Não somos anões

É a segunda vez que João Mellão Neto traz o conservadorismo para o debate na grande imprensa (“Eu sou um conservador“, Estado de S. Paulo, 16/11/12). E acho que ele deve ser aplaudido por fazê-lo: novas posições, autores e referências são sempre bons em nossa cultura política cada vez mais carente de ideias. Neste segundo artigo fica explícita a influência, que já se fazia sentir no anterior, de Russell Kirk e Edmund Burke (se ele reproduz bem o pensamento desses dois autores é algo que não posso julgar).

Voltam à baila os pontos principais que ele frisara anteriormente: que os arranjos institucionais que chegaram a nós passaram por longos testes e portanto devem ser os melhores, e que nós, modernos, em relação a nossos antepassados, debruçamo-nos em ombros de gigantes. Isso não quer dizer ser avesso a toda e qualquer mudança, e sim que as mudanças propostas serão sempre graduais, aprimoramentos marginais ao invés de reformulações totais.

Além disso, há dois elementos novos. O primeiro é o rechaço ao relativismo moral; e o segundo é o valor dado ao meio-ambiente e à natureza. E quero me dedicar aqui ao primeiro desses, que ilustrará bem o que vejo como a fraqueza no cerne do pensamento conservador defendido por Mellão Neto. Diz ele:

“Voltando às principais teses conservadoras, um conservador de verdade não tolera o relativismo moral. Ainda no século passado, terríveis consequências sofreram os povos onde ocorreu um colapso da ordem moral, onde os cidadãos transigiram quanto a isso. A moral há de ser uma só, seja ela fruto de revelação divina ou tenha sido forjada pela convenção humana. Ela é o resultado de um arranjo costumeiro, cuja origem data de tempos imemoriais. E é ela que nos preserva do abismo.”

A princípio parece apenas uma defesa de uma moral/ética objetiva, ou seja, não dependente de caprichos ou adesões irracionais; mas leiam com mais cuidado. Ele diz que a moral há de ser uma só, e não que ela seja uma só. A confirmação disso é que ela pode ter origens díspares: revelação divina, convenção, arranjo costumeiro (o que está ausente: realidade, razão; tudo o que seja universalmente e objetivamente acessível a todos). Ao dizer isso, não se está rejeitando o relativismo moral; se está rejeitando apenas a variabilidade dos juízos morais, o que é muito diferente. Não se rejeita que a origem da moral esteja em alguma instância arbitrária (no capricho ou no salto de fé – que pode ser qualquer fé); rejeita-se, isso sim, que, existindo um código moral, outros existam paralelamente a ele. Isso é a ruína, isso nos joga no caos e no abismo. “A moral há de ser uma só”; não importa que seja verdadeira –cabe falar de verdade no âmbito das convenções? – e sim que seja a única. Nessa visão, o único ato verdadeiramente proscrito é propor um critério ou um valor moral diferente do dominante. Se a sociedade for escravocrata, tudo está bem; o problema nesse caso seriam os abolicionistas, ao introduzir princípios de desordem e desunião ao consenso moral outrora coeso.

Viver em um mundo escravocrata onde os homens podiam bater nas mulheres impunemente ou em um mundo em que todos tenham seus direitos individuais respeitados? Esse é o tipo de decisão que deixaremos nas mãos dos antepassados?

Nos ombros de gigantes?

O problema do conservadorismo expresso por Mellão Neto (trata-se ou não de leitura fiel de Kirk?) é que, no final das contas, ele redunda em nada mais do que uma recusa a se pensar racional (e, portanto, sistematicamente) sobre as questões da vida e da sociedade: o que nossos antepassados fizeram já deve ser o melhor; e, demais, como saber? Somos só anões em ombros de gigantes… De onde tal complexo de inferioridade? De onde se tirou que nossos antepassados sabiam mais do que nós? Tempo não é critério. A medicina tradicional do Ocidente durou milênios; e mesmo assim estava quase que completamente errada e foi completamente solapada pela medicina moderna. O mesmo vale para a física de Newton, que enterrou de uma vez por todas as doutrinas físicas aristotélicas (o que não tira, obviamente, o valor delas para o progresso do conhecimento humano). Nos campos moral e político, há progressos inegáveis também: a instauração de direitos individuais, e a descoberta de como funciona o mercado (que possibilitou diversas medidas políticas acertadas ao invés de completamente erradas), o fim da escravidão, o fim da condenação à morte por homossexualidade, o consenso hoje incontestável da igualdade dos sexos (e, portanto, do fim de práticas tradicionais como a punição física da esposa), a condenação moral e proscrição da tortura, a conquista da liberdade religiosa. Como alguém pode afirmar que não houve “progresso algum”?

O que não quer dizer que a história seja feita só de progressos; meu ponto é que os progressos e retrocessos, especialmente em matéria política, são cognoscíveis e factíveis; e que portanto não devemos abrir mão inclusive de mudar radicalmente de rumo se algo que foi legado pela tradição vai demasiadamente mal.

Como uma ressalva quanto aos meios, como um alerta para que não se destrua as instituições vigentes levianamente, ele é válido: pois sabemos que o colapso das instituições básicas é terreno fértil para todo tipo de monstruosidade. Então, na medida em que, imperfeitas como sejam, as instituições garantam algum mínimo respeito a esses direitos, é melhor preservá-las. Se elas se convertem, contudo, em violadoras sistemáticas de nossos direitos (a tirania), daí já passa a ser louvável tentar derrubá-las mesmo. A mera antiguidade não prova nada. Os antigos não foram gigantes, e nem nós somos anões. Ouso dizer que é graças ao fato de eles não terem sido plenamente conservadores, mas de terem tido a coragem de inovar e romper consensos estabelecidos, que hoje gozamos dos progressos por eles alcançados e podemos mirar mais longe.

14 comentários em “Não somos anões

  1. Mas e então… Todas essas conquistas foram feitas de formas graduais…
    Não se pode mudar de uma hora para outra o que se construiu por muito tempo.
    Vide os milhões de mortos na Guerra da Secessão e a abolição pacífica no Brasil.

    E essa gradualidade não deve ser vista do modo simples de tempo, mas também de método. Vide Mandela depois da cadeia e aquele inglês que começou o abolicionismo.

  2. Ou melhor ainda: Os métodos usados por Cristo. O único radical foi o sacrifício final, que realmente não tinha jeito, era algo realmente inédito, não tinha antepassado para aquilo.

  3. Joel,

    Gostei desse seu post e concordo com muita coisa dele.

    Apenas achei que a forma como você parece ter interpretado a figura dos “anões e gigantes” não é a interpretação usual dela. Não são os nossos antepassados (enquanto pessoas) que são “gigantes”, mas o conhecimento e experiência acumulado por eles é que é representado pelo “gigante” enquanto nossos conhecimentos e experiência (apenas dessa geração) é pequena (“anão”) diante da experiência acumulada na história.

  4. André, se até a revolução científica e da medicina (que em menos de um século enterrou quase tudo o que se julgava saber por 2000 anos) podem ser vistas como “mudanças graduais”, então não existe mudança que não seja gradual. E então o conservadorismo é vão, pois propõe algo que é necessariamente o caso. Se alguém propõe mudanças graduais, é porque enxerga a possibilidade de mudanças não-graduais.

  5. Wagner, é verdade; há esse outro sentido também. Mas note que ele também tende ao pessimismo irracional: às vezes mesmo tudo o que foi acumulado no passado é muito pouco. E em outros casos, ainda, o progresso só virá se derrubarmos um edifício anterior, erguido sobre erros fundamentais. que não quer dizer que não seja importante na história do pensamento.

  6. Evolução X Revolução : uma é gradual , outra é abrupta . Acontece que tem momentos na história em que o homem fica diante de situações urgentes , e são essas situações que levam o homem a fazer as revoluções .

    Outro ponto : estaremos eternamente visando o progresso ! quem não espera progredir na própria vida ? A única crítica que se pode fazer é quando se almeja o progresso a qualquer custo.

    Quanto ao relativismo moral . Querer a moral única é uma grande utopia . Dividimos cada um de nòs uma parcela da mesma moral, que na minha opinião se confunde com valores . Mas moral é algo subjetivo , cada pessoa tem a sua moral própria . É por isso que nossa vida é cercada de conflitos de todos os tipos.

  7. Joel, Joel… você está me saindo um verdadeiro progressista!!!

    Acho que você interpretou muito ao pé da letra os artigos do nosso amigo Mellão! Aquilo é um artigo de jornal – “popular” – e não uma tese acadêmica sobre o conservadorismo.

    Sim, acho que o que vai lá escrito não é o melhor para “vir à público”, mas antes isso do que o silêncio sepulcral em que geralmente estamos!

    Vivas aos poucos que se declaram liberais e conservadores!!

  8. Concordo, dou viva ao fato sim! E não digo que acho o artigo ruim (exceção a um ponto que me parece sim muito fraco: a associação entre ambientalismo e conservadorismo baseada no verbo “preservar”), embora discorde de muitas coisas nele. Minha crítica também não se pretende acadêmica.

    Acho que a atitude básica conservadora é equivocada, assim como a atitude progressista básica de “temos que estar do lado certo da história”. A premissa básica de que o que resistiu ao teste do tempo (sem falar no problema epistemológico de como averiguar se o que chega até nós passou por esse teste) deve ser bom tem validade muito limitada. Pense no uso da sangria terapêutica: milênios de uso de uma terapia que não só não curava as doenças que se propunha a curar como PIORAVA a saúde dos pacientes.

  9. Joel,

    Pegando o gancho do Silvestre (Evolução X Revolução): o fato de ter sepultado 2000 anos de conhecimento com sem-número de pesquisas de qualidade não significa mudança abrupta. Foi sim uma mudança gradual, pois nada do passado foi sepultado sem criteriosa análise, e o que servia foi aproveitado.
    Se existe dimensão para gradualidade então teríamos que dizer “ah, a mudança tem que ter um interstício x e uma intensidade y”. Não é isso que Mellão diz.
    Vc diz:
    “o que nossos antepassados fizeram já deve ser o melhor”
    É simples. Mellão não diz isso, ele apenas diz que não se pode jogar fora o que os antepassados fizeram. É França em 1789 vs. Bretanha em 1688.
    O texto também não diz que “não houve progresso algum”. É simples. Ele apenas diz que “quando, no séc. XX, veio uns tais querendo fazer o humano perfeito, aí sim não houve progresso algum”. Esse progresso algum, que para os conservadores radicais não há (fim do texto), foi algo em cujo nome se fizeram as barbaridades.

    E atenção: O que se pode criticar no texto de Mello e que, de fato a ideia de preservar a natureza tem óbvia raiz conservadora. Mas o alarmismo é a coisa de revolucionário, que se for levado a cabo terá as mesmas consequencias das revoluções.
    Que haja um Burke para narrar isso!

  10. Longe de reivindicar qualquer relativismo, mas vamos a ele: conservador de quê? conservador onde? a questão “devo ou não ser um conservador?”, colocado assim à queima roupa, sem o devido contexto é apenas conceitual – válido até certo ponto, depois mero papo de botequim. Afinal o que é ser conservador no Brasil? Questão de ordem: o conservador no canadense é completamente distinto do conservador inglês e aquele do americano dos EUA. Ser conservador no Brasil é algo que urge ainda alguma definição – que definitivamente não temos. Afinal, é ser Monarquista? Católico? Maçom? Neo-liberal no sentido petista do termo? Não sabemos pois pouco entendemos nas raízes o NOSSO conservadorismo. A questão sendo política, é disputada por várias destas tribos, cada qual reivindicar a si a legitimidade do “ser conservador”. Mellão a sua maneira está a dizer, no máximo, os termos em que ele se entende por conservador; o que defende não pode ser tomado como uma definição no sentido lato do termo.

  11. E um conservador gaúcho deve ser diferente do conservador pernambucano.
    E um conservador de Recife deve ser diferente do conservador de Cabrobó

  12. Pois é, há uma arbitrariedade na hora de escolher o que um “verdadeiro” conservador deve defender; e o critério do Mellão Neto não o resolve de jeito nenhum, a não ser que adotemos a atitude estrita de defender qualquer coisa que exista agora porque, dado o processo evolucionário das instituições humanas, se ela está viva agora, é a mais apta.

  13. Para mim o Leandro foi no cerne da questão: “Afinal o que é ser conservador no Brasil?”

    Enquanto ficamos elocubrando sobre Kirk, Burke, etc não percebemos que não construímos algo nosso.

    Quem são os expoentes conservadores do Brasil? Gustavo Corção? Olavo de Carvalho? José Guilherme Merquior? Paulo Francis (em sua segunda fase)? Reinaldo Azevedo? João Mellão? Ives Gandra (o pai, pq o filho se interessa mais por Senhor dos Anéis – e pelos anéis – e da politicagem para ser presidente do TST antes da hora)?

    Um escritor, um filósofo, quatro jornalistas, um tributarista…

    Alguém cita algum sociólogo? Um político “de carreira”? Um historiador?

    É claro que existe mais gente mas pergunto se é o suficiente para construir um pensamento conservador.

    Alguns entenderam muito bem a crítica que fiz por terem chamado o Elfes de “estudioso”. Aliás, àqueles a quem era dirigida entenderam 100%. Alguns “não iniciados” reclamaram como reclamariam de qq coisa que fosse dita “contra” os blogueiros da Dicta.

    Eu disse lá que não se poderia falar de estudioso sem inserção social.

    Entenderam o busílis da questão? Temos aqui um bom grupo de cabeças pensantes, muito inteligentes e tão arrogantes quanto. Mas são esses que poderiam “compendiar” um pensamento conservador no Brasil. Mas quê! O negócio é desancar a turma dos Olavetes (afinal eles são meio malucos), desancar a turma dos Constantinetes (afinal ele é …oh tremei… libertário), ignorar a turma dos Pauloricardetes, do Cons, pq eles querem é “refundar” a TFP, ignorar a turma da volta UDN, Arena, Monárquicos, Militar…

    Eu também reclamo, em especial com o Júlio, de que vivemos em um mundo real! As idéias são ótimas mas implicam em quê? Meu sonho de consumo é ver uma grande reunião das turmas acima citadas para um esforço conjunto do tipo deixar as diferenças momentaneamente de lado para ir “feito exército em ordem de batalha” para o debate público, sem medo, sem covardia. Não é uma pena, eu diria lástima, o Liber se matando para conseguir as 500 (sempre esse número hehe) mil assinaturas e o Federalista perdido na papelada de uns dez anos atrás? Pq não fazer um mutirão e tentar todos conseguirem assinaturas para todos? Pq não formar o bloquinho da direita? Marchar unidos por uns bons anos e depois de ganhada a musculatura seguir cada qual o seu caminho? Mas que… o “nosso” negócio é o “independentismo” oh céus!!

    Me alonguei e fugi do que queria dizer: Julio, que tal um post específico sobre o pensamento conservador brasileiro? Joel, que tal um post específico sobre o que pode sair do papel no campo conservador brasileiro?

  14. Caio, em termos práticos, temo que a “reunião” das turmas acima citadas não somaria 10.000; e como tá todo mundo mais interessado em discutir em foruns de internet do que em mudar as instituições do país (pois a única proposta com alguma implicação prática direta é a liberal; o resto – conservadores, católicos militantes, Arena, etc. não tem propostas claras e/ou diferentes do que já está dado na política nacional; eles só existem enquanto ideais abstratos), não sei bem o que poderia sair daí.

    Como fazer para viabilizar, na vida real e na disputa política, essas outras visões e posições?

    Conversando com gente ligada ao Liber (que é o único desses que me interessa pessoalmente), ficou bem claro para mim que o que falta é dinheiro. A cifra necessária para as assinaturas é cerca de R$ 1,5 milhões, que não é muito se considerarmos o quanto diversas outras causas e partidos conseguem com um estalar de dedo. Não sei como resolver o problema e conseguir o dinheiro, e tenho certeza que, se você puder ajudar nesse quesito, sua ajuda será muito bem-vinda entre os membros do partido (não sou um deles). Tenho quase certeza, contudo, que a solução não virá de mutirões, crowdfunding, e articulação de facebook; não existe ainda uma massa de aderentes disposta a colocar o dinheiro ou o tempo de trabalho não-remunerado que a causa demanda. Posso estar errado; mas veja só, eu mesmo não estou de prancheta em mãos na estação da Sé, e nem tenho tentado organizar nada nesse sentido.

    A principal missão da Dicta, contudo, não é a luta política, mas a luta que se dá dentro das mentes: uma luta cultural que, de certa forma, “não sai do papel” mesmo, porque nem poderia existir fora do papel, isto é, fora das mentes, do direcionamento que cada pessoa dá à sua vida. Como a filosofia.

    Por fim, não tenho me dedicado a desancar ninguém, mas a propor questões importantes e discuti-las. Não vejo a cultura primariamente como uma “luta” entre dois ou mais lados, por isso não me preocupa, neste âmbito, se estou discordando de alguém que poderia ser meu aliado numa causa. Essa crítica faz sentido dentro de uma perspectiva política ou proselitista, em que se visa a conseguir adeptos para uma crença ou causa; imagine dois padre pregadores que passassem o tempo debatendo filigranas que diferenciam as perspectivas teológicas de ambos ao invés de tentar converter a população. Mas essa não é a minha abordagem aqui.

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