles parecem presos, sem motivo concreto que os impeçam de ir embora. Em dado momento, um dos personagens (não vou estragar a surpresa) passa mal e vomita, mas o humor nunca é barato ou adolescente. Pela primeira vez, não me senti culpada por rir de uma piada que envolvesse vômito.

Adaptações de peças para o cinema (principalmente aquelas que se limitam a um único espaço e um punhado de personagens) precisam de uma mise-en-scéne muito bem planejada, de uma edição viva, ou, do contrário, remetem demais ao teatro. Assistindo Deus da Carnificina, é possível imaginar um palco, um cenário, mas nada que descaracterize o filme como tal. Há uma certa preocupação em manter os planos vivos e criar uma movimentação tanto da câmera pelos ambientes do apartamento como também dos personagens.

O final sugere que, às vezes, os adultos podem se comportar muito pior do que crianças e que as coisas podem ser mais fáceis de se resolver do que imaginamos; que somos nós, adultos, que complicamos tudo quando tentamos agir de forma pretensamente madura e civilizada.

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