A poesia de Gerardo Mello Mourão

por Odorico Leal

Como um topos recorrente ao longo da história da poesia, o poeta confunde-se com a figura do visionário. O que o poeta vê, contudo, não é, por vezes, o futuro revelado, mas o passado, nascedouro do mito. O mito é a mais antiga memória dos homens, e o poeta é aquele que o relembra, criando-o. Como Homero, que cria um passado para a Grécia, em Aquiles, o valente, e Ulisses, o astuto; como Virgílio o faz por Roma, com a viagem de Enéas. A poesia esteve, assim, sempre ao lado do mito, como o corpo em que o mito encarna. É por ser ela criadora de mitos que Shelley acreditava que os poetas são os legisladores não-reconhecidos do mundo, e é porque o mito, desde os primórdios da humanidade, é aquilo que estrutura nossa apreensão da realidade, protegendo-nos da gloriosa indiferença da Natureza com a apaixonada cólera dos Deuses, que Pessoa considerava-lhe o nada que é tudo.

Embora desde Baudelaire as altas aspirações românticas acerca do poder legislativo da poesia tenham sido sucessivamente destronadas, os poetas, entre os escombros do velho mundo, continuaram e continuam a buscar a visão do passado, o mito que se imiscuirá no presente e que lhe sustentará, porque é da sua natureza confrontar-se com a história. À luz da sensibilidade historicista da modernidade, essa relação entre mito e história é reforçada e problematizada seguidas vezes por seus poetas. A estratégia visionária de Baudelaire passa por enxergar a realidade nestes dois níveis, do mito e da história. É esse conflito que carrega de dolorosa paixão sua visão de Paris, em que o cisne machuca-se no concreto, quando dessa dor nasce a beleza torturada da imagem poética.

No contexto da modernidade, ainda, o mito, para escapar ao desaparecimento na história, explora sua própria inadaptabilidade, penetrando a história. Torna-se presente, por vezes, enquanto fantasmagoria, como em Baudelaire e em The Waste Land, de T.S. Eliot; por outras, preserva seu caráter elucidativo do duplo processo de apreensão e criação da realidade, como nos anjos terríveis de Rilke ou no anjo da realidade de Stevens. Em Mensagem, por sua vez, Pessoa devolve ao mito sua substância épica, estilhaçada, contudo, em fragmentos líricos e monólogos dramáticos.

Na história da poesia brasileira, entre os poetas que mais comprometidamente atentaram para a atividade poética enquanto criação de mitos, destaca-se o cearense Gerardo Mello Mourão.

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