O perigo da redenção

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Juro para vocês que tentei de tudo, inclusive usar e abusar da minha boa vontade. Mas não deu. Sinceramente não deu: o final de Lost é uma das picaretagens mais esquisitas que já vi na minha vida.

Para quem ficou pelo planeta Terra nesses últimos dias, não havia como escapar deste evento chamado “o fim de Lost“. A série criada por J.J. Abrams, Jeffrey Lieber (que teve apenas a idéia de um desastre de avião em uma ilha deserta e não fez mais nada) e Damon Lindelof (que, junto com Carlton Cuse, criou o que seria a mitologia e a estrutura narrativa do seriado) foi um hype sem precedentes que, no fim, provou somente que P.T. Barnum tinha razão: nasce um otário a cada minuto.

No caso, o otário sou eu. Esperei seis temporadas para ficar sem nenhuma resposta – ao contrário da maioria, eu não queria tê-las em hipótese nenhuma, queria mais enigmas e mais mistério – quando Damon Lindelof e Carlton Cuse, depois de todos os flashbacks, todos os flashforwards, todas as viagens no tempo, todas as realidades paralelas, resolveram brincar de Janete Clair, Zibia Gasparetto, Chico Xavier em uma única massaroca e terminar o que seria a “mais revolucionária série da tevê aberta já feita” como se fosse um final da novela das oito da Rede Globo.

Enfim, much ado about nothing, já dizia o bardo, que nunca apelou para esses recursos pós-modernos e, quando decidia ter algum fantasma na sua peça, fazia a alma penada ir para o nosso mundo e não o contrário.

O problema do final de Lost é, a meu ver, justamente o excesso de explicações, em especial nos últimos dez minutos. Até entendo que, dentro da lógica interna da trama alucinada que foi criada (e eu não tenho nada contra em usar o meu suspension of disbelief, uma vez que sou um fã de Chesterton, Philip K. Dick, C.S. Lewis e Flann O´Brien), aqueles personagens só poderiam estar mortos e iriam se encontrar em uma espécie de limbo (Quem disse que aquilo é um purgatório está errado; neste, há a expiação dos pecados; o que caracteriza estar no limbo é o fato de que você não sabe que está morto). Mas ninguém precisava dizer aquilo; bastava ser mostrado através de imagens, sons e ações, como já fizeram, por exemplo, Stanley Kubrick em 2001, Andrei Tarkovski em Solaris e David Chase na brilhante cena final de The Sopranos.

A picaretagem está no fato de que fica claro que os roteiristas não souberam terminar o complexo enredo da série e resolveram encher a lingüiça com pseudo-divagações esotéricas e que não têm nada a ver com a verdadeira vida espiritual. Apesar de alguns sites cristãos demonstrarem felicidade com o final, por mostrar personagens que enfim encontraram uma redenção em suas patéticas vidas, Lost não tem nada a ver com o cristianismo. Sua metafísica, se tiver alguma, não passa de um arremedo de New Age, dualismo gnóstico e espiritismo de botequim.

Isso não é apenas um problema dramatúrgico – e sim uma ferida na sensibilidade da sociedade ocidental. No Brasil, por exemplo, o sucesso de um filme como Chico Xavier e de livros espíritas que são lidos aos quilos nos metrôs e nos ônibus de uma grande cidade como São Paulo é uma amostra de como o anseio por uma redenção e – mais – por uma explicação da vida após a morte pode ser manipulada em um sentimentalismo kitsch que, na verdade, engana o público e não faz aquilo que uma obra de arte deveria fazer: educá-lo para compreender a finitude das coisas.

Parece um assunto bobo, mas não é. Quem não gostaria de ter a certeza de que será redimido? Ou então ter a certeza de que encontraremos os nossos queridos que perdemos pelo caminho em um afterlife cheio de luz? Eu gostaria que isso tudo acontecesse, é claro. A questão é que, neste palco que é a nossa vida, não sabemos se isso é possível. Cristo nos revelou que o reino do supernatural interefere momentaneamente no reino da natureza, mas ele nunca impôs uma coisa sobre a outra. Simplesmente deixou a Criação seguir seu próprio curso – que é a da morte e, se tudo der certo (reparem que eu frisei o se), ressurreição. O que Cristo faz é nos ensinar a viver uma vida decente enquanto estivermos por aqui e ensinar a encarar com coragem o problema da morte e do sofrimento. E tudo isso acontece neste que é o melhor de todos os mundos possíveis, para citar o velho e bom Leibniz.

Assim, Damon Lindelof e Carlton Cuse deseducaram nossas sensibilidades para as verdadeiras questões da vida – e nisso eles estão acompanhados de uma série de pessoas que, certamente, estão todas bem intencionadas, mas que resolveram fugir da tensão do real simplesmente por um medo e um terror que só pode ter explicação no fato de que a existência é marcada pela incerteza. Há um perigo em querer demasiadamente a sua própria redenção – e, às vezes, isso pode nos levar ao mais profundo dos infernos. E o final de Lost – que deveria ser uma série sobre um personagem que, do ceticismo a fé, resolve abraçar o mistério –  subestimou e, por fim, insultou a inteligência do espectador. E é finita la opera.

(A imagem acima foi tirada do blog Trabalho Sujo, do jornalista Alexandre Matias, a melhor fonte de informações que existe na Internet brasileira sobre Lost)

17 comentários em “O perigo da redenção

  1. Pingback: Tweets that mention O perigo da redenção | Dicta & Contradicta -- Topsy.com

  2. Claro, um final kubrickiano ou tarkovskiano para uma série popularíssima da TV atual seria a MELHOR saída! Como eles não pensaram nisso?

    A maior parte dos espectadores interpretaram que eles estavam mortos DESDE O INÍCIO, mesmo com todo o diálogo entre Jack e Christian, e vc acha que tudo seria melhor com um final cheio de alusões ainda mais misteriosas do que tantos mistérios que o próprio final (e a própria série) já levanta?

    Pra mim é ÓBVIO que uma certa “literalidade simbólica” da cena final passa por questões extra-dramáticas da série: medo de ser AINDA MAIS destruída pela crítica e pelos ditos “fãs” do que já foi, principalmente.

  3. O que falta perceber é que Lost foi mudando de rumo DELIBERADAMENTE, isso é muito claro. Essa mudança de rumo faz parte do próprio arco da série, por mais circunstancial que sejam alguns detalhes aqui e ali!

    Essa mudança de rumo está simbolizada, aliás, no próprio Jack.

    De início um homem pragmático, cético, atento a resolver problemas imediatos e por vezes menores.

    Ao fim, um homem em plena redenção, com uma missão muito maior do que tudo que já tenha vivido.

    No abrir de olhos, alguém buscando por causas e efeitos. Os bambus cerram o céu. O paletó preto o incomoda. A garrafa de vodka remete a más lembranças.
    No fechar de olhos, uma experiência absoluta, única, sublime. O sangue nas mãos, no corpo, o sorriso incontido.

    Living together to die alone, and dying alone to live together.

    “Everything That Rises Must Converge”, como o título do livro que Jacob lia no season finale 5.

  4. Sobre os mistérios da Ilha e todos esses detalhes que tantos sentiram falta, é como disse Tomás de Aquino, ao revelar para seu discípulo que iria queimar todos os seus livros de filosofia e teologia:

    “Depois do que vi, tudo isso é palha!”

  5. Acho que aszisti a, no máximo, uns 3 capítulos dessa série. Mas, pelo que você falou esse treco de descobrir que você é o morto e não aquele que você acha que é, não é o tema do “Sexto Sentido”?

  6. “(…) O que Cristo faz é nos ensinar a viver uma vida decente (…)”.
    Nem mais.
    Adorei o texto!
    Só assisti a meia dúzia de episódios da 1ª série. Cansei de tanto ‘mistério’, que só podia dar em nada, como bem explicou.
    Tudo (bem) dito.
    Estupenda síntese.
    :)
    (os comentários também estão carregadinhos de neurónios; assim dá gosto!)

  7. Martim caro, belo texto. Tive que contestá-lo no blog por questões de ordem. Acho que antes de tudo “it’s is just a T.V show” como você bem lembra ao Renan. Mas um show de má qualidade. Abração!

  8. Final de novela da globo, realmente foi péssimo. O pior é que até quase o fim podia se salvar. Esperava pela destruição total da ilha. Aquela ilha era “o” lugar da mistificação, onde você tinha outros para culpar por tudo, indo no passado até uma mãe louca para carregar a culpa pelos problemas na ilha, onde tudo era dramático demais, e facilmente terminava com a morte de alguém. Ao contrário
    das vidas dos personagens apresentadas na trama paralela. Aquelas visões eram contagiosas e deixavam as pessoas ridiculamente entorpecidas pelo que teria passado na ilha, imagens que surgiam na cabeça de repente e quase que instantaneamente ganhava mais importância do que a vida real, prosaica, até patética em alguns momentos. Enfim, virou Ghost Whisperer, sem nem ter pelo menos uma Jennifer Love Hewitt de protagonista.

  9. O que eu acho mais curioso é que todos que postaram comentários aqui endossando a crítica confessaram não ter visto todas as 6 temporadas da série.

    Não é a primeira vez que vejo isso acontecendo.

    Ora, façam-me o favor…

  10. Eu vi as 6 temporadas.

    A partir de um dado momento, quando o embroglio ficou grande demais (mortos que voltam, imortais, viagem no tempo, realidade paralela, etc) ficou claro que, qualquer que fosse a explicação, ela não seria satisfatória. De fato, não foi satisfatória, a não ser num nível puramente sentimental, dando flashbacks do início da série para agradar aos espectadores que a acompanham a 6 anos (eu vi tudo desde 2 anos atrás, por DVD, e então não tinha essa “history” com a série).

    O fim é bobo? É. O autor do texto erra ao falar que o limbo é onde não se sabe que se morreu; a realidade paralela dos personagens era sim o purgatório, onde eles sofriam até o ponto em que estivessem preparados para transcender. Por isso mesmo que Ben, o personagem que tinha cometido mais atrocidades ao longo da série, não estava preparado para entrar na igreja com os demais e partir para o “outro mundo”. Mas tudo isso, na simbologia tão carregada da série, fica um pouco piegas. Aliás, para mim um grande problema de Lost é o exagero na simbologia, que é tão ostensiva, tão onipresente e tão diversa (livros, nomes) que ele sofre o mesmo que Matrix sofreu: tantos símbolos tão desencontrados ao mesmo tempo revelam apenas um significado: não há significado nenhum.

    Outro ponto fraco da série era a oposição entre “fé e razão” criada, na qual fé era fazer qualquer coisa idiota que se sentisse porque “it’s my destiny” (uma explicação, aliás, que nunca pode explicar validamente nada). Há um dado momento em que os personagens ficam tão repetitivos e obsessivos nas suas posições caricatas que chega a irritar.

    Contudo, um grande mérito a série tem: a estrutura narrativa dos flash backs, que revelavam, no início, pouco a pouco, a vida pregressa dos personagens antes de chegarem na ilha. E, o mais genial, quando no fim da terceira temporada, muda-se do flash back para o flash forward, revelando a vida futura dos personagens, o que joga uma luz diferente em tudo o que acontecia lá. O momento em que se descobre que o Jack barbudo e deprimido não é um capítulo do passado dele, mas do futuro, já de volta da ilha (porque ele se encontra com Kate, que ele só conhecera na ilha), foi o momento que mais me marcou e que realmente me prendeu.

    Agora, a partir do momento que começaram as viagens no tempo (coisa que sempre, sempre, leva a paradoxos, a não ser que se postule que a cada viagem uma nova realidade paralela se crie, o que acho ainda mais insatisfatório), e carregou-se mais o aspecto preternatural da ilha, meu interesse foi caindo.

    Enfim, o fim foi sim um tanto piegas, mas foi também foi de coração sincero. Bom, foi digno da série.

  11. Eu larguei mão de Lost no meio da quarta temporada. Sinceramente, fiquei cansado! Não vi e não vou ver o restante…Desculpem a piadinha tola, mas, Lost se perdeu.

  12. de um comentador no site da First Things:

    Hume é o sujeito que faz os milagres pararem de acontecer, ao tirar a pedra do centro da fonte mágica. O que faz sentido com o David Hume da vida real, que escreveu seu famoso Dos Milagres, parte do Ensaio sobre o Entendimento Humano.

    Anyway, o fato da série dar nome de filósofos aos personagens (John Locke, Jeremy Bentham, D. Hume, Rousseau) é um pouco irritante.

  13. Martim, só vi o texto agora. Eu também gostava de Lost. O 10º episódio da 2ª temporada, O Salmo 23, por exemplo, mostra a Graça Divina atuando na vida de Mr. Eko, que assim experimenta uma conversão cristã. Só por isso dá pra notar que os caras (Darlton) têm alguma noção de cristianismo. Veja a diferença para o Brasil. Aqui, cultura pop, novela, quando fala de cristianismo, é só para colocar padre comuna ou padre que larga a batina por causa de rabo-de-saia. Nada de Graça Divina, como em Lost. Mesmo assim, Martim, Lost não passa de cultura pop. Why bother? Pop culture, por melhor que seja, nunca passa de lixo mesmo.

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