Síria em Transe – Evento HOJE!

Hoje teremos a segunda edição do evento Contradicta, que busca promover o diálogo inteligente e a conversa de alto nível no meio cultural paulistano (em breve também em outros estados!).

Tendo em vista os eventos que desde 2011 se desenrolam no Oriente Médio, a que se convencionou chamar de Primavera Árabe, nesta segunda edição do bate-bapo o tema é político. O historiador Plínio Freire Gomes, autor de Um herege vai ao paraíso (Cia. das Letras, 1997), fala sobre a história e o estado atual da Síria, expandindo questões e temáticas de seu artigo “Síria em Transe”, publicado na Dicta 08. Conversará com ele o jornalista e mestre em Ciências Políticas Fábio Santos, que foi editor do site e da revista Primeira Leitura e também editor-chefe da revista República, além de ter trabalhado nas redações de O Globo e Folha de S. Paulo.

O bate-papo terá início às 20:00 na Livraria da Vila da Al. Lorena, 1731, São Paulo. Mediando a conversa estará o professor de Direito e pensador Marcus Boeira. A entrada é franca e todos são bem-vindos, não só a assistir como a participar!

Segue, abaixo, na íntegra, o artigo “Síria em Transe” de Plínio Gomes.

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Síria em Transe

Plínio Gomes

Aos treze anos de idade Hamza al-Khatib, cidadão sírio natural de Daraa, transformou-se no portador de uma mensagem macabra. Após tomar parte em manifestação contra o ditador Bashar al-Assad, foi preso, torturado e morto pelo serviço secreto. Semanas mais tarde seu corpo foi devolvido à família num saco plástico. Procedeu-se a uma autópsia clandestina, cuja filmagem foi publicada na internet. A cena tem início com uma voz invocando o nome de Alá e enumera os sinais de violência espalhados pelo corpo conforme a câmera os mostra. Na altura do peito nota-se uma área carbonizada e a perfuração presumivelmente causada por um projétil. Sobre as genitais havia um pano, que agora é retirado. O menino fora castrado.

O que significa isso? Qual lógica de poder está por trás da mutilação? O gesto não parece destinado apenas à família de Hamza ou à cidade de Daraa. Seu verdadeiro objetivo é conter, pela via do terror, o movimento popular que vem abalando o Oriente Médio. Seria, por assim dizer, a resposta local à chamada Primavera Árabe. O órgão viril costuma estar associado a um tipo preciso de culpa – a traição. Ora, se é assim, amputar o órgão viril de um menino equivale a sugerir que não há “traidor” imune ao castigo. A mensagem é, portanto, fácil de decifrar: o regime está pronto a suprimir, a extirpar mesmo, quem quer que o “traia”.

Soa perturbador que responda-se ao protesto não tanto com a repressão, e sim com a vingança. Tem que haver algo profundamente errado para que um dado de ordem política (o dissenso) entre em curto-circuito com outro de ordem pessoal (a infidelidade). É o sintoma de um equilíbrio forçado que agora, diante da reivindicação por liberdade, chegou ao impasse. Como veremos a seguir, essa incapacidade de administrar a mudança deriva do esvaziamento institucional que viabilizou o predomínio da família Assad sobre o Estado. Estamos falando de um regime imobilizado por redes clientelistas, pelo inchaço do serviço secreto e pela personalização do poder. Paradoxalmente, este estilo arcaico de mandar nasceu nos anos 60, como fruto de outro movimento transversal, o movimento pan-árabe, marcado por uma ideologia nacionalista, modernizante e secular. Para se entender como se deu a passagem entre o espírito inovador daquela época e o transe de agora precisamos examinar a Síria – suas peculiaridades, suas contradições, sua história.

A Síria dos Assad

Estamos habituados a associar os países do Oriente Médio a ditaduras sanguinárias. Daí que mesmo um caso como o descrito acima não chegue propriamente a nos surpreender. Seu enredo se repete há anos na região, e pode parecer irrelevante focalizar a dinâmica interna de um regime fechado e anacrônico. A regra, de fato, é priorizar as interpretações elaboradas a partir de fora. Fala-se muito, por exemplo, nas velhas culpas do imperialismo ou ainda no avanço do fundamentalismo islâmico. Mas adotar estes axiomas implicaria “orientalizar” a Síria. Ou seja, cair num quadro analítico que apenas reelabora nossos estereótipos sobre os árabes. A conclusão seria, querendo ou não, tomar o autoritarismo como resultado de certas tendências culturais “inatas”, tais como a “misoginia”, o “fanatismo”, a “submissão tribal”, o “atraso”.

Essa visão simplificadora se desfaz quando examinamos a realidade síria. Estamos falando de um país cheio de contrastes, tanto do ponto de vista paisagístico quanto humano. Um país dividido entre planícies desérticas, oásis, rios imponentes, áreas pastoris e montanhas de densa cobertura bosquiva. No plano econômico, tais características geraram setores produtivos que vão do nomadismo beduíno à indústria. Mas, acima de tudo, a Síria possui núcleos urbanos entre os mais antigos do mundo, cujos templos, hamans e souqs dão vida a milenares dinâmicas de interação humana. Conta-se inclusive de famílias que se orgulham de carregar na árvore genealógica o patrimônio de trinta e cinco civilizações. Embora seja impossível documentar tal linhagem, ela é indicativa da extratificação cultural que investiu o país ao longo da história. Situado entre o Mediterrâneo e a Mesopotâmia, o território sírio é um autêntico médio-oriente. Eis a origem das divisões sectárias que hoje marcam aquela sociedade. Ao lado da maioria de nativos árabes sunitas (59% da população), a Síria abriga vários grupos minoritários: xiitas, alauitas, ismaelitas, cristãos, drusos, curdos, armênios, palestinos, yazidis e judeus.

Passemos agora ao contexto no qual o atual regime tomou forma. Nosso ponto de partida são os anos que se seguiram à crise de Suez, quando os ecos do triunfo egípcio ainda ressoavam na consciência das jovens nações árabes. Parecia ser possível, na época, confrontar as ex-potências coloniais e retirar a região do subdesenvolvimento por meio de uma série de reformas estatizantes. Em linhas gerais, o que se pretendia era nacionalizar bancos e companhias de petróleo para empregar a renda em políticas de estímulo à produção local, em obras de infraestrutura, em garantias trabalhistas, em escolaridade e em saúde para todos.

Restava saber como aplicar este programa de modo sustentável. A única força suficientemente organizada para tomar a iniciativa política eram os militares. E o movimento na Síria assumiu a fachada partidária do Ba’ath (“Ressurreição”), derrubando a ordem constitucional em 1963. Mas ascender ao topo do poder era mais fácil que equilibrar-se nele. Apesar da retórica de confraternização nacional, a diversidade do país acabou se refletindo dentro do governo. Os rachas se sucediam, alimentando as alas mais radicais e inspirando a formação de milícias revolucionárias. Nas suas hesitações, o novo regime produziu alguns efeitos duráveis. O mais notório foi a promulgação da Lei de Emergência (a mesma que Bashar viria a “abolir” na tentativa de conter a Primavera Árabe). Outro efeito foi a aproximação tática e militar à União Soviética, vínculo hoje herdado pela Rússia. Por fim, o avanço das medidas de expropriação e outros arbítrios favoreceram a transferência de capitais privados ao Líbano.

Enquanto isso, no cenário internacional, dois conflitos envolvendo a Síria colocariam em xeque a credibilidade do governo. O primeiro foi a Guerra dos Seis Dias, que resultou na perda das colinas do Golã para Israel (1967). O segundo foi o apoio aos palestinos contra a onda repressiva do Setembro Negro, que conduziu a uma fracassada intervenção em território jordaniano (1970). Essa dupla derrota exacerbou a oposição interna à ala dominante (pró-soviética) e abriu caminho a de uma figura de pouca nota. Lupus in fabula é o alauita e general da aeronáutica Hafez al-Assad.

Vale a pena comentar sua trajetória. Sua origem não era das mais brilhantes. Os alauitas foram relegados, ao longo de séculos, a uma estreita e irregular faixa de montanhas situadas na zona costeira da Síria. Era uma comunidade deixada à margem das redes comerciais e dos centros agrícolas mais promissores. Quando os membros da seita imigravam para as cidades em busca de trabalho, o melhor que almejavam era o serviço doméstico. Pode-se então presumir que o jovem Hafez não galgou a hierarquia militar apenas estudando a cartilha nacionalista do Ba’ath. Na verdade, há boas razões para se crer que ele tivesse amigos influentes. Consta que o nome de seu pai figurava já nos anos 30 num abaixo-assinado a favor das forças de ocupação francesa no país.

Esse não é o único dado embaraçoso da sua biografia. Hafez foi o comandante militar responsável pelas derrotas para Israel e Jordânia. Mais ainda, foi novamente ele, a permitir que os muezins de Damasco se pronunciassem contra o esquerdismo dominante. Em novembro de 1970, com o desgaste do governo no auge, encarcerou os rivais e tomou sozinho o poder.

Para se compreender o sucesso desta manobra, batizada de “Revolução Corretiva”, precisamos voltar atrás. Desde sua independência em 1946, a Síria sempre enfrentou o fantasma da incerteza. Dizer que o golpe de 63 rompeu a “ordem constitucional” é uma simplificação. Até aquela data, os gabinetes eleitos se sucediam com periodicidade quase semestral – sendo às vezes intercalados por temporadas autoritárias. Era praticamente impossível estabelecer uma fórmula política coerente em meio a tantas variáveis econômicas e religiosas.

Eis por que a ascenção do novo déspota parecia atraente. Hafez, o anti-soviético, contentava a burguesia e as potências ocidentais ao neutralizar o fermento radical do nacionalismo (as companhias de petróleo jamais foram tocadas nem ameaçadas sob seu domínio). E ainda Hafez, o alauita, contentava as minorias religiosas ao contrabalançar o peso excessivo dos sunitas. Havia aqueles que se sentiram duplamente beneficiados, como a classe média cristã.

Não é tudo. A grande obra de Hafez foi institucionalizar um traço característico do mundo árabe – o wasta –, que poderíamos traduzir por “pistolão”. O Ba’ath deixou então de ser a organização de uma elite de militantes. Suas portas se abriram a milhões de filiados, de todas origens e classes, para se transformar numa autêntica confederação do fisiologismo nacional. A partir de agora era através do Ba’ath que cada sírio mobilizaria sua rede pessoal de influências para garantir favores do governo. Isso valia para a obtenção de postos no funcionalismo, evidentemente; mas também para uma vastíssima nebulosa de concessões oficiais: licenças, patentes, vistos, permissões de viagem, tratamento médico privilegiado, suspensões do serviço militar, outorgas judiciárias etc. A estrutura do organismo, ramificada em incontáveis instâncias burocráticas, transformou a ditadura numa experiência cotidiana, capilar.

Tudo era feito para convergir na pessoa do ditador. Hafez foi hábil em incorporar uma lição que seus ex-camaradas de partido não tiveram tempo de pôr em prática: a lição do realismo socialista, mais exatamente do culto à personalidade, de stalinista memória. Após a “Revolução Corretiva”, os homens do regime passavam de porta em porta obrigando a população a colocar na parede a fotografia do ditador. Enquanto isso, nas escolas, a memorização dos discursos presidenciais convertia-se em matéria obrigatória. O sentido de tais práticas era criar uma aura de sacralidade em torno da figura do Raís. Como uma bandeira, um hino, Hafez obstinou-se em encarnar o espírito da nação.

É bom notar que o clientelismo piramidal, tiranocêntrico, não é exclusividade da Síria. Suas raízes devem ser buscadas num passado muito remoto, fora do âmbito deste artigo. Digamos apenas que derivam do processo de feudalização ligado ao declínio da civilização islâmica a partir do século XIII. Mal comparando, institucionalizar o wasta equivaleria a elevar o nosso coronelismo (só que de espessura temporal bem maior) à condição de entidade governamental, com os recursos policiais, legais e operacionais de um Estado moderno. O fato é que o sistema em questão virou o desdobramento natural dos movimentos nacionalistas e se alastrou por todo Oriente Médio. Derrubá-lo é a verdadeira razão de ser – e o desafio – da Primavera Árabe.

A Síria contra os Assad

Obviamente o autoaplauso era demasiado postiço para ter credibilidade. Hafez não demorou a perceber que era mais temido que amado, e o uso da força se tornou primordial. Foi assim que nasceu o legendário serviço de inteligência sírio. Ainda que obtuso e mal treinado, trata-se de um organismo composto por ao menos dezoito órgãos independentes e devotado ao que poderíamos chamar de “policiamento secreto-ostensivo”. Seus homens à paisana – os mukhabarat – incutem medo precisamente porque são facilmente identificáveis. Quando o cidadão entra neste circuito, corre o risco de nunca mais sair: conforme diz a piada, sempre há um mukhabarat precisando saber o que a agência rival acaba de descobrir.

Faltava entender até que ponto o regime contaria com a complacência da maioria sunita. Havia já, desde a independência, um movimento que se contrapunha aos nacionalistas por reivindicar a primazia do Corão na organização do Estado. Vimos antes que este componente conservador servira de biombo à manobra com a qual Hafez chegou ao poder. Agora porém a Irmandade Muçulmana se tornaria o principal foco de resistência no país, apelando inclusive (aparentemente com apoio iraquiano) a ações de guerrilha que culminaram num atentado falido ao ditador em 1980. A Irmandade também canalizou o antagonismo de um centro urbano mais tradicional, onde o amálgama entre economia agrária e ortodoxia religiosa nunca se acomodou ao secularismo de Damasco. Estamos naturalmente falando de Hama, que, em fevereiro de 1982, protagonizou um levante armado com o objetivo de desencadear a luta revolucionária e substituir o Ba’ath pelo Islã.

A reação foi impiedosa. Sob o comando do irmão de Hafez, Rifaat al-Assad, o exército cercou a cidade e submeteu-a ao fogo da artilharia durante três semanas. Em seguida, com apoio de unidades blindadas, os soldados avançaram sobre as ruínas para liquidar os sobreviventes. A operação não se ocupou em distinguir linhas sectárias ou políticas: o critério era massacrar os habitantes – ponto. São incertas as cifras daqueles dias, mas estima-se algo entre 20 e 40 mil mortos.

As lições do banho de sangue foram logo assimiladas. O apelo da religião como cimento político fracassou; e a Irmandade, fraturada entre jihadistas e pietistas, acabou por se desarticular no exílio. Quanto à elite sunita, ao invés de reabrir o jogo pelo poder, preferiu apostar na fidelidade ao Raís, atitude que consolidou sua posição, reforçando a natureza clientelar do regime. Uma vez cancelada a proposta mais radical (e retrógrada) contra o status quo, o país entrou em letargia.

Quase vinte anos depois, esse quadro daria provas de solidez quando se delineou o processo sucessório. Os regimes da região, é bom lembrar, o Egito, a Líbia, o Iraque, a Jordânia, a Tunísia, também pareciam destinados a se perpetuar em arranjos de tipo dinástico. Fato está que, por ocasião da morte de Hafez, a Síria celebrou sem um suspiro de protesto a passagem da presidência de pai para filho. Bashar assumiu o cargo legitimado por uma ideologia de Estado cujo eixo central era o “autoritarismo modernizador”: de um lado a pacificação forçada das relações sociais e, de outro, medidas favoráveis à prosperidade material e ao desenvolvimento. Nestes termos, governar a Síria significava conservar o Pacto de Estabilidade forjado entre o aparato militar e a oligarquia.

Ora, é fácil perceber que o tempo se encarregaria de comprometer tal equilíbrio. O primeiro sinal de mudança a interpelar o regime foram as pressões contra a política protecionista. Vivia-se na época a abertura dos mercados do extinto império soviético; parecia quase cômico sustentar um isolacionismo que bloqueava o comércio exterior em nome da produção local. Os sírios recorriam ao contrabando até para comprar itens elementares como remédios, lâmpadas ou bananas. Atenuar essas restrições tornou-se uma reivindicação prioritária. De quebra, favoreceriam os negócios do próprio Bashar.

Vem daí a disposição reformista que tomou a Síria a partir de 2000. Pilotada por decreto, a operação consistia em autorizar novos ramos empresariais, permitir a instalação de bancos estrangeiros (sauditas) e a importação de manufaturados (chineses e turcos), para não mencionar o acesso à telecomunicação móvel e digital (o proprietário da concessão é ele, Bashar). Os negócios foram fatiados em monopólios e distribuídos por indicação. Ainda assim, a reforma atendia a uma demanda reprimida há décadas e obteve ótima aceitação popular.

Problema é que avantajava os comerciantes e os proprietários de terra em detrimento dos quartéis. Não custa observar que o contrabando, cuja principal porta de ingresso era a fronteira libanesa, sempre foi um business castrense. Pior ainda, o fim da ocupação do Líbano, em 2005, tirou dos militares o ganho proporcionado pela espoliação da população vizinha. Então, à medida que a elite fazia dinheiro, Bashar precisou contentar o ranque médio das tropas com uma série de pequenos privilégios (distribuição de carros de luxo, atribuição de conscritos para uso privado, impunidade a abusos de poder etc.).

Logo voltaremos a esse aspecto. Antes caberia destacar o crescente aburguesamento da sociedade. A abertura do mercado propiciou a intensificação do consumo, em particular nos setores automobilístico e eletrônico. Propiciou também a emergência de segmentos com valores próprios (adolescentes, universitários, empregados da iniciativa privada). Certa inclinação filo-ocidental difundiu-se pelos centros urbanos, criando na Síria um cosmopolitismo raro na região.

Inicialmente o esbanjamento foi compensado pelo reingresso dos capitais investidos no Líbano e pela recém-inaugarada rede bancária. Em pouco tempo, porém, ficou claro que o alargamento do fosso financeiro não estava sendo coberto pelo aumento da produtividade. As taxas de desemprego permaneciam inalteradas; os salários cronicamente baixos; e a indústria quase inexistente. A crise de 2008 também pesou na equação, porque a presença do capital estrangeiro foi redimensionada e o turismo declinou. Enquanto isso o Estado, amarrado por seus compromissos clientelistas, mostrava-se incapaz de reprogramar o país em termos de eficiência, transparência e muito menos democracia. O “reformismo” de Bashar se traduziu, na realidade, em desenvolvimento assimétrico e em esgarçamento do tecido social.

Como sabemos, o estopim da revolta veio de fora. Mas o local e a circunstância em que a Primavera Árabe chegou ao país são altamente reveladores. Tudo começou em Daraa, a cidade do pequeno Hamza al-Khatib, e tem como protagonista a Síria dos excluídos. A área em questão se situa na divisa com a Jordânia, sujeita a forte presença militar. Acobertados pelo mandato de vigiar a fronteira, os mukhabarat vinham promovendo um esquema de extorsão ligado à regulamentação da propriedade agrária. Desejo de revanche, talvez, frustração por uma época que respeita mais o dinheiro do que as armas. Se a oligarquia pode se beneficiar com os monopólios, o serviço secreto precisa agir a seu modo instituíndo miniditaduras.

O mal-estar aflorou em março de 2011 sob a forma de inscrições pichadas nos muros. Não se podia tolerar aquela afronta. Pouco importava que os responsáveis fossem adolescentes. Pouco importava que as frases se inspirassem em imagens divulgadas em todo o mundo pela televisão. Importava que eram slogans por liberdade: os jovens foram presos e tiveram as unhas arrancadas. Para o povo sírio era o início de um estado de suspensão, de um limbo. Que a insurreição tenha eclodido em vários pontos simultaneamente, em dezenas de cidades e vilarejos, é sintomático do grau de decomposição do sistema. É como se os diferentes casos de desmando, de injustiça e de humilhação se fundissem na percepção de um mal comum. Para uma parcela crescente da população, a ditadura dos Assad não é mais garantia da estabilidade e sim seu principal obstáculo. O protesto continua a se confrontar com a vingança; e o ciclo, como num pesadelo, apenas repropõe as contradições do ponto de partida. Dada a inexistência de veículos institucionais de mediação, o país entrou em transe.

Não tentarei prever a resolução do impasse. Pretendi apenas examinar o funcionamento de uma configuração autoritária. Porém três pontos da análise feita talvez ajudem a entender os rumos que se abrem para a Síria (e também – por que não? – para outros países da região). O primeiro diz respeito ao descolamento entre a oligarquia e o aparato militar, privando o regime de sua base política. O segundo é a personalização do poder, que alimenta uma peculiar dialética da infidelidade: o descontentamento popular converge para a figura do tirano; e a reação deste consiste em transformar as forças da ordem em foras-da-lei, em jagunços, pulverizando o Estado. Enfim, o terceiro ponto remete a uma entidade mais sutil e difusa, mais amorfa, que não precisa de Bashar nem de seu Estado para continuar a existir – o wasta. Após as experiências estatizantes do passado, a lógica clientelar árabe poderia ser perpetuada pelos mesmos monopólios que agora caracterizam a economia global. Ela já se adaptou antes à modernidade; não é inverossímil que o faça outra vez.

2 comentários em “Síria em Transe – Evento HOJE!

  1. Que me perdoem a ignorância. Mas o articulista poderia esclarecer se o menino do texto não é o mesmo que depois se constatou que foi sequestrado pelos “rebeldes” e cujos pais foram considerados por tais criaturas como “traidores”?

    Ou é outro, desta feita com o Mal efetivado pelos Assad?

    É possível esclarecer?

  2. Entre os atos de crueldade com prisioneiros, os que mais chocam são os estupros.

    É um caso de persistência institucional se pensarmos que essa forma humilhante de tratar o inimigo foi instalada à séculos na região. Desde os tempos de Assurbanípal, sabemos que era prática comum submeter os prisioneiros de guerra a humilhações sexuais, como forma de afirmação do vitorioso sobre o vencido. E como sabemos isso? É que o próprio Assurbanípal, deixou seu legado inscrito nos murais de seus palácios, narrando e quantificando os feitos de suas glórias, suas conquistas militares, e atos de crueldade com as populações vencidas.

    Esse lado negro da relação entre vencedor e vencido, está emergindo novamente na região, dando uma pista de ser uma prática latente na região, e que emerge de tempos em tempos.

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