Liberdade para o bem ou para a burca

O presidente Sarkozy afirmou que a burca “não será bem-vinda no território da República Francesa”. Ao mesmo tempo, uma comissão de legisladores considera proibir seu uso público no país. Essa proibição se insere no modelo francês de secularismo que, para laicizar o Estado, bane a religião do espaço público (vale lembrar da medida de alguns anos atrás que proibiu o uso de símbolos religiosos em escolas, repartições públicas, etc.), e que suscita a questão: até onde deve o governo se intrometer na religiosidade de cada um?

Para começo de conversa, devo dizer que concordo integralmente com as críticas de Sarkozy ao uso da burca. É sim, sem a menor dúvida, algo degradante para a mulher, pois basicamente anula sua participação na vida social, ao negar-lhe até mesmo um rosto. Isso a condena a uma condição inferior e a existir enquanto pessoa apenas dentro de casa, tornando-se um fantasma anônimo sempre que sai à rua. É, em suma, lamentável que muitas mulheres, levadas seja por uma visão inferiorizada de si mesmas, seja pela adesão a preceitos religiosos irracionais, anulem-se dessa maneira.

Contudo, as pessoas por trás das burcas são, não nos esqueçamos, mulheres adultas. Podemos não gostar e discordar, com bons motivos, de suas decisões, e tentar convencê-las do contrário, mas proibi-las à força é tratar-lhes como seres não-racionais, crianças incapazes de escolher por si mesmas. Objeta-se que o uso da burca é forçado; isso pode bem ser verdade em alguns casos, mas é difícil imaginar que o seja em todos. O mais provável é que a maioria das mulheres aceite voluntariamente o mandamento religioso, e que algumas até gostem dele. Em todo caso, o que se deve coibir legalmente é o ato de coerção (dos pais, dos maridos, etc), e não o uso da burca em si. Afinal, se uma mulher quiser se cobrir da cabeça aos pés, com que direito a proibiremos?

O critério para se saber se há ou não coerção é a presença de ameaça física. É preciso garantir que a mulher que deixa o Islã – ou adote uma variante menos rigorosa dele, que permita o véu simples ou mesmo a cabeça descoberta – não seja agredida. Reprovação moral, discussões acaloradas ou mesmo expulsão de casa (é um fato duro da vida, mas um pai pode sim renegar um filho adulto) não contam como agressão, pois não invadem o direito da mulher sobre si mesma. Assim, tudo considerado, se ela veste a burca sem coerção, essa livre escolha deve ser garantida pela lei.

Essa afirmação intransigente do princípio da liberdade individual pode parecer uma tempestade grande demais para um copinho d’água tão pequeno. Afinal, é só uma burca, um costume bárbaro de uma fração pequena e fanática da população islâmica. Eu mesmo não perderia meu sono se a proibição passasse aqui no Brasil, mas sei muito bem que algum dia essa pequena violação de princípio pode virar-se contra mim; ou contra você. E nesse dia, quando formos nós a minoria cujo costume está prestes a ser proibido, não teremos como protestar legitimamente contra os parlamentares esclarecidos que queiram nos libertar dos fardos de nossas próprias convicções.

O Estado laico, que não força sobre seus cidadãos nenhuma fé, é uma grande conquista de nossa civilização, porque protege a liberdade individual num dos seus âmbitos mais fundamentais: o de viver de acordo com as crenças mais profundas que cada um tem acerca da existência. A partir do momento que, em nome do secularismo, o Estado passa a banir a religião ou suas manifestações públicas, que ela invariavelmente terá – afinal, nenhum fiel sério abandona sua fé ao cruzar a porta de casa -, ele viola esse princípio fundamental e torna-se culpado, em sentido contrário, do próprio mal que ele deveria sanar. Quem defende a liberdade de se viver de acordo com a própria consciência vê na proibição da burca, ainda que um fim nobre, um meio inaceitável.

Artigo originalmente publicado na Gazeta do Povo, de Curitiba.

8 comentários em “Liberdade para o bem ou para a burca

  1. Essa questão de símbolos religiosos vem se arrastando na França desde a época do Chirac. Ao que parece, os franceses estão preocupados com o crescimento da população islâmica e a possibilidade de abrir possibilidades para que os islâmicos tornem-se imunes às leis do tal Estado Laico.

    Na época que foram banidos símbolos, entre eles o crucifixo, discutia-se que os muçulmanos seriam os mais “prejudicados”. Afinal, um cristão pode portar seu crucifixo por baixo das roupas, já o muçulmano, sobretudo as mulheres, teriam que abrir mão do uso do Hijab e também da burca.

    A burca é um caso ainda mais complicado, porque impede que uma autoridade possa conferir que o que está debaixo daqueles panos é mesmo a pessoa que apresenta um passaporte, por exemplo. Há notícias de que na Itália (se não estou enganado) houve a discussão de se admitir em passaportes e identidades uma foto da pessoa usando burca, ou seja, sem a possibilidade de identificar o rosto da pessoa. Que o Estado seja laico e admita a liberdade religiosa, tudo bem. O problema é quando essa tal liberdade religiosa acabe por deixar o estado de mãos atadas quanto à segurança pública ou mesmo em um caso de fraude havendo a impossibilidade de identificar uma pessoa.

  2. É, sei, “bom senso”…

    Dois passos para proibirem católicos de portarem até mesmo correntinhas com crucifixos.

    Aguardem e verão.

    A França é um dos países mais degenerados do Mundo, e esse Sarkozy é um palhaço que pôs banca de direitista, etc, e come na mão da Nova Ordem Mundial.

  3. Imaginem onde isso pode parar: começa proibindo a burca, depois os quipás e os hábitos e, daqui a pouco, todos os franceses serão obrigados a usar camisetas do Che.

  4. “o que se deve coibir legalmente é o ato de coerção (dos pais, dos maridos, etc), e não o uso da burca em si. Afinal, se uma mulher quiser se cobrir da cabeça aos pés, com que direito a proibiremos?”

    Este ponto é crucial. Pressão psicológica, surras, crimes de honra – caberia ao estado garantir à mulher a liberdade de escolher. Mas como pode o poder público se sobressair ao poder muito mais direto e tangível das vizinhanças, dos bairros, das famílias, dos pais…?

    A proibição pura e simples de usar uma vestimenta é mais um absudo da mentalidade burocratólatra universal.

  5. Mas que texto chiliquento.

    Comentasse só a proibição e pronto.

    Os comentários a respeito da burca não me interessam nem um pouco, e creio que para a maioria dos leitores da Dicta também.

    Destoou do nível da Revista.

    PS – sou católico.

    Abraços.

  6. “abcd”, há apenas um parágrafo que trata da burca em si: o segundo. Todo o resto é sobre a proibição; isto é, poderia, com pequenas alterações, falar da proibição de outras manifestações religiosas.

    O segundo parágrafo é importante ao texto para estabelecer que a crítica à proibição não parte de uma moral relativista, que não distingue entre práticas boas e más. Pelo contrário: a distinção é feita, e a proibição à burca é criticada APESAR de a burca ser, de fato, um mau costume.

    Chiliquento foi o seu comentário, que apela apenas ao gosto subjetivo (“não me interessa”), e ainda em tom malcriado.

    PS- aqui não é o clubinho da paróquia; não precisa apresentar suas credenciais de católico para entrar.

  7. Bom, cada um na sua. Achei o artigo equilibrado e não terei sido o único a considerá-lo interessante (independentemente do fato de que além disso concordo com o JP). O debate sobre a burca na França tem um alcance obvia e consideravelmente mais amplo e o texto o sintetiza muito bem.

  8. Por outro lado, abcd (se houver alguém lendo isto): mesmo que você não tenha apresentado argumentos, acho que entendi seu ponto; distinguir a questão da burca em si da outra, pertinente ao seu uso na França, etc. Para ser honesto, pessoalmente eu teria que estar melhor informado para dizer algo. Conheço praticamente nada a respeito de tradições islâmicas; e aquilo que parece modesto numa cultura não é visto assim numa outra. Em suma: não estou em condições de avaliar esse ponto específico, não. Concordo com o JP, sim, topicamente no que concerne à proibição e ao alcance do que está em jogo. http://en.wikipedia.org/wiki/Burqa

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