Pirateando Paulo Coelho

“Pirates of the world, unite and pirate everything I’ve ever written!” Posso não ser dos maiores fãs obra de Paulo Coelho, mas seu grito de ordem é sim matéria para uma boa análise, se por nada, pelo fato de estarmos lidando com uma das inteligências mais argutas de nosso tempo. Argúcia não é sofisticação e como não é meu tema o arrivismo gauche de artistas, fico livre para dispensar malandragens filosóficas e tecer comentários sobre coisas menos sutis que os “novos valores” e a “nova era” que surgem com a pirataria digital. O que quero entender é algo bem mais prosaico: como a estratégia de liberar ao público a distribuição gratuita do próprio trabalho pode ser uma saída comercialmente estimulante – ao menos para um dos escritores mais ricos de todos os tempos.

Para isso precisamos retirar as premissas falaciosas. Paulo Coelho se tornou célebre por fazer algo que muitos costumamos chamar de literatura de auto-ajuda, mas é importante saber que seu pedido de pirataria não foi feito para ajudar os outros – embora possa parecer quando em algum momento do seu artigo diz, sem qualquer modéstia, “uma boa ideia não precisa de proteção”, fazendo referência às próprias idéias, é claro. Todos que já trabalhamos em alguma atividade competitiva sabemos que para propor algo assim abertamente, a liberação do uso livre de determinado produto, deve-se avaliar muito bem o xadrez da complexa cadeia produtiva em que se insere, e saber o quão protegido se está – e, no mundo da cultura, aquela cadeia do mercado editorial é das mais fechadas e complexas que há. Ninguém, ali ou qualquer lugar, ganha dinheiro por ser bonzinho, mas por saber organizar e vender seu produto.  Neste sentido, o Paulo Coelho que libera seu material na internet não é um coroa saudosista da contracultura. Se o escritor fez, com a proposta espalhada aos quatro ventos seu “turn on” e “tune in”, definitivamente ele não é um “drop outer”.

Então, se seu gesto é calculado e descontamos a possibilidade de benemerência, alguém de tino para negócios certamente não tão bom quanto o escritor poderia achar que Paulo quis surfar em uma onda da ocasião. Afinal, o post invocando a própria “profanação” saiu no dia 20 de janeiro passado em seu blog pessoal. Naquele momento é imaginável que o escritor tenha agido provocado pelos fatos mais quentes do período, quando o mundo viu a prisão do incrivelmente rico e obeso Kim Dotcom, fundador do site de troca de arquivos digitais Megaupload e o Congresso norte-americano discutia a SOPA, lei antipirataria que, pelo poder econômico e político dos EUA, teme-se, tornar-se-á inevitavelmente uma espécie de padrão a partir de onde todos os outros países civilizados discutirão a sua legislação autoral para mídias digitais.

Talvez tenha algo de oportunismo publicitário na escolha do momento certo, mas a publicidade e seu senso de ocasião é apenas um elemento para uma boa estratégia de marketing. Devemos descontar de imediato tal leviandade, antes de tudo, por respeito à personalidade do escritor – as correntes de opinião mudam com o tempo e um sujeito bem sucedido como ele não poderia sê-lo se agisse por mera resposta a correntes de opinião, mobile qual piuma al vento.

Não há qualquer resquício de saudosismo hippie, bom mocismo politicamente correto ou sensacionalismo publicitário na chamada de ordem de Paulo Coelho para que seja pirateado tudo que escreveu. O que há é método.

Ao debruçar sobre seus porquês qualquer um perceberá que para fazer o que faz, ao contrário dos nossos analistas mais sabichões, o escritor se atém a fatos – e como bom mago que é, não os esconde. Em 1999, Paulo Coelho era publicado na Rússia com uma tiragem de cerca de 3000 exemplares, prejudicada pelo alto preço do papel; ao descobrir uma versão pirata online, a torna imediatamente pública em seu próprio site – e quando a crise do papel acaba, um ano depois, percebe que suas vendas sobem ao volume de mais de 10.000 cópias. Desde então suas vendas só têm aumentado, chegando, na Rússia, a quase 12 milhões de exemplares. Neste processo, o que chama sua atenção foi o fato de saber, através de encontros casuais, que muitas pessoas travaram contato com sua obra primeiramente através das edições piratas – inclusive aquelas veiculadas online!

Sua explicação para esta realidade mostra uma sensibilidade particular para entender a natureza do produto cultural. Paulo Coelho defende que, à diferença de outros bens de consumo, um objeto cultural não se resume aos seus elementos materiais mas pelo seu valor imaterial. E este valor imaterial é, também, afetivo. É isso que, de alguma maneira, segue preservado apenas em experiências específicas e faz com que a música não se resuma à sonoridade do disco, e o teatro à imagem da tela. Eles são coisas diferentes que prevêem formas específicas de experiência.

Já se pensou que a foto acabaria com a pintura, o gramofone com a sala de concerto, o cinema com o teatro. Hoje, mesmo com a volta do vinil, muitos ainda advogam que o youtube vai acabar com a indústria fonográfica. Mas o que muitos chamam de extinção é apenas uma radical transformação: uma nova tecnologia dificilmente esgota as potencialidades de outra. Talvez jamais ouçamos música como antigamente, mas o fluxo dos museus, das salas de concerto, a proliferação de livrarias e cinemas já deveriam nos deixar desconfiados. É muito provável que hoje tenhamos maior público para cada uma dessas velhas atividades que em toda história da cultura.

A boa percepção de Paulo Coelho foi compreender que o maior potencial de redes sociais e sites de compartilhamento, a natureza mesma destes meios, é funcionar como canal divulgação – e não de distribuição. Estas são duas etapas distintas da cadeia produtiva. Podemos imaginar que para o escritor a internet jamais substituirá a experiência da leitura física de um livro de papel: não há Ipad que suporte uma rasura. A aposta de Paulo Coelho parece ser que a natureza da pirataria pela internet impacte apenas – quando tratando de objetos culturais – como uma apresentação, uma antecipação da experiência.

Pode sim haver algum risco nisso tudo. No caso específico do livro, imagino que seja um risco calculado; afinal, livros e publicações preservam uma vantagem evidente frente a tecnologias eletrônicas. Já bem lembrou o Millôr, livro não enguiça.

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