Alvaro Siviero, cujos artigos já agraciaram em duas ocasiões as páginas da Dicta, faz considerações em defesa de Lang Lang. De André Rieu, nem menção. Enfim, um mérito a vinda dos dois ilustres músicos teve, independentemente do mérito de cada um: suscitou o debate sobre música no meio editorial entre pessoas de alto nível.
Não tenho o menor gabarito para participar dessa discussão em pé de igualdade. Posso, contudo, dar minha impressão sobre outro tema do texto de Alvaro Siviero: se para Lang Lang ele foi só elogios, para o público paulistano sobraram críticas. E não era para menos. Etiqueta de concerto não é nosso forte.
Não podemos ser artificialmente puristas nesse ponto. A etiqueta é muito mais recente que o concerto. No século XVIII, era normal que as pessoas falassem, aplaudissem e até comessem durante a apresentação. Mozart ficava lisonjeado com os aplausos espontâneos que hoje seriam vistos como totalmente inadequados.
Ademais, a etiqueta pode servir como uma barreira cruel para separar iniciados e postulantes ao seleto grupo dos conhecedores de música erudita. Aplaudiu na pausa entre movimentos? Tsk tsk. Ainda tem muito a aprender; deve ter achado que era o fim da obra, que inculto! Claramente nunca veio a um concerto… Ou pelo menos é isso que eu imagino que se passe nas mentes a me julgar em silêncio.
E é esse desejo de se destacar da massa ignara (ou pelo menos essa é minha interpretação), de mostrar que se é parte do clubinho, que dá origem a um fenômeno bizarro de nossas salas de concerto que Siviero aponta e que eu também já notei muitas vezes. Todo mundo sabe que não se deve fazer barulhos durante a execução da música. Por isso, talvez como modo de mostrar a todos que se está por dentro dessa regra, a pausa entre os movimentos de uma obra – aquela mesma em que seria deselegante aplaudir – é como que um sinal verde para se fazer outros ruídos, especialmente se envolverem o nariz e a garganta.
Sim, quem vai a concertos em São Paulo (será que o mesmo se aplica a outras cidades?) sabe que, nos curtos intervalos entre os movimentos de uma música, nossos ouvidos serão brindados com um concerto paralelo de tosses, pigarros e escarradas intensas. Sinto-me num retiro de tuberculosos. Quem sabe possamos ressuscitar a venerável tradição da cuspideira como complemento dessa convenção, passando-a de colo em colo nos intervalos.
Não me digam que é o ar poluído da cidade; eu respiro o mesmo ar, meu sistema respiratório é péssimo, e lá estou, mudo, como um verdadeiro insider dentre os insiders, no máximo preparado para bater palmas se alguém liderar os aplausos, indicando que a música acabou mesmo. A resposta não estará nas causas físicas. Alguém precisa, urgente, descobrir os motivos psicológicos, morais e espirituais que levam o paulistano culto a escarrar perante a orquestra, e que tipo de estímulos ele precisaria para deixar esse hábito de lado.
Ouvi dizer que Artur Rubinstein fez em algum momento o seguinte comentário: “em todo mundo, as pessoas com problemas respiratórios vão ao médico; aqui em Tel Aviv, elas vêm ao meu concerto!” Si non é vero, é ben’ trovato.
André Rieu subtrai trechos das composições (vide a horripilante adaptação do Bolero de Ravel que tem no youtube). É um arranjador de qualidade duvidosa. Lang Lang não faz isso, embora ele seja muito espalhafatoso e exibicionista.
Eu não tenho nada contra adaptação, porém, não gostei de nenhuma de Rieu.
A propósito de adaptações, acho a leitura de Emerson, Lake and Palmer para Pictures at an Exhibition de Mussorgsky excelente. A diferença entre ELP e Rieu é basicamente na proposta. Rieu parece esconder de seu público que o que ele faz é adaptação, ao passo que ELP não esconde isso de ninguém.