Editorial

Todo esforço artístico é um esforço para se ser sincero. Não há guia melhor do que a determinacão de se dizer a verdade que se sente (Kipling)

Hora de fazer denúncias! Pois também nós queremos praticar esse esporte predileto da imprensa nacional. Das duas uma: ou plantaram uma escuta nas reuniões de nossos editores ou eles a plantaram em reuniões alheias. Porque bastou agendarmos no semestre passado uma entrevista com o poeta Ferreira Gullar e logo lhe conferiram o prêmio Camões, e foi só marcarmos uma outra com Mario Vargas Llosa e três meses depois era laureado com o Nobel. Deixando de lado, por razões óbvias, a primeira suspeita, fica a segunda. Mas nesse caso, se o leitor não quiser confiar em nossa honestidade, creia ao menos em nossa invencível imbecilidade tecnológica – não fosse a paciência de nosso diagramador, você estaria lendo páginas mimeografadas.

Brincadeiras à parte, resta o enigma: quem está pondo a Dicta no caminho certo? Pois a dupla coincidência nos obriga constatar o fato. Não veja nisso falsa imodéstia. Não nos cremos no direito de atribuí-lo a nós mais do que o zelador de um museu o tem de atribuir a si os quadros em exposição. A pergunta, afinal, era retórica e a reposta está na ponta da língua: nossos colaboradores. Mas assim como o bom zelador pode se orgulhar de manter os corredores desimpedidos e as vidraças transparentes para que a luz preencha as salas, nós nos orgulhamos de abrir para o leitor brasileiro esse espaço de encontro com alguns dos escritores mais prestigiados das letras mundiais, lado a lado com penas promissoras das nossas novas gerações. Nós oferecemos a sala, eles a preenchem com palavras e idéias. Damos o veículo, eles nos conduzem.

E ninguém colaborou mais para essa edição do que Mario Vargas Llosa. Em visita ao Brasil, o peruano nos legou uma entrevista e uma preciosa conferência, publicada aqui e proferida em Porto Alegre ao auditório do Fronteiras do Pensamento – a cujos organizadores agradecemos duplamente, enquanto público brasileiro e enquanto editores. E já que estamos em agradecimentos, fica aqui o nosso para Vargas Llosa. E desta vez triplo. Primeiro, claro, por sua obra, justamente reconhecida. Depois, pela oportunidade de publicar um registro de sua passagem pelo Brasil que, se não é o melhor – isso fica à decisão do leitor –, é certamente o mais íntimo. Novamente, nada de imodéstia. É sempre a constatação de um fato, ao qual caberia agradecer talvez ao velho Acaso, que (não sem o empurrãozinho de um bom maquiavelismo jornalístico) orquestrou para que durante todo o tempo em que Vargas Llosa esteve no país – em meio a comitivas e coletivas de imprensa, sempre cercado por pelo menos duas, três ou até mil e duzentas pessoas, como em sua palestra – os únicos momentos em que tenha ficado a sós com uma só pessoa tenham sido na poltrona do avião, and lo!, frente a frente (ou, no caso, lado a lado) com nosso correspondente aéreo Martim Vasques da Cunha. Don Mario conduziu a conversa com uma elegância sem par. E, talvez pelo fato de tê-la levado em pleno ar, há entre suas mais sérias considerações sobre a vida cultural e as considerações menos sérias (ou deveríamos dizer mais sérias ainda?) sobre a sua vida pessoal uma oscilação tão incomum, que faz desta entrevista uma das mais pitorescas já publicadas na Dicta.

Acima de tudo, porém, agradecemos-lhe por nos confirmar com suas palavras o bom caminho percorrido até aqui e também por apontar a direção a seguir. Pois não hesitamos em dizer que seu Breve discurso sobre a cultura poderia servir como a nossa breve carta de intenções. Seguindo o arcano conselho, “médico, cura-te a ti mesmo”, Vargas Llosa enfrentou com vigor e precisão a tarefa de diagnosticar patologias e neuroses que, com toda a atrofia moral e tumulto das idéias que desencadeiam, há tempos oprimem a cultura contemporânea, a qual dá sinais graves de crise de identidade em meio à “confusão de um mundo em que paradoxalmente, como já não há maneira de saber que coisa é cultura, tudo o é e nada o é”.

Mas afinal, o que ela é? “A cultura é, ou era quando existia, um denominador comum. Algo que mantinha viva a comunicação entre pessoas muito diferentes, mesmo quando o avanço dos conhecimentos obrigava a especializar-se, isto é, a ir-se distanciando e incomunicando entre si. Era igualmente uma bússola, um guia que permitia aos seres humanos orientar-se no espesso emaranhado dos conhecimentos sem perder a direção, e tendo mais ou menos claro na sua incessante trajetória as prioridades, o que é importante e o que não é, o caminho principal e os desvios inúteis”.

Há várias implicações aqui. Uma delas é que há um caminho a seguir. Quando nós do IFE pusemos os pés nesse caminho, não sabíamos bem, como não sabemos agora, onde exatamente ele iria dar – assim é toda aventura. Mas sabíamos que se fosse bom, acabaríamos por nos reunir a outros viajantes. E eis aqui outra implicação: a cultura é, por definição, um empreendimento comum. Conceda-se, como quer uma certa tendência dominante, que cada um tem o direito de olhar as coisas segundo o seu “ponto de vista”. Direito tem, mas tem também o dever de visar uma obra comum, do contrário olha só para o seu próprio umbigo; e se é esse o caso, que fique com o seu direito e faça bom proveito, mas não nos venha exigir que tratemos com respeito aquilo que não o merece; não nos obrigue a dar valor àquilo que não tem; e não nos acuse de discriminar àqueles que se discriminam a si mesmos promovendo o individualismo egoísta sob a falsa capa da “pluralidade”, a covardia e a indiferença com o nome de “tolerância”, a libertinagem, a frivolidade, a arbitrariedade como “liberdade”. Pois acaso não será preciso buscar acima ou ao fundo de toda pluralidade a universalidade? E não haverá no mundo coisas que são intoleráveis? E tão importante, se não mais, que a liberdade não é o compromisso e o espírito de serviço? “Viver à vontade é coisa de plebeu”, bem lembrava Goethe, “o nobre aspira à ordem e à lei”. Noblesse oblige. Quem, sob o pretexto de defender as diferenças culturais, nega o que é comum e universal na cultura, oblitera ipso facto toda comunicação possível e revela-se assim o seu maior inimigo.

Um sujeito, por exemplo, que intitula sua filosofia, e, logo, sua visão de mundo e sua atitude perante ele, de desconstrutivismo diz logo a que veio. Você deixaria um “desconstrutivista” sozinho em sua casa? Nossas escolas e universidades os deixam nas salas de aula. A precisão de Vargas Llosa é realmente cirúrgica: “Em todas as vezes que enfrentei a prosa obscurantista e as asfixiantes análises de Jacques Derrida tive a sensação de perder miseravelmente o tempo… Porque, se a literatura é o que ele supõe – uma sucessão ou um arquipélago de textos autônomos, impermeabilizados, sem contato possível com a realidade exterior e, portanto, imunes a toda a valoração e a toda a inter-relação com o desenvolvimento da sociedade –, qual é a razão para desconstruí-los?” De nossa parte, não temos a pretensão de desconstruir a sua própria obra. Acreditamos que aquilo que um homem construiu, para o bem ou para o mal, está construído. E ao longo de nosso caminho, tudo o que podemos fazer é ou entrar nestas construções ou simplesmente contorná-las e dar-lhes às costas. Ou então uma coisa mais divertida: virá-las de cabeça para baixo! O leitor pode fazê-lo: vire do avesso tudo isso que Derrida supõe sobre a literatura, inverta cada termo, e terá aquilo que nós supomos. E já que o nome do jogo é prolixidade e negação, podemos dizer que todas as suas suposições serviriam formidavelmente como nossa breve carta de “desintenções”.

Não estamos sozinhos. É conhecida a máxima de Derrida, “não há o exterior do texto”, mas o filósofo Olavo de Carvalho é taxativo, “se queremos o significado exato do texto, temos de ir muito além dele”; Hyppolite Taine endossaria certamente a tese contrária: só há o exterior do texto. Pois o texto em si não passa de um sinal de algo que vem de fora e um meio para indicar algo que está fora. Não surpreende que para Taine o sentido da leitura fosse ponto por ponto oposto ao de Derrida, ou seja, buscar o tempo todo num texto ou documento histórico aquilo que está além dele. Pois este “não é senão uma casca fóssil… Por que estudais a casca senão para vos figurar o animal? Do mesmo modo, não estudais o documento senão para conhecer o homem; a casca e o documento são fragmentos mortos, e não valem senão como indícios do ser inteiro e vivo. Engana-se quem estuda o documento como uma peça isolada. É tratar as coisas como simples erudito, e cair em uma ilusão de biblioteca… Nada existe senão pelo indivíduo; é o indivíduo que é preciso conhecer”. Daí que para ele o trabalho do leitor consiste fundamentalmente em “se pôr no lugar dos homens que se pretende julgar, entrar em seus instintos e hábitos, compartilhar seus sentimentos, repensar seus pensamentos, reproduzir em si mesmo seu estado interior”.

Muito mais do que ler o texto, trata-se de calar-se e ouvir a voz do autor, o homem por trás dele. Tarefa certamente mais gratificante, porém mais árdua, pois o texto pode sempre ser manipulado, já o homem precisa ser buscado e sua companhia, merecida. Mas diante do homem vivo, corre-se sempre o risco de ouvir o que não se quer. Mais fácil é desmontar o texto em subtextos, metatextos, contextos, e reconstruí-lo à sua imagem e semelhança; e é conseqüente que quem faz isso acabe sempre encontrando pretextos para calar a boca do autor e falar de si mesmo. Se o caso é grave, já não basta recuperar um clássico, será necessário mesmo resgatá-lo, pois quando um crítico desmembra as Memórias póstumas de Brás Cubas para remontá-las como um panfleto marxista avant la lettre, o crime é de lesa-majestade e o caso é de polícia: é o que Eduardo Wolf chama o “seqüestro” de Machado de Assis. Aí é preciso, se não reconstruir a obra – como se ela precisasse disso –, ao menos demolir as paredes do seu cárcere.

Querem, enfim, o testemunho de um artista? Bráulio Mantovani, roteirista de Tropa de Elite, diz com todas as letras, talvez para a surpresa de muitos de seus colegas, que o escritor tem “apenas uma responsabilidade: dizer a verdade”. Ora, a verdade, evidentemente, nunca está encerrada no texto, mas quando muito é transmitida através dele, pois ela está no escritor que a exprime e em nós que a vemos. Obrigado pela clareza Bráulio.

O que nos traz a uma outra questão, que na verdade é só a contra-face da mesma. Na Dicta temos um critério e queremos ser cobrados por ele: preferimos ouvir mil vezes “não concordo” do que uma só “não entendi”. Vargas Llosa nota como na filosofia pós-moderna a incomunicabilidade parece ser a primeira virtude. Contra ela, subscreve a máxima de Ortega y Gasset: “La claridad es la cortesia del filosofo. Para o intelectual de ofício, mais até do que cortesia, a clareza é um dever, e para o escritor comprometido com sua arte, questão de sobrevivência. “Busco contar com verdade e clareza o que se passa em meu coração”, dizia Stendhal; “Não conheço senão uma regra: ser claro. Se não sou claro, todo o meu mundo se acaba”.

Se você publica suas palavras num livro, revista, jornal ou mesmo no mais modesto blog, pede a nossa atenção e vai tê-la. Mas diga-nos o que quer com clareza ou cale-se para sempre… ou ao menos até saber o que realmente quer. Pois é essa em geral a causa da falta de clareza: a incerteza. Indefinição gera indefinição. Emerson dizia: “fale o que você pensa agora com palavras firmes e amanhã fale o que o amanhã pensa com palavras firmes de novo, ainda que contradiga tudo o que disse hoje”. “– Ah, mas então pensarão que sou inconsistente”. E que lhe importa? Você é mesmo. Estamos todos em busca de alguma solidez, somos todos inconsistentes. Mas a verdade nunca é. Importe-se com ela e ela forjará a sua mente. E deixe que nós leitores decidamos quais palavras são firmes e quais não são. As que não forem o próprio tempo varrerá e você mesmo poderá distinguir o que é ouro do que é lixo.

A sinceridade é a lei. “Em todo discurso sincero há força, não necessariamente uma grande força, mas tanta quanta aquele que fala é capaz. Fale por si mesmo a partir de si mesmo ou fique em silêncio. Não pode haver nenhum valor em que você nos conte com seus modos ‘sofisticados’ e languidos o que outro já disse com a energia dinâmica da convicção. Se você é capaz de nos dizer algo que seus próprios olhos viram, que sua própria mente pensou, você terá força sobre nós, toda a verdadeira força que é possível para você” (George H. Lewes). Goethe não admirava a si mesmo por sua erudição ou seus vôos excêntricos, mas por saber escrever bem em alemão. E ensinou – e ensina – toda uma nação a fazê-lo, através de uma disciplina diária de auto-transparência, um banho cotidiano da mente: “Devemos nos esforçar para usar as palavras que correspondam o mais proximamente possível àquilo que nós sentimos, vemos, pensamos, imaginamos, experimentamos e raciocinamos. É um esforço que não podemos negligenciar e devemos renovar diariamente”.

A arte de escrever é poderosa. Com um movimento de seu dedo Napoleão movia todo um destacamento – hoje não move mais. Já com um movimento de sua pena, Platão ou Shakespeare vêm movendo exércitos de homens pelos séculos afora – e quiçá os moverão até o último. Mas não tente nos mover com seu estilo sofisticado, com sua bela fraseologia. As coisas não querem seus adornos e adjetivos, só ser manifestadas como são. Mostre-nos algo belo e seguiremos na sua direção.

Toma nota: a verdade ensina a escrever; purifica e fortalece o estilo. E o estilo, diz o provérbio, o estilo é o homem.

E já é hora de encerrarmos, pois o leitor tem uma revista para ler e nós uma nova para preparar. É tempo de seguir viagem. Agradecemos aos nossos patrocinadores pelo combustível necessário e sugerimos ao leitor que ao longo do caminho não deixe de dirigir seu ponto de vista às ilustrações de Eduardo Valente. O traço é jovem, mas a promessa é grande.

Expusemos nossas intenções e nossos critérios. Estamos prontos a nos unir a quem partilhe das primeiras, a sermos julgados pelos segundos e criticados por ambos. Quem quiser pode fazê-lo, é nosso convidado. Mas com clareza, por cortesia.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>