Livros

O archote na rede

por Nelson Ascher

Dados técnicos: Reinaldo Azevedo, O país dos petralhas. Record, 2008, 340 pp.

As limitações aparentemente insuperáveis que tolhem ou cerceiam determinadas formas de expressão e de arte numa época, dizia Walter Benjamin, tornam-se, graças a novas tecnologias, facilmente resolúveis na era seguinte.

Quando mencionam o vienense Karl Kraus, chamam-no com freqüência de satirista. Trata-se, porém, de um termo que, reducionista, não lhe faz justiça. Kraus, uma influência central na obra de, entre outros, Elias Canetti, era jornalista, editor, editorialista, ensaísta, poeta, dramaturgo, ator e declamador (apresentou anos a fio, no palco, uma espécie de “one man show”). Ocorre que nenhuma dessas suas atividades se desvinculava de qualquer outra, sendo, todas elas, modos de pôr em cena o mesmo conjunto coerente de intenções.

Kraus era, num sentido quase ilimitadamente abrangedor, um crítico – do que se escrevia, se compunha, se pintava, se dizia, se noticiava, se encenava, se imprimia e se pensava no seu tempo e no seu espaço geográfico-lingüístico, centrado, primeiro, na capital da Monarquia Austro-Húngara e, em seguida, na da República da Áustria, uma cidade que era também o centro excêntrico e alternativo de uma Europa Central germanófona: Viena.

Seu talento multifacetado inventou uma forma peculiar de se expor e comunicar: um jornal que ele mesmo escrevia, redigia, editava, diagramava, compunha e apresentava, tudo isso sozinho, Die Fackel (“a tocha” ou “o archote”). É de lá que provêm os escritos aos quais quem tenha lhe ouvido o nome o associa: os aforismos que juntava periodicamente em coleções, uma das quais, aliás, intitulava-se Dicta et Contradicta. É de lá também que vem o título do segundo volume da autobiografia de Canetti, O archote no ouvido (traduzido aqui como “Uma luz em meu ouvido”), livro em que o memorialista relata seu período vienense durante o qual esteve sob influência direta de Kraus, a cujas leituras dramatizadas de excertos de Die Fackel costumava assistir. Outra obra atípica e cada vez mais conhecida, ou já não tão desconhecida, de Kraus é uma peça de teatro que, em inúmeras cenas, retrata o fenômeno que o autor reconhecera como o apocalipse da civilização européia: a guerra de 1914-18 que, com seu round seguinte em 1939-45, logo se revelaria como a segunda Guerra dos 30 Anos. A peça se chama Os últimos dias da humanidade, e uma seleção de suas cenas publicada em Portugal tem 450 páginas.

Considerado profético, Kraus viu com antecedência sinais de que seu mundo se encaminhava rumo a um Crepúsculo dos Deuses. Nisso não estava isolado, pois foi um fenômeno que muitos perceberam e a respeito do qual buscaram alertar os demais. O singular no seu caso é quais sinais ele viu e onde os via, a saber, em regiões mais profundas, recônditas e viscerais do corpo social. Nada lhe parecia mais revelador do que o abastardamento da língua, seja enquanto meio de comunicação, seja enquanto matéria-prima de produções estéticas. Era em tais ou quais maneiras de falar e escrever que ele localizava e reconhecia não só as idéias, mas os vícios de pensamento que conduziam todos em direção ao abismo.

A comparação central ao que segue tornou inevitável este anti-lide, pois, após vasculhar várias “mídias”, uma personalidade e um ânimo similares aos de Kraus encontraram, ou melhor, se encontraram com um meio que, congenial, talvez lhes seja apenas temporário, mas que, ao que tudo indica, pode ser o definitivo. Refiro-me, é claro, à mais ou menos recente convergência entre Reinaldo Azevedo e a blogagem.

Reinaldo entrou no mundo da palavra interessado, que eu saiba, antes por literatura e poesia. Deu aulas, mas é óbvio que um dinamismo como o seu, para nem falar de sua independência, não caberia na nossa ou em qualquer universidade atual, o maior mecanismo de auto-replicação da incapacidade contemporânea de pensar por conta própria ou de simplesmente pensar. As Humanidades na academia de hoje, inclusive nas melhores norte-americanas ou européias (insisto nisso para que não se pense que nosso caso é uma exceção geograficamente restrita, problema da tal “periferia”, pois, à sua maneira, os “estudos superiores” brasileiros estão na vanguarda mundial), mal passam de centros de treinamento de doutrinadores. Daí que ele tenha enveredado pelo jornalismo. Na curiosa hierarquia do jornalismo nacional, contudo, o que menos importa é saber escrever e, quando um jornal reconhece um talento, o que faz – e o que aconteceu com Reinaldo – é pô-lo para editar. Editar, diga-se de passagem, é uma experiência e tanto, uma espécie de serviço militar obrigatório, e saber fazê-lo dá aos jornalistas uma imensa vantagem sobre os acadêmicos. Reinaldo, em seguida, resolveu dirigir sua própria publicação, Primeira leitura, mas o fez quando o mercado enfrentava uma demanda cada vez mais minguada. Se não comercialmente, porém, em termos qualitativos a revista foi um sucesso – e isso em boa parte porque, além de editor, Reinaldo convertera-se também, passando a escrever amiúde, em seu principal articulista. Sem desmerecer em nada outros profissionais que trabalharam para a publicação, o passo seguinte do editor/articulista seria, como fizera Karl Kraus, fundar seu próprio Archote, um jornal escrito inteiramente por ele. Coincidentemente, os meios de comunicação tinham há pouco aperfeiçoado, para tanto, um veículo ideal: o blogue.

Surgido no começo do milênio, o web log, originalmente um diário individual exposto à visitação pública na internet, transformara-se, nos EUA e demais países de língua inglesa (anglosfera), em um meio inédito de jornalismo opinativo, capaz de colocar no ar idéias que raramente chegavam à grande imprensa ou à mídia eletrônica. O catalisador desse salto qualitativo haviam sido os atentados de 11 de setembro de 2001. De repente, milhares de pessoas interconectadas ou interconectáveis pela internet queriam saber mais, opinar, trocar idéias, passar e receber mais e mais informações, teorias, hipóteses, das brilhantes às desvairadas. O espaço opinativo do que hoje chamam com ironia de MSM (“main stream media”, ou “mídia convencional”) já estava ocupado por gente não muito apta a, em tempos subitamente novos, pensar diferente, fora dos padrões (ou of the box). Quanto às seções interativas ou de cartas, elas eram mínimas, filtradíssimas e desprezadas. Há sete anos, os blogues mais famosos e influentes da anglosfera já tinham aparecido e estavam se consolidando, atraindo dezenas, às vezes centenas de milhares de leitores e competindo diretamente com a MSM, desafiando-a e denunciando seus erros e seus vieses. Os blogues e blogueiros (bloggers) se dividiram quase de imediato em duas categorias, se bem que com inúmeras colorações intermediárias: “thinkers” e “linkers”. Os primeiros tinham idéias e escreviam artigos, ensaios ou, mais propriamente, “entradas” de seu diário eletrônico. Os outros, num universo superlotado de informação freqüentemente redundante, selecionavam diariamente (“linkando-os”) aqueles artigos e notícias que, segundo seu ponto de vista, mereciam atenção e leitura, compondo, assim, uma espécie de “clipping”, uma antologia que interessava e orientava seu público. A forma intermediária mais bem sucedida consistia em “linkar” a artigos ou notícias e comentá-los. Alguns blogueiros desenvolveram a prática de, às vezes, demolir minuciosamente um artigo da grande imprensa, interpondo comentários analíticos e críticos entre seus parágrafos. Como a primeira vítima repetida desse procedimento havia sido o jornalista inglês Robert Fisk, que escreve para o The Independent, a prática foi apelidada de “fisking” (um jogo de palavras com o nome Fisk e com os verbos “to frisk”, revistar alguém, fazer travessuras, e “to fish”, pescar). Reinaldo o faz alternando fontes vermelhas e azuis.

Não é difícil perceber agora que um blogue, de acordo com a forma que assumiu a partir de fins de 2001, é o que o vienense queria fazer, ou melhor, já estava fazendo com os recursos limitados de que dispunha: papel, tinta, a impressão, sua presença física no palco, sua voz, seu piano etc. Ou seja: Karl Kraus inventou o blogue quase um século antes do surgimento da internet.

A atividade demorou para chegar ao Brasil, país concomitantemente hipermoderno e arcaico no qual, por exemplo, a televisão já rivalizava com a do Primeiro Mundo quando a imprensa não atingira sequer a maturidade da francesa, descrita ainda em meados do século XIX por Balzac. (E esse mesmo princípio trotskista do “desigual e combinado” se aplica, como veremos adiante, à blogagem.) Embora uma internet rudimentar (mais avançada, no entanto, do que sua contemporânea norte-americana) já estivesse sendo usada na França de fins dos anos 80 (o Minitel), foi nos EUA que ela “explodiu” na década seguinte. Um elevado nível de alfabetização associado à presença da maioria dos computadores interconectados do planeta, esse foi o pressuposto para que, meio por geração espontânea, a internet desse à luz a blogosfera tão imprevisível e inesperadamente quanto a invenção de Gutemberg havia gerado aquilo que Hegel chamaria de “a oração matinal do homem moderno”, a imprensa escrita. E o que nos EUA amadurecera em 2001 só principiou a existir a sério no Brasil ao redor de 2007, seis anos mais tarde, uma eternidade em termos de século 21. Seja como for, durante os últimos dois anos, a blogosfera brasileira e Reinaldo Azevedo, se não são sinônimos, mostraram um altíssimo grau de correlação. É possível dizer, por um lado, que, devido a razões que vão das ideológicas às literárias, a MSM (a imprensa convencional) limitava o potencial de Reinaldo. Por outro, uma blogosfera nacional precisava de alguém como ele, e nisso era diferente da americana. Os EUA são um país onde qualquer cidadezinha do mais remoto interior costumava ter seus dois ou três jornais, onde existia, como no poema de Drummond, a imprensa municipal, estadual e federal, cada qual com sua esfera de influência e seu círculo de leitores. Por causa da descentralização, as dezenas de milhões de leitores americanos de notícias sempre intervieram muito mais na coisa pública do que os cidadãos de qualquer outra democracia, nem que fosse apenas para decidir as reformas da igreja local ou discutir o orçamento da escola do bairro. Até certo ponto por isso, a blogosfera americana tomou a forma de uma revolta das bases, de milhões de leitores-cidadãos desafiando o monopólio, não da imprensa sobre o noticiário, mas de uma visão de mundo específica, ideologicamente circunscrita e hegemônica na mídia, sobre as demais. Lá, alguns blogueiros se tornaram tão famosos quanto os jornalistas mais conhecidos, enquanto jornalistas célebres passaram a blogar. Tratou-se e ainda se trata de um fenômeno altamente interativo, que envolve milhões de pessoas. Esse não foi nem poderia, por razões óbvias, ser o roteiro brasileiro.  É fácil constatar posteriormente que nossa blogosfera precisaria ser impulsionada por alguém cujo vigor e, sim, até mesmo cuja liberdade de expressão estavam sendo canalizados, represados e contidos pelos meios convencionais de comunicação. Quando a esquerda, sem nunca ter deixado de ser tirânica, ainda não se voltara contra o progresso tecnológico, mas, pelo contrário, cultuava-o, Lênin disse que o comunismo se compunha de sovietes mais eletrificação. Bom, embora ninguém saiba qual o futuro da blogosfera (se bem que diversos jornais se sintam ameaçados pela internet), uma coisa é segura: no momento ela associa sinergicamente as energias da mídia eletrônica ao potencial da palavra escrita.

Ora, é justamente tal combinação que, no ambiente brasileiro, possibilitou uma dessas coincidências do moderno e do arcaico, que não ocorreu nem poderia provavelmente ter ocorrido na pátria original da blogosfera. Nenhum blogue americano ou inglês se transformou em livro, pelo menos não num dos maiores best-sellers do país. Se um blogue como o de Reinaldo não é de todo impossível na anglosfera, não há nada nos EUA ou no Reino Unido que se assemelhe ao volume chamado O País dos Petralhas. Com o sucesso dessa publicação, o autor derrubou mais um preconceito local. No mundo inteiro ensaístas publicam em revistas e jornais – não só em veículos especializados – e, depois de algum tempo, põem entre duas capas sua produção. Essa é a norma internacional e, até há pouco tempo, era a brasileira também. A academia, porém, convenceu jornalistas incultos e impressionáveis de que um livro deve ser planejado e escrito por inteiro e então publicado. Não sei se o acima citado Balzac ou, digamos, quase cem anos depois, Joseph Conrad, que publicavam capítulo por capítulo de seus romances em revistas não raro populares, concordariam. Os acadêmicos persuadiram igualmente os incautos de que há uma contradição inconciliável entre, por um lado, durabilidade ou perenidade e, por outro, imediaticidade e legibilidade. Ensaios – a contrapelo do sentido original do termo – não merecem ser enfeixados em volume, salvo se, abstratos, especializados e escritos num jargão acessível a escassos iniciados, restringirem-se a esmiuçar detalhes de insignificâncias devidamente esquecidas. Se já é um sacrilégio, portanto, coletar resenhas estampadas numa revista semanal de grande circulação, seria inimaginável reunir as entradas, ou uma seleção das entradas de um diário eletrônico, mesmo que suas análises e insights fossem mais perspicazes, pertinentes, atuais, necessárias e bem escritas do que o grosso da produção universitária.

Quanto ao conteúdo específico, seja do livro, seja do blogue, seria ocioso abordá-lo aqui, tentando resumi-lo num espaço exíguo, pois tanto os temas quanto as opiniões de Reinaldo a seu respeito são conhecidos e, ademais, ninguém os expõe e argumenta tão bem quanto ele próprio. Basta dizer que o fato de um liberal clássico, um democrata irredutível que se recusa a endossar causas que, supostamente superiores, mais nobres ou urgentes, conduzem à tirania, um empirista que pratica a dúvida sistemática sem abrir mão de princípios básicos, como o de considerar inegociável o estado de direito, um católico que defende a separação das esferas pública e privada, bem como o secularismo e a transparência na política, que alguém assim seja qualificado de reacionário, direitista, fascista (termos cuja intenção não é definir ou esclarecer, mas insultar e levar ao ostracismo) demonstra apenas a que ponto o “país dos petralhas” – uma comunidade espiritual (no pior sentido) que transcende o Brasil e, inclusive, o PT – rebaixou o intelecto e as discussões e o debate, drenando-os de suas derradeiras gotas de racionalidade e boa-educação. E nem por isso o sucesso do blogue e do livro deixa de ser alentador, pois, mais do que provar que, mesmo num ambiente uniforme como o nosso, no qual se conseguiu, sem violência ostensiva, consenso maior do que o antes alcançado nas piores tiranias, a dissidência é possível e necessária, ele reafirma, no terreno das idéias, das opiniões e análises, a invencibilidade do livre mercado. Se os dias que correm se definem pela homogeneização não do pensamento, mas de sua ausência, pelo espírito das manadas e pelos pacotes ideológicos que impõem pontos-de-vista em conjuntos indivisíveis, o estabelecimento ou implantação de uma “linha justa” acabou criando a demanda pela discordância, pela dúvida, pela diversidade. Havia, em poucas palavras, um mercado disposto a consumir o que Reinaldo tinha a oferecer. Nem com todos os elementos da hegemonia gramsciana espalhados, do pré-primário ao pós-doutoramento, pelo sistema educacional, dos grandes jornais e revistas aos folhetos do grêmio estudantil, pela imprensa e, com apoio da mídia, professados, do cineasta bilionário ao poeta marginal, pela maioria dos agentes culturais e artísticos, nem com tudo isso é possível, em última instância, obter-se um monopólio completo e perene de todas as caixas cranianas.

Comecei o artigo falando das diversas características que, não obstante as distâncias espácio-temporais, aproximam Reinaldo Azevedo de Karl Kraus. De tudo o que eles têm em comum, só não me detive ainda no principal. Ambos compartilham o mesmo ponto de partida e chegada, a saber (como suas línguas são diferentes), a linguagem. A primeira responsabilidade que cada qual assume é justamente a de tratar bem seu respectivo idioma. Conhecendo-o por amor e, portanto, respeitando-o e obedecendo a suas exigências, os dois estilistas, ao escreverem com rigor, pensam com igual rigor, vale dizer, claramente. Tal clareza, a opulência de recursos que deriva não do mero acúmulo, mas do convívio paciente e prazeroso, um moralismo (no bom sentido) lingüístico que leva o autêntico escritor a se indignar diante do espetáculo da língua materna sendo maltratada, isso e mais é o que lhe permite, em cada circunstância, tanto alcançar o tom preciso, achar a palavra justa, discernir a nuance exata do que tem a dizer, como, sobretudo, diagnosticar, julgar e avaliar a escrita alheia. Para o auscultador da linguagem, a mentira, a falsificação e a falsidade, a manipulação, a irresponsabilidade e a má-fé se exibem, antes de mais nada, no aviltamento, por sutil ou elegante que pareça, da escrita, isto é, numa palavra mal escolhida aqui, numa frase demasiado retorcida (como que por vergonha) ali, e em outros mil detalhes mínimos. Repito: quem escreve bem, lê bem e, para quem leia bem, o que há de suspeito num texto se entremostra antes mesmo que o sujeito confira os dados ou tire a limpo os fatos, porque algo lhe salta aos olhos, soa-lhe esquisito, impróprio – cheira, enfim, mal a seus ouvidos. Assim como nada critica um texto ruim tão adequada e contundentemente quanto um texto bom, o antídoto para más idéias são idéias melhores. Que Reinaldo tenha encontrado no blogue seu veículo (e vice-versa) é uma sorte que, negada a Kraus, foi-lhe propiciada pelo Ocidente, pelo Iluminismo, pelo racionalismo, pela ciência, pela Revolução Industrial, pela economia de mercado (que ainda insistem em chamar de capitalismo), por inventores e empresários à procura de lucros e por outros tantos monstros reconhecidamente hediondos, malignos. Seu sucesso, todavia, como esse mais moderno de todos os arcaísmos – o livro – demonstra bem, decorre mesmo é da combinação de talento, trabalho duro e amor (correspondido) pela língua.

Palavras, palavras, palavras

por Jonas Lopes

Dados técnicos: Javier Marías, Coração tão branco. Tradução de Eduardo Brandão. Companhia das Letras, 2008, 272 pp.

Publicado originalmente em 1992, Coração tão branco constitui-se em ponto fundamental na carreira de Javier Marías. Foi a partir dali que o escritor espanhol alcançou em definitivo a personalidade literária própria e intransferível que o consagrou nos romances seguintes, os sensacionais Amanhã, na batalha, pensa em mim (1994), Negro dorso do tempo (1998) e o tríptico Seu rosto amanhã (2002-2007). Filho do filósofo Julián Marías, o fiel discípulo de Ortega y Gasset (com quem fundou o Instituto de Humanidades de Madri, em 1948), Javier desde cedo foi educado para as artes, em especial literatura e cinema. Não surpreende que tenha estreado cedo: publicou Os domínios do lobo com apenas 19 anos, em 1971. O próprio autor hoje assume a imaturidade da estréia, que possui influência da Hollywood dos velhos tempos e de autores americanos como Dashiel Hammett, Flannery O’Connor e John O’Hara.

Javier Marías continuou escrevendo e sofisticando seu estilo, ao mesmo tempo em que labutava como professor universitário (chegou a dar aulas em Oxford) e tradutor. Verteu para o espanhol gênios como W.B. Yeats, W.H. Auden, sir Thomas Browne e Vladimir Nabokov (os Marías foram vizinhos do criador de Fogo pálido na época em que viveram nos Estados Unidos), com destaque para a premiada versão de A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy, a obra-prima de Laurence Sterne, em edição com mais de mil notas publicada em 1978, quando Marías tinha menos de trinta anos de idade. “Sterne me ensinou a fazer um minuto durar oitenta páginas”, afirmaria o escritor madrileno alguns anos depois. De fato, sua ficção mais e mais deixaria transparecer a influência do pastor anglicano irlandês. O homem sentimental (1986) e Todas as almas (1988), embora ainda um pouco irregulares, já anteviam o tal “estilo Marías”. Faltava apenas aportar nele de vez, o que viria a acontecer, então, com Coração tão branco, seu trabalho mais conhecido e cultuado até hoje.

Algumas das peculiaridades de seu texto: sentenças enormes, em parágrafos que duram páginas; digressões igualmente longas, a ponto de os narradores (sempre em primeira pessoa) por vezes perderem o fio do relato para enveredar por uma série de caminhos tortos e por reflexões de cunho filosófico-ensaístico sobre vida, morte, amor, memória, política, artes e os efeitos da passagem do tempo; e, por fim, sólidos blocos narrativos, ou seja, um grupo relativamente pequeno de cenas detalhadas ao máximo e que concentram a ação do livro, à maneira de uma compilação de episódios. Características típicas de Sterne? Exatamente. E ele está em boa companhia: alguns dos outros (exemplares) modelos apontados pelo espanhol são Marcel Proust, Henry James, Joseph Conrad, William Faulkner, T. S. Eliot, Rainer Maria Rilke, o conterrâneo Juan Benet e os mais recentes Thomas Bernhard (publicado na Espanha pela primeira vez por influência de Marías, então consultor da editora Alfaguara) e W. G. Sebald (que o classificou como “twin writer”). Pode parecer uma prosa difícil e cerebral, e realmente é, apesar de nunca ser impenetrável ou cair no hermetismo vazio. A prova disso é que, na Europa, Marías vende muitos livros. Coração tão branco, sozinho, chegou a mais de um milhão de cópias na Alemanha, por exemplo.

Juan, o protagonista do romance, poderia ser o narrador de qualquer outro dos livros da maturidade do autor – é como se cada novo título fosse uma pedra de um amplo e valioso vitral. Intelectual, sem muito traquejo para a vida prática, inclinado à metafísica e à adoração das mulheres, mesmo que tampouco seja muito esperto para tratar com elas. Como o próprio Marías esclarece em inúmeras entrevistas, todos os seus narradores são pessoas que, de uma maneira ou de outra, renunciam à própria voz: sejam cantores de ópera (O homem sentimental), intérpretes de línguas estrangeiras (Coração tão branco), tradutores de livros (Amanhã, na batalha, pensa em mim) ou mesmo agentes secretos que com um mero olhar dissecam a personalidade de suspeitos para uma organização misteriosa (Seu rosto amanhã). Letras de árias, discursos políticos, aulas a serem ministradas, frases de um romance estrangeiro: as causas e efeitos das palavras em nossas vidas. A problemática central da obra de Marías, dessa forma, é como calamos ou deixamos de calar, assim como a alegria e a dor advindas da decisão de guardar segredos ou torná-los públicos.

Uma cena impactante abre Coração tão branco. Em meio a um jantar em comemoração à sua volta das núpcias, uma jovem caminha até o banheiro e se mata com um tiro no coração. A suicida é tia do narrador; após a morte sangrenta, seu pai se casa com a irmã caçula da morta, sua mãe. Já adulto e órfão de mãe, Juan trabalha como intérprete de congressos políticos. Em um deles, o encontro entre uma governante britânica (claramente inspirada na primeira-ministra Margaret Thatcher) e outro espanhol (o ex-presidente Felipe González, provavelmente), ele troca, de propósito, as frases na tradução, transformando o sentido do colóquio, – uma prova dos poderes do falar – e conhece assim a sua esposa Luisa, também intermediária da reunião. Idas e vindas na história, devido, sobretudo, à ajuda de Luisa, levarão Juan a descobrir detalhes até então desconhecidos (e fatídicos) sobre o passado do pai e os motivos do suicídio da tia. “Quando você tiver segredos ou se já os tiver, não os conte”, aconselha o pai. Essencial lembrar que Julián Marías foi perseguido pela ditadura de Franco, teve seus livros retirados das prateleiras e foi impedido de lecionar – e tudo isso porque seu melhor amigo o delatou com uma falsa acusação de traição, evento explorado abertamente pelo filho Javier em Seu rosto amanhã, mas que permeia toda a sua bibliografia.

O título de Coração tão branco foi tirado de Macbeth. A citação da peça do bardo inglês está presente inclusive na epígrafe: “Minhas mãos são de tua cor; mas me envergonha trazer um coração tão branco”. A frase é sussurrada por Lady Macbeth ao marido, que acabara de assassinar o rei Duncan. Foi-se embora ali a inocência de Macbeth, arrastada pelas palavras da esposa. Desconhecer o segredo mórbido do pai é a salvação de Juan, livre do perigo de escutar, já que “os ouvidos não têm pálpebras que se possam fechar instintivamente ao que é dito”. O personagem, como todos nós, convive diariamente com a dificuldade de manejar a linguagem, de tratar as palavras como armas (ou como jóias preciosas), sem prever aquilo que Marías chama de “efeito explosivo” – não esqueçamos que a História só se torna História depois de ser colocada em palavras, sejam elas ditas ou escritas. Mais do que isso, convive com a suspeita, sempre dolorosa e inevitável, e com a incapacidade de confiar de todo em quem quer que seja – no melhor amigo, na família, na mulher amada.

Não à-toa, outro tema central do romance parece ser, pelo menos na superfície, o casamento. Recém-unido com Luisa, Juan lamenta uma possível perda de identidade por parte de quem escolhe viver a dois – isto seria, a seu ver, “a abolição daquele que cada um era e pelo qual cada um se apaixonou”. Ao passo que a chefe de governo da Inglaterra, a tal personagem baseada em Thatcher, ressalta como em qualquer relação amorosa “todo mundo obriga todo mundo, não tanto a fazer o que não quer, mas antes o que não sabe se quer”. Acontece que mesmo o matrimônio ganha, aqui, tratamento de estudo de linguagem. “O casamento é uma instituição narrativa”, afirma, surpreendentemente, o autor espanhol, por meio da voz de seu intérprete. Juan continua:

“Por amor ou pelo que é sua essência – contar, informar, anunciar, comentar, opinar, distrair, escutar e rir, e projetar em vão – uma pessoa trai os outros, os amigos, os pais, os irmãos, os consangüíneos e os não-consangüíneos, os amores antigos e as convicções, as ex-amantes, o próprio passado e a própria infância, a própria língua que deixa de falar e sem dúvida a própria pátria, tudo o que em toda pessoa há de secreto, ou talvez de passado. Para agradar a quem se ama denigre-se o resto do existente, nega-se e execra-se tudo para contentar e tranqüilizar um só que pode ir embora, a força do território que o travesseiro delimita é tanta que exclui de seu seio o que não está nele, é um território que por natureza não permite que nada esteja naquele, exceto os cônjuges, ou os amantes, que em certo sentido ficam sozinhos e por isso conversam e nada calam, involuntariamente”.

Em seu admirável tratado Sobre a tagarelice, Plutarco reflete que “se os homens ensinam a falar, são os deuses que nos ensinam a calar”, e também que, por ser “o instrumento dos maiores bens”, a língua é também “o dos maiores males”. Ao escrever que “o calar e o falar são formas de intervir no futuro”, Marías, herdeiro talvez inconsciente do grande pensador grego, relaciona diretamente a questão também à perda da inocência, à necessidade de assumir um ato monstruoso e irremediável, como na citada tragédia de Shakespeare, ainda que a culpa seja de uma esposa ambiciosa (ou de um amigo delator). Afinal, “uma instigação nada mais é que palavras”. Pois tão logo um segredo ou sua revelação contaminam a nossa existência, deixamos, imediatamente e do mesmo modo que Macbeth, de ter um coração tão branco, manchado que está por essas palavras escarradas, gastas e impensadas.

Jonas Lopes é jornalista da revista Veja São Paulo. Mantém na internet o blog Gymnopédies (gymnopedies.blogspot.com).

Crítica do desejo humano

por Pedro Sette Câmara

Dados técnicos: René Girard, Mimesis & Theory. Stanford University Press, 2008. 334 pp.

Mais um pensador francês contemporâneo e inclassificável? Antes de pensar “não, obrigado”, veja algumas credenciais de René Girard: apesar de ter sido apresentado ao Brasil pela teologia da libertação, seu nome é o primeiro de um abaixo-assinado de intelectuais que pediam ao Papa Bento XVI a volta da missa “tridentina”; ele fez sua carreira não na própria França, que considera um tanto senil, mas nos EUA, onde diz estar “cercado de vida”, e, se você pensa que por isso ele se transformou em conservador, é preciso dizer logo que sua principal crítica a Nietzsche e Freud é que… eles não foram longe o suficiente.

Os fundamentos de seu pensamento foram apresentados em seus dois primeiros livros, Mensonge romantique et verité romanesque (“Mentira romântica e verdade romanesca”, publicado em inglês como Deceit, Desire and the Novel) e La violence et le sacré (publicado pela Paz e Terra no Brasil como “A violência e o sagrado”) e consistem, muito resumidamente, na teoria do desejo mimético e na explicação da origem dos mitos como falsas acusações levantadas contra bodes expiatórios. Girard observa que desde Platão o homem estuda diversos tipos de imitação, exceto um: a imitação dos desejos. Para crer que temos uma identidade própria, precisamos crer que nossos desejos tiveram sua origem em nós mesmos – na verdade, nada mais cafona ou inaceitável do que admitir que queremos algo porque nosso próximo quer. No entanto, pergunte a qualquer mulher se algo torna algum homem mais atraente do que ter ao seu lado outra mulher indubitavelmente maravilhosa. Não se trata exatamente de uma inveja (se aceitamos a definição de inveja como a tristeza pelo bem alheio), mas do desejo de ser o outro – desejo que existe porque os outros sempre parecem maravilhosos, sensacionais, intensos, e nós mesmos parecemos, a nossos próprios olhos, mesquinhos e banais. Também é fácil verificar que sempre atribuímos a objetos (concretos e abstratos) o poder mágico de transformar nossa existência: quando eu tiver aquela engenhoca, aquele carro, aquela casa, aquela pessoa, aquela educação, o resto maravilhoso da minha vida vai começar. Como nenhum objeto tem esse poder, vamos caminhando de frustração em frustração. Quando diversas pessoas desejam um mesmo objeto que não pode ser compartilhado, temos uma crise que só pode ser resolvida pelo sacrifício de um culpado – aquele que supostamente impede a posse do objeto. Se isso parece muito abstrato, basta pensar nas multidões que, durante a visita de George W. Bush ao Brasil, apedrejaram o consulado americano no Rio de Janeiro.

Isso não é tudo: só há crise porque desejamos algo que pertence ao próximo. Quando preferimos imitar um modelo distante – como os cristãos imitam Cristo, como os autores não tão antigos imitavam os mais antigos, os clássicos –, não temos problema em declarar nosso amor e em escancarar que estamos imitando, que esperamos ser julgados por aquele modelo e não por uma medida “nossa”. A existência de modelos distantes e comuns é fundamental para a coesão de uma sociedade – e provavelmente a nossa ainda será melhor entendida quando considerarmos que zombamos dos mesmos tipos, mas não respeitamos tipo nenhum. Agora, o próprio Girard admite que, apesar de logo ter reconhecido essa “boa” mímese, sua obra foi quase toda devotada ao estudo da mímese “má”. Para quem não a conhece, um excelente aperitivo é Mimesis & Theory: Essays on Literature & Criticism, 1953-2005, publicado em 2008 pela Stanford University Press, que reúne 20 artigos avulsos de Girard em publicações acadêmicas. Destes, 13 foram escritos originalmente em inglês. Quase todos tratam de um ou mais autores específicos: Saint-John Perse, Sartre, Tocqueville, Stendhal, Proust, Dostoiévski, Shakespeare; outros lidam diretamente com questões teóricas, remetendo-as – o que não pega bem em muitos departamentos universitários ditos de respeito – à própria vida. Assim, por exemplo, em Critical Reflections on Literary Studies, de 1966, Girard já considera que há um engessamento da crítica causado pela burocratização universitária e, na contramão da pseudo-prudência acadêmica, defende aquilo que uns consideram reducionismo: “Todo pensamento vigoroso mais cedo ou mais tarde acaba chegando aos próprios fundamentos; vai terminar, assim, numa redução. Podemos, é claro, continuar ignorando nossos primeiros princípios, achando que somos os únicos a não os ter, e até nos vangloriarmos desse vácuo: mas nada disso contribui para nosso pensamento. […] A fobia do reducionismo ameaça emascular todo o pensamento crítico” (p. 166).

Este resenhista crê que o filé do livro está na seqüência de três ensaios – “Innovation and Repetition”, “Feodor Dostoievsky: Mimetic Desire in the Underground” e “Conversion in Literature and Christianity” – que antecede o último, sobre Romeu e Julieta. No primeiro deles, Girard começa observando que mesmo na querelle des anciens et des modernes a disputa era em torno de quais os melhores modelos, os antigos ou os modernos, não da idéia mesma de imitação. Com o surgimento da obrigação de originalidade no romantismo – não diminuída nem mesmo pela impressão cada vez mais forte de que, em arte, “tudo já foi feito” –, hoje chegamos à paradoxal situação de a imitação aberta e admitida ter-se tornado, se não original, ao menos singular. Mas Girard não se restringe às belas artes e leva sua análise para o âmbito da competição capitalista, mostrando que o livre mercado é uma forma de conter pacificamente a mímese má, e que inovação e imitação fazem parte do jogo entre as empresas. No segundo, que discute Notas do subsolo, de Dostoiévski, Girard tenta reduzir a uma lei aquilo que o autor russo manteve como metáfora: “as pessoas do subsolo são irresistivelmente atraídas por aqueles que os desprezam, e sentem um desprezo irresistível por aqueles que se sentem atraídos por elas” (p. 253). Isso pode ser encontrado na primeira parte do romance, a parte “teórica”, em que Dostoiévski afirma que o desejo de independência é maior do que aquilo que os iluministas chamavam de “interesse próprio”. Na famosa passagem da “mão invisível” de A riqueza das nações, Adam Smith recorda que não é por caridade que o açougueiro trabalha, mas por interesse próprio; Dostoievski quer demonstrar pelas histórias de seu personagem que o desejo de mostrar-se superior, independente, autodeterminado – isto é, de mostrar a espontaneidade dos próprios desejos –, é maior do que o desejo de beneficiar-se. Desejo esse que não é outra coisa do que o ressentimento de não ser Deus. O terceiro ensaio leva a questão adiante, mostrando uma analogia entre a conversão cristã e a percepção que leva um autor de talento a se transformar em um autor verdadeiramente grande: a capacidade de perceber a própria finitude e acusar a si mesmo, em vez de acusar os outros ou alguma abstração (a sociedade, os deuses, o mercado, o neoliberalismo). O grande autor, em vez de buscar a realização pelo desejo, sabe que deve suspeitar dele, e, sempre segundo Girard, freqüentemente se transforma em parodista de suas primeiras obras. A “conversão” está em passar a sacrificar a si próprio (Lucas 9, 24; Mateus 8, 35-36) e assim escapar do círculo vicioso de frustrações que, levado ao paroxismo, é o “subsolo” de Dostoiévski.

Duas coisas acabam chamando a atenção na leitura de Girard: primeiro, que, ao contrário de boa parte da crítica, ele não se esquiva do mundo da vida. Em vez de circunscrever-se a um suposto mundo isolado das obras literárias, Girard o tempo inteiro considera que elas se referem a experiências humanas possíveis. Sua tese inicial, aliás, não é literária, mas psicológica ou antropológica; é uma tese sobre um aspecto do desejo, não das obras de arte. Segundo, pode-se dizer que ele inverte a tendência de certa crítica contemporânea de querer considerar-se também “arte” ou ao menos atividade criadora, pois Girard vê-se não como o crítico que interpreta obras artísticas, mas como o intérprete de obras artísticas que contêm – não apenas sob a forma de exemplos, mas de comentários diretos – teorias sobre o desejo. É a arte que, por fim, que se transforma em “crítica” do ser humano.

Pedro Sette Câmara é poeta, tradutor e colunista da Dicta&Contradicta.

Os pioneiros da América

por Martim Vasques da Cunha

Dados técnicos: Bill Graham e Robert Greenfield. Bill Graham Apresenta: minha vida dentro e fora do rock. Tradução de Juliana Lemos. Ed. Barracuda, 575 pp; Joseph O´Neill. Netherland. Harper Perennial, 247 pp.

Sempre que se publica uma biografia de alguém que não passou a sua vida na ribalta, mas simplesmente nos bastidores do sangue, suor e lágrimas – também chamado de “trabalho” – faz-se a pergunta: “Qual a relevância disso? Será que a vida de alguém que sempre fez as coisas para os outros e não ficou apenas no mundo maravilhoso da vida contemplativa pode ser um exemplo instrutivo para o leitor comum?” Ouso dizer que sim. Todas as vidas, em especial aquelas que deixam os seus depoimentos nas páginas dos livros, valem a pena ser conhecidas.

Principalmente se foram as vidas de Bill Graham e de Chuck Ramikissoon. “Quem são? Nunca ouvi falar!” – responde o impaciente leitor. Vamos com calma. O primeiro foi o homem que transformou o rock-n´-roll em um negócio lucrativo, com seus shows, camisetas e planos megalomaníacos, conseguindo uma delicada harmonia entre os desejos dos promotores de shows e os anseios ególatras destes seres tão sensíveis que são os artistas do palco. O segundo veio de Trinidad, tem ascendência indiana, vive como um magnata na Nova Iorque pós-11 de setembro e sua idéia fixa é fundar um clube internacional de cricket, aquele esporte que, quando seus jogadores não são atingidos por atentados da Al-Qaeda, é de uma chatice insuportável.

A principal diferença entre eles é que Graham existiu de fato, enquanto Chuck é um personagem inventado pelo escritor irlandês (criado na Holanda e residente em Nova York) Joseph O´Neill, em seu badalado livro Netherland. O depoimento de Bill Graham foi coletado por Robert Greenfield, jornalista especializado em relatos sobre as grandes lendas do rock (também é dele Uma temporada no inferno com os Rolling Stones, recentemente publicado no Brasil); os gestos e as falas grandiloqüentes de Chuck são narrados pelo analista corporativo Hans van der Broeck, que, como se não bastasse, encontra-se no meio de uma crise conjugal provocada pelo terror dos ataques ao World Trade Center.

Cada um deles tem a idéia fixa que merece e, conseqüentemente, o seu Nick Carraway particular: um sobrevivente que conte suas histórias. Da mesma forma que Jay Gatsby no clássico de Scott Fitzgerald, tanto Graham como Ramikissoon começam os seus respectivos livros mortos. O primeiro, vítima de um acidente de helicóptero após ter assistido um show da banda Huey Lewis and the News; o segundo, encontrado morto embaixo de um rio, pernas e braços amarrados, após um desaparecimento de dois anos. A referência a Gatsby não é frescura erudita; como o bootlegger charmoso dos anos 20, Graham e Chuck são homens de visão – ou melhor, de uma única visão. Eles são aquilo que chamamos de “empresários” ou “empreendedores”. Mas há um nome mais apropriado para o que querem representar em seu país de adoção, os Estados Unidos da América – “pioneiros”.

Chuck quer unir um mundo em pedaços através do cricket; Bill Graham quer garantir ao público um evento em que tudo está sob seu controle, dos artistas aos seguranças, simplesmente para que cada espectador diga a si mesmo ter sido aquela uma das melhores noites da sua vida. Atravessarão todos os obstáculos para conseguir o que querem – mesmo às custas dos outros. Chuck trabalha junto a um comerciante russo que resolve seus problemas com um método duvidoso: o taco de beisebol; Graham deixa a vida pessoal de lado e concentra-se no trabalho, alienando mulheres e filhos, e permite que uma “voz sombria” (suas palavras) domine seus atos e pensamentos, até que uma depressão severa o paralisa quase por completo. Enfim, não são vidas com final feliz.

Mas talvez o que importa nelas não é a forma como terminam e sim como elas foram  narradas. Em Bill Graham Apresenta, conhecemos a trajetória deste inovador dos grandes shows de rock através de depoimentos de quase todas as pessoas com quem ele se encontrou.

Se o final não foi feliz, o início poderia ser muito pior: Graham nasceu como Wolfgang Grajonca, na Alemanha dos anos 30, e, se o leitor tiver feito a lição-de-casa, sabe que o rapaz poderia ter morrido em algum Auschwitz da esquina se não fugisse para a fronteira da França. Suas irmãs mais velhas também se espalharam pela Europa; os pais não tiveram a mesma sorte: morreram nos campos de concentração. Da França para os EUA, Grajonca foi adotado por uma família judia do Brooklyn e transformou-se em William Graham, ergo Bill. Seu desejo maior era ser ator; imitava James Dean, Marlon Brando e Eli Wallach (Tuco, ou “o Feio”, de Três Homens em Conflito, de Sergio Leone).

Teria, entretanto, passado a vida como garçom e coletor de apostas nas pousadas dos montes Catskill, se não tivesse se deparado com um grupo de teatro alternativo em São Francisco, a Mime Troupe, e tivesse tido a idéia de organizar eventos musicais beneficientes.

A partir daí, o resto é mais do que história: é uma galeria de personagens que, graças à sábia decisão da editora em incluir um índice onomástico, identificamos como Otis Redding (uma máquina de vulcão erótico), Jimi Hendrix (grande inalador de pó branco), Janis Joplin (a mais solitárias das rock stars), Bob Dylan (temperamental como sempre), The Band (a Dicta&Contradicta do rock), Led Zeppelin (um bando de rufiões e criminosos), Rolling Stones (arrogantes e, no caso de Mick Jagger, extremamente desleal ao fechar um negócio), The Who (apesar das drogas e das guitarras quebradas, uma das poucas bandas “boazinhas”) e, last but not least, Sting, que, chato como sempre, prova que sua imagem de bom moço é apenas uma fachada para garantir negócios no Japão. Todos passaram ou dependeram alguma vez da visão e do profissionalismo de Bill Graham.

A biografia de Graham é uma série de depoimentos alternados, uma espécie de história oral do rock, em que as versões se sucedem e se complementam, sem nunca, porém, acentuar o lado sombrio do empresário. Não é o que acontece em Netherland. No romance de Joseph O´Neill, o que temos são dados e insinuações sobre Chuck Ramikissoon que nos levam a crer que ele era um rematado gangster, uma versão hindu dos wiseguys de Martin Scorsese em Os bons companheiros (1997). Aclamado pela crítica americana – especialmente por James Wood, o crítico literário de maior influência no establishment cultural contemporâneo –, Netherland é um livro planejado em minúcias para que o leitor se sinta na paisagem emocional de suas personagens, narrado por um Hans van der Broek que, apesar de estrangeiro, usa o inglês como um Saul Bellow ou um John Updike, deliciando o leitor com passagens de descrições urbanas onde homem e cidade se unem em uma desolação ímpar, típica dos exilados que não sabem mais onde está seu lugar de repouso. Temos a impressão de que o enredo é quase um fiapo; envolve pouco mais do que as divagações do flying dutchman sobre sua vida emocional devastada.

Numa ironia suprema, não há um único americano na trama: todos são ingleses, holandeses, russos, indianos, gregos. O povo nativo aparece numa cena em que a sua imagem fica um pouco manchada: quando van der Broek vai a uma repartição pública para tirar uma nova carteira de motorista, é tratado pelo burocrata americano como se fosse um intruso, um verdadeiro pária. A piada é óbvia: Nova York foi fundada por holandeses; Hans é agora apenas mais um estranho no próprio ninho que seus antepassados ajudaram a construir. Seria uma piscadela de O´Neill ao trato do governo Bush com os imigrantes – ou mais uma amostra de uma Bush Derangement Syndrome?

O próprio O´Neill classificou o seu romance como um “livro pós-americano”. Talvez ele queira homenagear Fareed Zakaria, mas também leva a crer que não entendeu o que escreveu. Hans e Chuck são sujeitos conectados ao mundo através da tecnologia (e Netherland é um dos primeiros romances a utilizar, com propriedade, gadgets como o e-mail e o Google Satellite Camera); contudo, o que eles realmente desejam é fazer parte da América – e quando percebem que o preço para tal integração é alto demais, nada menos que a desistência da sua própria história e individualidade, ambos falham em seus intentos. Chuck fica obcecado com a idéia de seu clube internacional de cricket e morre assassinado; Hans tem de voltar para a Inglaterra e reconquistar a esposa antes que ela se envolva com outro homem. No fundo, a idéia fixa de ambos – e também de Bill Graham – é a América, a terra das oportunidades, o novo mundo onde sempre se pode ser uma outra pessoa e se ter, enfim, uma nova vida.

Wolfgang Grajonca e Chuck Rami-kissoon são pioneiros da América; mas são pioneiros que, no confronto com o daimon do empreendedorismo, formam uma categoria à parte da atual leva de imigrantes. Suas visões nos remetem aos settlers que primeiro araram a terra e prepararam o cultivo para seus descendentes. Não precisaram de ações afirmativas, e muito menos de favores governamentais. Conquistaram tudo o que tiveram, para o bem ou para o mal, graças ao trabalho, pelo qual se sentiam responsáveis. E, por isso mesmo, talvez sejam uma raça em extinção – uma raça de pioneiros que ousam atravessar a terra que poucos querem caminhar e que, por falta de nome melhor, chamamos de exílio interior, onde encontramos, ao mesmo tempo, a maior das liberdades e a pior das desgraças. Cabe ao leitor decidir qual das vidas vale a pena ser lida.

Cicuta no reaça

por Remo Mannarino Filho

Dados técnicos: I. F. Stone, O julgamento de Sócrates. Tradução de Paulo Henriques Britto; Companhia das Letras, 2005, 331 pp.

Não se trata absolutamente de um argumento ad hominem, mas não será possível compreender o esquisitíssimo O julgamento de Sócrates sem nos determos por um instante a analisar quem foi o seu autor, o jornalista velha-guarda americano I. F. Stone. Filiado desde a adolescência ao Partido Socialista, trocou o curso universitário inconcluso pelas redações e dedicou quase toda a carreira às denúncias contra o que considerava os desmandos e abusos dos governos americanos. Trabalhou em diversos dos grandes jornais e revistas do país antes de fundar a I. F. Stone Weekly, uma publicação independente de comentários e análises do noticiário político que logrou obter relativo êxito de circulação. Acabou alienado pela esquerda ortodoxa por suas críticas aos regimes soviético e maoísta, especialmente no que dizia respeito às restrições à liberdade de expressão.

Liberdade de expressão que, aliás, se tornou sua grande causa e obsessão. Sem jamais abandonar o socialismo da juventude, passou a tentar promover, conforme diz no prefácio do livro, “uma síntese libertadora entre Marx e Jefferson”. É curioso que um defensor ardoroso dessa causa fosse um crítico contumaz do país em que seu pasquim de oposição circulava livremente, e ao mesmo tempo um defensor da forma de governo mais autoritária e intolerante que já se tentou praticar sobre o globo. Mas, se não cabe aqui especular sobre essa posição política extravagante, é preciso tê-la em mente para que se possa entender o espírito que anima O julgamento de Sócrates.

Aposentado, Stone resolveu dedicar-se a um estudo de maior fôlego sobre a liberdade de pensamento e circulação de idéias. Começou com as revoluções inglesas do século XVII; foi daí para a Reforma protestante; concluiu que seria necessário recuar até a Idade Média e, por fim, à condenação de Sócrates. A escolha não é indevida: o episódio de Atenas é de fato o conflito prototípico entre coerção da coletividade e consciência individual. O jornalista registra seu espanto diante dessa mácula na cidade-estado considerada o berço da democracia: “Como poderia o julgamento de Sócrates ter ocorrido numa sociedade tão livre? Como pôde Atenas trair seus próprios princípios de tal modo?” Mas o curioso vem depois desse espanto: é a estratégia argumentativa de Stone, que permeia todo o livro. Ele decide atuar como um advogado de defesa de Atenas, buscando preservar a sua boa fama e compreender as razões do júri. Em suas próprias palavras: “Quando iniciei meu trabalho, não podia defender o veredicto dos juízes, e continuo não podendo. Mas me interessava descobrir o que Platão não nos revela, ver as coisas pelos olhos de Atenas, atenuar os crimes da cidade e remover, desse modo, uma parte do estigma que o julgamento representa para a democracia de Atenas.”

É esse o espírito que perpassa as mais de 300 páginas que se seguem. Stone se esforça por desenvolver duas teses independentes: na primeira metade do livro, defende que Sócrates era mesmo um perigoso reacionário que envenenava a cabeça dos jovens com idéias antidemocráticas, portanto uma ameaça à manutenção do regime ateniense; na segunda metade, dedica-se a provar que o filósofo forçou o quanto pôde a própria condenação, com o intuito de lançar sobre o regime democrático a culpa pela morte de um inocente. Há ainda uma subtese na segunda metade do livro, na verdade a mais interessante das apresentadas na obra: a de que o real motivo da condenação foi o medo de que as idéias de Sócrates acabassem incitando, mesmo que involuntariamente, uma nova insurgência antidemocrática, como as que haviam acontecido em três ocasiões então bastante recentes. Diante do conturbado cenário político que se formou após a Guerra do Peloponeso, acusadores e juízes teriam tomado o filósofo por um potencial agitador da juventude contra as instituições atenienses.

As duas teses centrais do livro são bastante simplórias, para dizer o mínimo, mas não é esse o problema de O julgamento de Sócrates. O que o torna um livro pueril é a estreiteza das categorias mentais de seu autor. Depois de uma vida dedicada aos debates que emergem do noticiário político do dia, Stone parece incapaz de contemplar um episódio central da história do pensamento sem referi-lo às mais toscas idéias militantes de seu tempo. Alguns exemplos serão suficientes para mostrar que não há aqui nenhum exagero. Na pág. 35, por exemplo, Stone acusa Platão de macarthismo ao comparar o Conselho Noturno do diálogo Leis com o Comitê de Investigação de Atividades Anti-Americanas. Adiante, e cruzando intrépido o limiar do ridículo, o autor afirma que, enquanto Hesíodo era um poeta mais à esquerda (“Os trabalhos e os dias é o primeiro poema de protesto social”, que “exprimia os sentimentos de sua classe sofrida, em oposição aos proprietários rurais”), Homero pendia mais para a direita. O autor da Ilíada manifestaria “um preconceito de classe explícito em sua descrição de Tersites”, por retratar o soldado insurgente como feio, manco e inarticulado. Na esteira desse raciocínio, acusa de preconceito o Oxford Classical Dictionary e o Der Kleine Pauly, simplesmente por reproduzirem a descrição que Homero faz de seu próprio personagem (sei que é difícil crer nisso; peço que confiram a nota 13, pág. 295). No rol das frases quase inacreditáveis, há ainda, entre muitas outras, a que encerra os comentários sobre o diálogo Êutifron: “Sócrates não manifestava nenhum interesse pelo direito dos pobres, nem pela justiça social.” É esse o grau de sofisticação cultural e intelectual do autor: reduzir as configurações da Grécia ática às disputas políticas, ou mesmo eleitorais, dos Estados Unidos de seu tempo. Nessa tosca equação, sobrou para Sócrates o papel que Dick Cheney exerce no imaginário de um Michael Moore.

Outro índice da rudeza intelectual de Stone está na forma como ele interpreta algumas noções fundamentais da filosofia socrático-platônica. Ele atribui a cada uma delas uma motivação política mesquinha e inconfessável; é como se algumas das mais altas especulações do espírito humano só existissem para camuflar comezinhos interesses imediatos. É essa a chave interpretativa que ele usa para compreender a sutil identificação que Sócrates propõe entre virtude e conhecimento: seria uma maneira de afirmar que pessoas do povo não devem governar. A crítica aos sofistas, que tem nos diálogos platônicos uma dimensão ao mesmo tempo ontológica, epistemológica e moral, é qualificada por Stone como “preconceito de classe”, pois os professores itinerantes seriam democratizadores do conhecimento. O célebre “só sei que nada sei”, princípio que impunha aos “amantes da sabedoria” o dever da análise crítica sobre o próprio conhecimento, torna-se, num estranhíssimo raciocínio, um subterfúgio encontrado por Sócrates para se esquivar da responsabilidade pelas ações de seus discípulos revolucionários. No afã de levantar acusações contra o pensamento socrático, Stone chega a deliberadamente inverter as teses defendidas nos diálogos platônicos. Ele afirma que Sócrates apregoa a impossibilidade do aprendizado, quando é precisamente contra essa tese que ele discute com Mênon no diálogo de mesmo nome. Atribuindo a Sócrates um ceticismo absoluto, que para o autor seria uma maneira de negar poder político aos homens simples (o que, aliás, é um primoroso non sequitur, já que, para um cético absoluto, o povo não estaria mais privado de conhecimento do que os nobres), ele se furta a registrar o fato de que o próprio Sócrates não apenas defende, nesse diálogo, a possibilidade do conhecimento, mas a demonstra no ato mesmo de ensinar um procedimento matemático a um personagem repentinamente trazido à cena. O fato de o personagem em questão ser um escravo poria a perder a maior parte dos argumentos expostos na primeira metade do livro, mas esse detalhe é evidentemente escamoteado.

Acadêmicos em geral, e helenistas em particular, costumam receber muito mal as intrusões de não-especialistas em seus assuntos e têm o hábito de ignorar abordagens vindas de fora dos departamentos de estudos clássicos. O livro de Stone faz tudo o que pode para dar razão a essa postura. Mas, se a indiferença acadêmica pela produção leiga pode explicar a ausência de interesse ou de resposta ao atentado aos bons estudos que é O julgamento de Sócrates, realmente não creio que se justifique uma atitude tão blasée. Lançado no Brasil pela popular (e, aliás, excelente) coleção de bolso da Companhia das Letras, o livro conseguiu popularizar algumas teses. Várias das idéias ali expostas já se ouvem circular pelo precioso meio de não-especialistas que têm um interesse mais que superficial pela filosofia antiga.

Se, portanto, o leitor aceita recomendações de leitura, há de aceitar também esta veemente não-recomendação: não perca seu tempo com O julgamento de Sócrates. Mesmo as poucas virtudes do livro, como a fluência do texto (mantida na ótima tradução de Paulo Henriques Britto) e eventuais bons trechos informativos, são postas a perder pela aberrante tese central e pela absoluta incapacidade do autor de acompanhar vôos um pouco mais altos do espírito humano.

Remo Mannarino Filho é professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e professor titular de ensino à distância da Fundação Getúlio Vargas.

Liberdade de pensamento

por Joel Pinheiro da Fonseca

Dados técnicos: Michele Boldrin e David K. Levine. Against Intellectual Monopoly. Cambridge University Press, 2008, 298 pp.

Idéias têm dono? Pela lei vigente, sim. Patentes e copyrights são concedidos para incentivar a inovação. Inovar é muito custoso; imitar é mais barato. Na ausência de propriedade intelectual, ninguém arcaria com os custos de inovar, pois todos prefeririam os benefícios de imitar. Ao proteger inventores e autores, as leis incentivam a inovação e trazem benefícios sociais, não é mesmo?

Não. Este excelente livro vem para derrubar o senso comum sobre propriedade intelectual. Armado de teoria econômica e pesquisa empírica, deve agradar a todos que se interessam pelo tema. Sua conclusão é radical: patentes e copyrights devem ser abolidos. Não que a teoria do primeiro parágrafo esteja errada: em tese até faz sentido. Mas a realidade é outra.

James Watt, em meados do século XVIII, fez inovações na máquina a vapor. A partir daí, a revolução industrial decolou, certo? Errado. O inventor escocês passou os anos seguintes em litígios contra quem violasse sua patente, impedindo que novos modelos, mais eficientes, fossem introduzidos no mercado. Inovações só vieram na década seguinte, quando a patente expirou. Hoje, corporações como a Microsoft fazem o mesmo. A diferença é que, agora, as patentes duram quase um século. Ciosas de proteger seus produtos, as grandes empresas se esquecem de que também utilizaram criações alheias. O que seria da Microsoft se não tivesse copiado o sistema operacional da Apple, quando a propriedade intelectual ainda não se aplicava à informática? E como explicar o sucesso comercial de programas open source?

O livro traz dados e números em abundância. O setor agrícola, por exemplo, não ficou mais inovador com as patentes biológicas (sim, é possível patentear DNA). O mesmo vale para as indústrias farmacêutica (que tem todo um capítulo dedicado a si), química, fonográfica, ao mercado editorial etc. As leis de propriedade intelectual não param de crescer. Tudo pode ser patenteado: de métodos de cozinha a fórmulas matemáticas. A Amazon.com é dona de “comprar um produto com apenas um clique”; sobram exemplos humorísticos (e reais) no livro. Há firmas cujo único fim é patentear o que ainda não existe. Grandes empresas, cientes de que o modelo legal atual é inviável (pois sempre se infringirá alguma patente), criam pools de patentes comuns para uso livre entre si. Muito bom para elas, mas ruim para empresas menores e iniciantes, que ficam de fora do cartel.

Falta à teoria convencional considerar o outro lado da moeda: patentes aumentam o custo da inovação, pois esta depende de inovações anteriores. Além disso, incentivam o inovador a auferir sossegado seus ganhos de monopólio, sem mais se ajustar às pressões do mercado. Mas o grande feito teórico do livro, para mim, é ressaltar o papel da imitação no mercado. Inovadores são essenciais, pois criam novas maneiras de se atender ao público. E é por meio da imitação que essas inovações são difundidas. O inovador ganha por ser o primeiro a vender a novidade; os imitadores vêm apenas em conseqüência de seu sucesso. Proibir a difusão das invenções por meio da imitação impede que elas sirvam ao maior número de pessoas, e ainda dificulta inovações adicionais.

O livro, como já disse, é excelente. Minha única crítica é à irregularidade do estilo. Ora os autores parecem emular dissertações acadêmicas, com enfadonhas repetições; ora o tom é extremamente informal e mais adequado a um blogue. Isso dá a impressão de que partes isoladas tenham sido juntadas às pressas. Nada, entretanto, que comprometa o valor do conteúdo. Sem dúvida, uma referência imprescindível para esse polêmico debate.

Uma testemunha do horror

por Dionisius Valença

Dados técnicos: Michael Burleigh, Blood & Rage – A Cultural History of Terrorism. Harper, 2008, 592 pp.

Blood & Rage, livro de Michael Burleigh lançado em meados de 2008, recebeu críticas de todos os lados: por ser um livro que não traz nada de novo para o debate sobre o terrorismo; por ignorar as referências (footnotes) ou mesmo os eventos descritos pelo autor; por não abordar os aspectos políticos que permeiam os atos terroristas; por ceder à repetição e à banalidade diante da fama de trabalhos anteriores e supostamente mais “acadêmicos”; e, last not least, por sua vociferações típicas dos comentaristas rightwing.

Ao iniciar o volumoso livro, dividido em oito capítulos que cobrem principalmente as ações terroristas na Europa e nos EUA, – desde os fenianos da Irlanda no século XIX, passando pelos niilistas russos, a Alemanha da década de 60, até chegar ao principal alvo de Burleigh, o terrorismo islâmico – nota-se que as críticas têm fundamento. Fato surpreendente, sobretudo se consideramos os outros livros de Burleigh, que até então eram um exemplo de rigor e insights pessoais. Então, quais seriam os motivos desta “falha” de Burleigh?

Partindo desta pergunta, percebe-se que existe uma força híbrida, uma mente lutando para ser detalhista, seletiva e correta, e outra, desesperada para alertar seus pares de que o terrorismo deve parar de ser aceito, justificado e ignorado enquanto não atinge nossas próprias instituições ou cidadãos.

E essa crítica ao olhar benevolente de grande parte da mídia, de governos, de intelectuais e historiadores para com o terrorismo é constante, e tem como exemplo principal a forma como o governo americano fez vistas grossas aos imigrantes irlandeses que, no século XIX, enviaram dinheiro e fizeram campanha apoiando os terroristas fenianos que atacavam a coroa inglesa, o que, de forma mais atualizada, pode ser personificado nas besteiras antiamericanas que um Noam Chomsky escreve justificando o terrorismo islâmico. Eis o cerne do livro. Suas falhas não surgem de um descuido, da falta de critérios ou auto-indulgência, mas sim de um profundo desespero.

E o desespero nasce no coração do homem, não do historiador. Estamos diante do primeiro livro não-acadêmico de Burleigh, que em entrevista ao jornal The Guardian explica sua corajosa saída da academia (ele deu aulas por mais de duas décadas em Oxford) por não aceitar tornar-se um “criador de clones que preencheriam o aparato institucional”. Portanto, ao lermos o livro, devemos ter em mente que não é o historiador, o acadêmico que nos escreve, mas o indivíduo que, diante de um Ocidente acovardado, mais preocupado com “crises financeiras” do que com a perda de padrões morais ou culturais, encontra-se sozinho a pregar contra os bárbaros. Se um dia acordarmos desse estupor coletivo, talvez encontremo-nos diante de uma vida cheia de sangue e fúria.

Permito-me recomendar o livro de Burleigh para os leitores, não tanto por seus acertos, ou querendo justificar seus erros, mas para que, lendo Blood & Rage, tenhamos uma melhor compreensão do que é ser testemunha do horror, do que é o desespero no coração de um homem.

Dionisius Valença é gestor de empresas.

Razão e ressentimento

por Bruno Garschagen

Dados técnicos: Ruth Scurr. Fatal Purity: Robes-pierre and the French Revolution. Vintage Books, 2007, 388 pp.

Identificar Maximilien de Robespierre como o mais famoso artífice da Revolução Francesa e a própria revolução como o ápice de um evento revolucionário não basta para compreender como um advogado contrário à pena de morte tornou-se o símbolo do terror e da política como instrumento de perfeição da sociedade. Será mesmo verdade que para entender Robespierre deve-se compreender, primeiro, a Revolução Francesa? Não foi a revolução mesma o produto da ação de uma mentalidade revolucionária (Olavo de Carvalho)? Ou o resultado de uma ideologia totalitária alicerçada no ressentimento (Roger Scruton)?

Ruth Scurr, em Fatal Purity: Robespierre and the French Revolution tem a virtude de não ideologizar a reconstrução do personagem histórico, mas sua demasiada preocupação de ser imparcial a conduz, por vezes, a minimizar vícios e superestimar qualidades. Atribuir a Robespierre um poder desmedido depõe contra seu próprio objeto de estudo. O que torna Robespierre uma figura política patologicamente rica é o fato de que mesmo durante o ápice do Terror sua influência no Comitê de Segurança Pública limitava-se a alguns poucos votos. Para conseguir o que desejava tinha que convencer seus pares com um talento retórico lapidado com muito esforço e método. E depois, claro, com ameaças e mortes.

Não há dúvidas de que um dos motores do comportamento de Robespierre era sua paixão pelo purismo, a mesma paixão que o fez defender formas puras de liberdade, igualdade e fraternidade. Mas temos aqui um problema sério e insolúvel: conceitos puros podem ser estudados, não postos em prática. Sua aplicação exige, necessariamente, uma aceitação geral, plena e consensual. Tal condição é impossível. Todas as tentativas de estabelecê-la resultaram em tragédias humanitárias.

A liberdade não pode ser tomada como um fim em si mesma, mas como uma qualidade para alcançar um determinado fim. A consagração da liberdade pela liberdade perverte seu próprio significado e sentido prático porque elimina dela o caráter de responsabilidade que atua como checks and balances do comportamento individual.

Nunca é demais afirmar: uma sociedade é composta por indivíduos, cada qual com seus sonhos, desejos, vontades e paixões. A cada idéia de engenharia social proposta e executada haverá sempre alguém ou um grupo que vai se insurgir contra o projeto. E essa reação só poderá ser controlada ou esmagada com algum tipo de violência, seja o encarceramento ou a morte. E da morte de um para o assassinato de milhares não se trata de um problema ético, mas quantitativo, ou seja, quantas pessoas devem ser executadas para manter a revolução permanente.

Ruth Scurr deve ser celebrada pela escolha que fez: mostrar um homem obsessivo no projeto de construção de uma sociedade ideal e na certeza absoluta de ser um instrumento da Providência para conduzir a França a um futuro perfeito.

Há na obra indicações claras e indícios que permitem analisar a personalidade de Robespierre: a formação educacional religiosa aliada ao impacto pela perda precoce da mãe, a leitura de Émile, de J. J. Rousseau, o ódio contra o status quo representado por uma monarquia que sustentava privilégios à custa da miséria do povo francês, a entrega apaixonada aos ideais.

Como não ter simpatia por um homem que dizia: “Quel est le but où nous tendons? la jouissance paisible de la liberté et de l’égalité; le règne de cette justice éternelle, dont les lois ont été gravées, non sur le marbre ou sur la pierre, mais dans les coeurs de tous les hommes, même dans celui de l’esclave qui les oublie, et du tyran qui les nie” (Prononcé à la Convention le 5 février 1794, de Robespierre). As palavras liberdade e igualdade sempre soam bem a qualquer ouvido, não importa o uso que se faça delas.

No ensaio “The totalitarian temptation” (in A Political Philosophy, London: Contin-uum, 2006, pp. 146-160), Roger Scruton tenta provar que o ressentimento é a fonte única da ideologia totalitária e dos sistemas de governo totalitários, enquadrando como tais o jacobinismo, o marxismo e o nazismo. Scruton esboça seu conceito com base em Nietzsche (sem a idéia da moralidade de escravo): ressentimento é uma emoção que emerge em todas as sociedades como uma ramificação natural da competição por algum tipo de vantagem. Quando os celebrados iluministas pretenderam eliminar Deus do centro do universo intelectual, colocaram em seu lugar o homem e a razão e quiseram divinizá-los. Não se tratava de mera disputa ideológica, mas da tomada de poder e manutenção de símbolos (ver Religiões políticas, de Eric Voegelin e The Stillborn God: Religion, Politics, and the Modern West, de Mark Lilla).

Scruton vai além da análise política para mostrar a influência psicológica na ação revolucionária, embora não tenha o conhecimento e profundidade de Joseph Gabel (ver Utopian and False Consciousness). Como característica da versão patológica do ressentimento identifica a vedação ao direito de defesa. “Exemplary in this respect was the humiliation of Marie Antoinette, Queen of France, who was accused of every crime, including incest, in order to represent her as excluded from the normal fold of humanity. (…) The gap between the accusation and guilty is closed” (in A Political Philosophy, p. 157).

Mas esse exemplo evidencia mais do que uma restrição de direitos; trata-se de uma inversão das relações lógicas entre verdade e mentira, afirmação e negação, moralidade e imoralidade, temporalidade e atemporalidade, sujeito e objeto: o revolucionário atribui suas ações a forças históricas impessoais, a seus adversários ou às suas próprias vítimas. Essa responsabilização vai depender de qual escolha será mais benéfica para a causa.

É também nesse ponto que julgo a tese de Scruton incompleta por identificar apenas uma parte característica do revolucionário. A construção teórica mais abrangente que estudei até agora sobre o fenômeno foi elaborada por Olavo de Carvalho, que o sistematizou a partir dos conceitos de mente e mentalidade revolucionária.

A mente revolucionária é, segundo o filósofo, um fenômeno político, espiritual e psicológico que se manifesta nos autoproclamados conhecedores dos caminhos sociais, culturais, políticos e históricos que devem ser explorados e percorridos para se atingir o estado de perfeição. E a mentalidade revolucionária é o estado de espírito, permanente ou transitório, no qual um indivíduo ou grupo se crê habilitado a remodelar a natureza humana e, por conseqüência, o conjunto da sociedade, por meio da ação política. O revolucionário é, portanto, aquele que garante conhecer o caminho para construção do homem e da sociedade perfeita e brada ser o único capaz de conduzi-los na estrada para a perfeição. Robespierre, assim, pode ser explicado na sua dimensão espiritual, psicológica e política.

O espaço é curto para uma discussão dessa envergadura, mas tanto Fatal Purity como as teses de Scruton e Carvalho são de fundamental importância para salvaguardar a sociedade dessa política de fé (ver The Politics of Faith and the Politics of Scepticism, de Michael Oakeshott) instrumentalizada ou não pela violência e pelo terror. Porque essas idéias antigas (ver Fire in the Minds of Men, de James Billington, e The Pursuit of the Millennium: Revolutionary Millenarians and Mystical Anarchists of the Middle Ages, de Norman Cohn) de tempos em tempos ganham nova maquiagem e intelectuais dispostos a usá-las de forma eficiente. Que um intelectual pernicioso e vulgar como Slavoj Žižek se transforme num pop star das idéias em pleno século 21 ao defender a violência e o terror da Revolução Francesa como método de ação política é algo tão tenebroso quanto aquele professor que no silêncio da lousa doutrina as crianças brasileiras sem sequer desconfiar do seu papel como instrumento de uma causa.

Se a liberdade e a força nasceram do seio da Divindade, como queria Robespierre, é preciso secar o leite que as alimenta, envenena o indivíduo e corrompe a sociedade.

Bruno Garschagen é jornalista, mestrando em Ciências Políticas pela Universidade Católica de Lisboa e gerente de relações ibero-americanas do Ordem Livre.Org.

Estupidez erudita

por José Nivaldo Cordeiro

Dados técnicos: John Gray. Missa Negra – Religião Apocalíptica e o Fim das Utopias. Tradução de Clóvis Marques. Editora Record, 2007, 350 pp.

Classificado por muitos como um dos maiores cientistas políticos vivos e a cabeça pensante que norteia os mandatários britânicos das últimas décadas, John Gray foi professor de Pensamento Europeu na London School of Economics e colunista do jornal britânico The Guardian, com vasta obra publicada, parte dela já traduzida para o português, com destaque para o aclamado Cachorros de palha. Gray é um pessimista ateu, que acredita que a humanidade não ocupa lugar de destaque no universo. Essa crença deriva da sua hostilidade ao cristianismo e vai fundamentar toda a sua análise política.

Não obstante, o seu mais recente livro publicado no Brasil, Missa negra, tem muitos méritos ao levantar questões cruciais e pertinentes, sem as quais não compreenderemos os tempos atuais, principalmente os fatos políticos de bastidores dos EUA e da Inglaterra até a segunda guerra do Iraque, tão bem descritos no livro.

Missa negra começa com a seguinte frase: “A política moderna é um capítulo da história da religião”. Como sublinhei acima, a palavra religião não é lisonjeira nos seus escritos. Seu grande mérito consiste em notar que a política contemporânea de massas adquiriu essa faceta de substituta das religiões tradicionais.

Ele continua: “A história do cristianismo é uma série de tentativas de chegar a bom termo com essa (a de Cristo) experiência fundadora de decepção escatológica” (o anúncio do novo reino iminente). Aqui está a sua “acusação” principal e uma incompreensão aguda do que seja o cristianismo.  O autor nota que o discurso político contemporâneo consiste na promessa de salvar a humanidade por meio da política, de fazer cumprir a promessa escatológica aqui e agora. Consiste em assumir que certas formas institucionalizadas das democracias liberais compartem a crença de um suposto Fim da História, a tese de Francis Fukuyama que Gray repudia fortemente.

A essência do seu pensamento deságua no relativismo político e cultural, denominado erroneamente de realismo. Esse engano deriva de uma grande lacuna teórica, uma vez que Gray não tem instrumentos para compreender o caráter gnóstico salvacionista dos movimentos políticos modernos, fatos por ele mesmo apontados, mas insuficientemente analisados.  Sua lacuna teórica deve-se à superficial apreciação que faz da obra de Eric Voegelin, que mereceu no livro apenas uma única citação. Como se sabe, Voegelin não apenas investigou à exaustão o fenômeno da gnose salvífica na política, como também deu a ele a resposta teórica adequada. O que sobra no filósofo de Colônia falta em Gray, embora este autor nunca perca de vista o paralelo entre o movimento político e o fato religioso.

Os surtos de matança citados no livro nos ligam diretamente à definição do mal e do que seja o homem. O problema do quiliasmo (ou milenarismo, termo pelo qual o fenômeno é mais conhecido) é conseqüência da deformação da mensagem revelada: o cristianismo jamais pregou que a perfeição coletiva e mesmo individual aconteça neste mundo, ficando esta perfeição como meta para o Além. Os milenaristas querem a perfeição imediata usando a engenharia social. Já o cristianismo tradicional incita a cidade dos homens a tentar imitar a cidade de Deus. Os gnósticos é que procurarão a perfectibilidade do homem e a salvação aqui e agora pelos instrumentos do Estado, algo inviável e sacrílego. Ao falar em “missa negra” o autor acabou acertando no título, mas não teve como alargar a sua compreensão dos fatos políticos por não compreender que a perversão do cristianismo só existe porque existe também a sua versão integral, correta.

Seu erro consiste em se apoiar teoricamente em dois autores equivocados para sustentar o que ele mesmo chama de realismo político: Maquiavel e Keynes. Ora, o descenso moral da obra do primeiro nada tem de realista enquanto tal. Maquiavel não apenas representa a degeneração moral manifesta no sonho moderno de aperfeiçoar o mundo pela conquista do poder político, sendo ele mesmo o inspirador do quiliasmo de todos os revolucionários. A obra de Maquiavel pressupõe um elemento metafísico que, à falta de melhor termo, chamou de Fortuna (alusiva à Roda da Fortuna, do Tarô), algo que Gray, materialista, desconsidera.

O segundo autor, Keynes, que ele contrapõe a Hayek em economia, realizou a mesma tarefa que Maquiavel na ciência econômica, ao colocar o Estado como o centro aperfeiçoador da sociedade e instância eliminadora das crises econômicas cíclicas. O século XX foi o século de Keynes. A gravidade da atual crise econômica é resultado do triunfo de suas teorias, que fizeram os governantes abandonarem precisamente o real, o mundo como ele é, pondo em troca o voluntarismo estatal.

Se é óbvio que o quiliasmo à esquerda é mais notório e inegável, não é tão óbvio que o mesmo fenômeno se passa à direita do espectro político. Isso porque a chamada direita tem ainda no seu ideal de ação restos da tradição, que lhe impõem travas morais no exercício do poder. Mas Gray quer nos convencer que os supostos crimes de Bush, Thatcher e  Blair têm parentesco com os crimes passados dos coletivistas no poder, em especial daqueles da primeira metade do século. Isso é uma evidente má fé intelectual.

Gray ataca a ação no Iraque e todas as medidas preventivas tomadas contra o terrorismo internacional. Seu argumento é que a intervenção no Iraque tinha como pano de fundo messiânico implantar a democracia naquele país. Gray defende o relativismo cultural e político – chamando a isso de realismo –  e no texto fica implícito que a manutenção de Saddam no poder, bem como tolerar a tirania nos países não ocidentais, seria ato desse realismo político. Ora, aceitar esse relativismo é um engano brutal. A guerra no Iraque era necessária inclusive como forma de dissuasão dos Estados delinqüentes que apoiavam ostensivamente o terrorismo. A superioridade das instituições e dos valores ocidentais não pode ser contestada. O exemplo do Japão no Pós-guerra é o mais paradigmático do fato de que essas instituições podem ser adaptadas em qualquer parte.

E continua: “Em sua militante fé no progresso, a direita aceitou uma corrente radical do pensamento iluminista que renovava, sob novas formas, alguns dos mitos centrais do cristianismo”. Direita e cristianismo tornam-se assim sinônimos. Todavia, o pensador inglês não distingue o cristianismo reformado (iluminista) que comanda os EUA e a Inglaterra da Tradição ocidental. Por isso pôde dizer, de forma sofisticada, que os governos de direita tornaram-se algo menos secular, como se nos EUA de Bush tivéssemos um núcleo clerical.

Boa parte do livro discorre sobre os fundamentos teóricos da política dos governantes da direita, como Reagan, Bush, Margaret Thatcher e Tony Blair.  Seu primeiro grande erro foi não diferenciar o discurso desses governantes de sua ação política. Na prática, esses governantes foram keynesianos em economia e maquiavélicos na ação de política externa, praticando exatamente aquilo que Gray recomenda: uma suposta política realista.

Também usa da má fé quando analisa a obra de Leo Strauss, a quem contesta duramente, como o faz a Hayek, ao tentar provar que o neoliberalismo é uma utopia do livre mercado. Ignora que o mercado é uma realidade dada, e não uma ideologia. A esses autores ele associa todos os equívocos dos governantes, impingindo-lhes o mesmo caráter messiânico óbvio nos coletivismos escancarados, como o comunismo e o nazismo. E aqui temos o segundo erro do autor: não perceber a estrutura social do Ocidente como ela está construída, como uma ordem coletivista, mercantilista, socialista, edificada sob a efígie das idéias de Rousseau.

Mas sua crítica a Strauss acerta em alguns pontos. Ele mostra o essencial do autor alemão: o resgate do direito natural clássico, a idéia de que a razão não é senhora e nem fundamento da moral, que a revelação é condição principal para se perceber o real. Quando insinua que Strauss não escreveu tudo o que pensava tem certa dose de razão. Strauss percebeu o mesmo que Ortega y Gasset, a insustentabilidade da democracia representativa nos termos em que está construída. Ela patrocina a rebelião das massas e suas conseqüências a longo prazo  são o socialismo totalitário e o niilismo existencial.

O auto denominado realista John Gray se revela inteiro no final como o progressista que é. Defende que o grande perigo para a humanidade é o famigerado aquecimento global e que os governos deveriam aderir ao Protocolo de Kyoto. Na prática, está advogando pelo governo mundial, contrariando sua apaixonada defesa da autodeterminação das tiranias não ocidentais. Ou será que sua idéia de governo mundial só terá jurisdição sobre o Ocidente? Ora, a grande verdade que foi desvelada nos últimos meses é que a humanidade não corre risco algum com as naturais flutuações climáticas. Nem sequer corre riscos com uma ou outra incursão guerreira de suas potências dominantes, sejam estas da Rússia, da China ou dos EUA. Falando em linguagem crua, pouca diferença faz que aconteça uma pequena guerra na Geórgia, no Tibete ou no Iraque. O grande perigo está no uso do Estado como instrumento para a impossível eliminação do risco existencial. A crise está aí para nos ensinar essa dura lição.

José Nivaldo Cordeiro é economista e mestre em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas.

2 comentários em “Livros

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