Elogio da paranóia

Confesso que tenho um pendor para conspirações. Tenho uma vontade absolutamente incontrolável de ver conexões em tudo e em qualquer lugar, de perceber as coisas a caminhar para o “fim dos tempos”, como um velho puritano inglês do século XVII, pronto para abraçar o Apocalipse. Talvez seja o gnóstico em mim. Não sei. O que sei, de fato, que se não há conspirações, a impressão que tenho é que o mundo está saindo do meu controle.

A pergunta que faço é: será que o mundo deveria estar sob o meu controle? É claro que não – mas isso é o que é divertido em ser um paranóico em potencial. A tensão entre saber e não saber; entre ignorância e conhecimento; entre acaso e necessidade; enfim, entre a vida e a morte.

A paranóia é mais que um modo de vida; é, sobretudo, uma ramificação subterrânea da cultura ocidental, pelo menos segundo este ensaio de Frank Furedi, The Politics of Hidden Agenda. Alguns trechos para a cabeça fundida de todos nós (alguém quer fazer uma conexão aí?):

A conspiracy theory provides a view of the world that both explains the background to events and, more importantly, provides a warning for the future. Its focus is not merely on behind-the-scenes machinations and plots against groups and individuals; instead it offers a comprehensive perspective that purports to reveal the real workings of the world we live in. The main theme of the conspiracy theory is the heinous act of moral subversion, allegedly carried out by a cabal of powerful people. In order to shed light on the importance of some global conspiracy, conspiracy theorists use the ideology of evil. This ideology offers a view of the world where unexpected occurrences and acts of misfortune are re-presented as the product of malevolent forces. In providing a comprehensive account of the threats that face a community, this ideology of evil seeks to give meaning to an otherwise incomprehensible world. Historically, the concept of evil has helped to explain why bad things happened; it provided an answer to society’s need to understand the cause of misfortune and it provided guidance on who should bear the blame for such misfortune.

(O raciocínio, sem dúvida, é ousado e adoraria concordar com o autor se ele não insistisse em usar o termo “ideologia do mal” para algo que, como todos sabem, não possui nenhuma ideologia, apenas a pura força da destruição)

Today, conspiracy theories that insist the world is ruled by a secret cabal, such as the Bilderberg Group, continue to flourish. The idea that there is a New World Order run by a coterie of evil conspirators is most influential in the United States. However, these current conspiracy theories tend to have only a minimal influence over society.

(Ah, é? Então não existe Nova Ordem Mundial? E o que faz o sr. Maurice Strong no palco deste mundo?)

Contudo, toda vez que leio sobre eventos estranhos que me fazem ter a sensação (porque, afinal de contas, neste mundo pós-moderno, o que conta é a sensação, o sentimento de que a verdade está lá fora, não é mesmo?), sempre me lembro do seguinte trecho de uma palestra de Eric Voegelin, em que o bom e velho filósofo de Colônia dá a sua alfineta nesta “perigosa deformação na percepção do mundo”:

A alienação e a paranóia não são apenas problemas individuais, mas eles dominam a cena contemporânea na forma de várias ideologias, que sempre tentam perseguir alguém, ou sentem-se perseguidas por alguém, ou ambos os casos. E foi nesta ocasião que eu me deparei com o problema da paranóia no sentido teorético, o que não havia ficado claro para mim antes, porque a paranóia é geralmente tratada pelos psicopatologistas. Mas isto não é um problema, uma vez que se você tem várias pessoas em um estado paranóico (em termos práticos), isto é mais do que o caso de um paciente com uma psicopatalogista. Há alguma estrutura fundamental da consciência envolvida nesta situação.

E a estrutura fundamental envolvida – eu fui guiado por Thomas Pynchon nisso – está associada ao problema geral das ideologias como concepções de ordem na história, nas quais você deve inserir uma determinada natureza. Agora, de onde vêm estas idéias como uma ordem da história – com um rumo determinado, indo para um fim preciso -, senão de certos contextos filosóficos e cristãos, em que um criador que faz um mundo e está a par do que este mundo está fazendo? Ele tem Providência, ele tem a pronoia. (Geralmente eu lido com este problema chamado-o de pronoia, logo o seu contrário é a paranoia). E se você tem a concepção da pronoia e esta concepção é pervertida no sentido em que é imaginada como um conhecimento humano das coisas, e não como um conhecimento divino (como foi analisado por Boécio no último livro de “As Consolações da Filosofia”), você tem a alienação de um estado imanente. Você ainda acredita na pronoia, na providência, apenas para admitir que a providência é suprida pelos seres humanos; e, se for necessário, para defender-se contra a pronoia dos seres humanos, você tem de criar um contra-ataque, e criar a sua própria pronoia em oposição à das pessoas que estão, aparentemente, te perseguindo.

Então eu diria que há um íntima conexão entre as experiências da providência pervertida e as concepções de ser perseguido por alguém, seja lá quem for: os burgueses para um Marxista; os comunistas para um burguês; ou a CIA ou as companhias de petróleo para um esquerdista; e por aí vai – todas essas concepções de perseguição são perversões do conceito de pronoia, produzindo então uma reação paranóica. E estas reações paranóicas são, em “Gravity´s Rainbow”, de Pynchon, narradas de forma detalhada. Pode-se dizer que não se deixou nada de fora em suas descrições.

E é um insight. Não é apenas uma interpretação de um romance de Pynchon, mas ele sabe disso: ele fala daquelas pessoas que estão num estado de paranóia como se fossem “vítimas de um vácuo” – sendo este vácuo o vazio espiritual e intelectual, a perda de tensão em direção ao Além. E esta perda de tensão nos leva ao seguinte problema: como ninguém pode viver em um vácuo, ele deve ser preenchido com alguma espécie de realidade; e se não é a verdadeira realidade, você tem as segundas realidades. O termo “Segunda Realidade” não é uma invenção minha, mas foi desenvolvido pelos grandes romancistas do século XX como Heimito von Doderer em seu “Os Demônios” e Robert Musil em “O Homem Sem Qualidades”. Assim, a Segunda Realidade é a realidade substituída pela qual você imagina se a verdadeira realidade está em um estado de alienação. Agora, o que está por trás de todo este estado de alienação? O que está por trás, é claro, é um ser extirpado de um contexto em que a vida tem um sentido.

Bem, se tudo isso é esta confusão mesmo, talvez o negócio seja apelar mesmo para os santos, os mártires e Charles Fort.

2 comentários em “Elogio da paranóia

  1. A salvação será sempre um jogo aberto. Não há segurança alguma, ou só há se houver sempre a possibilidade da metanoia nossa de cada dia. Li em algum lugar que a melhor tradução para as últimas palavras de Cristo na Cruz não seria “tudo está consumado” mas sim “eis o tempo propício”. Não sei koiné, então não sei se é verdade. Mas, para todos os efeitos, todo momento daquele tempo em diante é propício.

  2. Excelente o excerto do Voegelin. Paranoia como pronoia pervertida; faz sentido neste tempo sem qualidades. 2) E o primeiro comentário me parece válido independentemente das nuances de Jo 19, 30, que também gostaria de alcançar melhor: http://www.mattjonesblog.com/2008/08/11/some-thoughts-on-john-1930/ 3) Como contraponto a esse “tempo favorável”, lembro de topar com ensaio de um cara dos anos 50/60, chamado Wolfdietrich Rasch, sobre o “Homem sem Qualidades” (HSQ). Aproveito o gancho. Rasch aponta algo que é pivô no romance e é boa chave para sua leitura: a) a desconfiança de Ulrich/Musil de qualquer metafísica histórica, associada b) à admissão de um caminho reto secularmente possível, digamos assim, na tensão entre o dado e o por descobrir, entre a realidade e as possibilidades nela contidas. 4) Associação volátil, sustentada por mística matematizante e secularizada. Por exemplo, no livro I, cap. 32, Ulrich admite um estado (Zustand) outro que seria o da segunda realidade, muito real. Nesse estado o sujeito percebe serem as coisas todas ligadas no amor, pelo amor. À luz desse nexo, desfazem-se fronteiras e distinções humanas e o “com-fazer-se” (mitmachen) da Belle Époque (ou o nosso) mostra-se tão indigno do homem (e é mesmo) que estaria a exigir uma solução planejada (epa). Não como a planejariam, vg, socialistas ainda crentes em mega-projetos de engenharia política; mas como a planejariam arquitetos sociais “espirituais”, capazes de fazer a súmula desejada no leque dos futuríveis e chegar à solução utópica (que por sua vez abriria novo leque, etc). 5) O ponto aí, digo eu, é que essa mística presumidamente amorosa do desfazimento das fronteiras, com todas as ironias embutidas por Musil, lembra muito o registro em que opera o Dr. Fausto do Thomas Mann. Matemática/cientismo e essa mística enevoada (rende trocadilho em inglês) conformam uma estrutura espiritual que (voltando ao Rasch para partir do que ele observa) tem por sinal distintivo uma ojeriza pela história como Caminho de salvação. 6) A ser construída, vá lá, pronoeticamente, menos a partir de croquis e mais como coreografia. “At the still point, there the dance is”: http://www.tristan.icom43.net/quartets/norton.html

Comentários não permitidos.