A decadência da Filosofia Moral

filomoral

 

 

Gustavo França*

Quando se fala em pensamento moral em nossos dias, sem dúvida, a primeira referência que nos vem à mente é o famigerado debate entre liberais e comunitaristas. Tanto um lado quanto o outro comportam uma gama variadíssima de autores com ideias bem díspares, mas dotadas de uma linha comum. Com honrosas exceções (como Alasdair MacIntyre (1929-) e Charles Taylor (1931-)), quando esses filósofos se referem a Ética ou a justiça, na verdade, não fazem mais do que reduzi-las a temas políticos. Arranjos institucionais do Estado, políticas de distribuição de renda, legitimação da interferência do poder público nas esferas individuais, esses temas e outros do mesmo naipe são a associação imediata quando alguém anuncia um debate moral. Não faltam autores que batizem de Ética dissertações sobre a mais equânime estrutura tributária de um país.

É extremamente preocupante o fato de acharmos que esse tipo de rasas considerações políticas (de que “Uma teoria da justiça”, de John Rawls (1921-2002), se tornou obra arquetípica) é verdadeira Filosofia Moral. Para entender o que eu digo, basta comparar essas obras contemporâneas com a “Ética a Nicômaco”, de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C), com a segunda parte da “Suma Teológica”, de Santo Tomás de Aquino (1225-1274) (o mais profundo e completo tratado de Ética já escrito), ou com a “Fundamentação da metafísica dos costumes” e a “Metafísica dos costumes”, de Immanuel Kant (1724-1804), livros clássicos e pilares fundantes das normas eternas da conduta humana.

 A causa do monumental abismo entre uns e outros é que esses últimos, de fato, tratam do fenômeno moral: seus fundamentos metafísicos, a constituição da pessoa humana e o valor das ações individuais, assuntos esquecidos na pseudoética dos nossos tempos. A Ética não pode lidar com problemas concretos de Política sem uma compreensão abrangente da vida e da ação humanas e de suas leis universais. Os próprios pressupostos que envolvem a atuação de um poder político, a fundamentação do Estado e de seu corpo jurídico só podem advir de uma investigação profunda acerca da sociabilidade humana e dos princípios transcendentais da organização da vida em comunidade.

Uma moral que não sabe responder sobre o dever de uma pessoa de socorrer um irmão necessitado mediante a esmola e o mandamento da solidariedade não tem condições de discorrer a sério sobre estrutura tributária e distribuição de renda. Ter a moral abdicado de prescrever a conduta individual, fincando bases na Metafísica e na Antropologia, e saltado diretamente para discutir contingências políticas de ocasião (agora vistas como flutuando no ar, já que desprovidas de seus princípios universais) é o que gera a predominância de chavões que brincam inadvertidamente com termos filosóficos, arrancados do contexto de um pensamento completo e, por isso, sem verdadeiro significado, como, por exemplo, a “sobreposição do justo sobre o bem” (como se isso não fosse um absurdo metafísico).

Há pouco tempo, tive que estudar, por motivos ligados à elaboração de minha monografia, a polêmica de Max Scheler (1874-1928) contra Kant. Chega a dar pena comparar esse verdadeiro debate filosófico com a tão badalada disputa entre Rawls e Nozick, por exemplo. Enquanto os primeiros se debruçam sobre os fundamentos últimos da ética, sobre os conceitos de lei, de bens, de fins, de valores e seu lugar na concepção da moralidade, além das distinções gnosiológicas entre forma e matéria, a priori e a posteriori, os últimos não conseguem ultrapassar uma picuinha sobre a distribuição dos bens econômicos de uma sociedade. O decréscimo na profundidade do pensamento moral é gritante.

Creio que poderíamos encontrar a origem disso na influência rousseauniana para a lamentável confusão entre ética pública e ética do Estado. Rousseau concebeu uma sociedade em que desapareceriam todas as instâncias intermediárias entre cada indivíduo e o poder público central, restando a vida social reduzida às decisões fundamentais de política pública. Não é preciso grande esforço imaginativo para vislumbrar aí a dissolução da sociedade no Estado (e o grande sonho de Rousseau, na verdade, era a dissolução do indivíduo no Estado), com o consequentemente redimensionamento da moral (dos planos da consciência íntima da pessoa humana e das articulações comunitárias naturais) para abranger simplesmente projetos de administração central de um povo.

Essa tendência está muito bem refletida, por exemplo, em Jürgen Habermas (1929-) e em suas ideias de “patriotismo constitucional” ou de “cultura política geral”, que representam um patrimônio “moral” comum a todos os indivíduos de uma coletividade, com uma existência apartada dos laços culturais e das instituições comunitárias produzidas por sua interação espontânea ao longo dos tempos. Ainda que, algumas vezes, ele e seus discípulos insistam expressamente que sua ética pública se difere de uma ética do Estado, sua noção de sociedade, sem que eles mesmos o percebam, é de uma sociedade sem sociedade, uma mera instância decisória das ações do aparelho de poder.

Concluindo, é preciso deixar claro que não estou afirmando que a Ética não trate ou não deva tratar de questões políticas. A Filosofia Política nasce da Filosofia Moral e só assim pode ser compreendida. O problema é que teorias políticas devem ser consequência de uma cosmovisão ética, capaz de justificá-las em todas as suas bases últimas, e jamais ideias solitárias lançadas ao vento, indiferentes a ela.

Se o que caracteriza definitivamente a Filosofia é a sua busca por aquilo que é universal e eterno, o que Rawls, Dworkin, Nozick, Habermas, Adela Cortina, Amartya Sen, Walzer, Kymlicka (que só fazem oferecer reflexões desprovidas de universalidade, incompreensíveis fora de pressupostos contextuais contemporâneos, pressupostos cristalizados dogmaticamente e escondidos em raciocínios que se afirmam independentes deles) nos trazem dificilmente pode ser considerado Filosofia Moral. Perto de Aristóteles, de Tomás, de Kant ou de Scheler, são, quando muito, comentaristas de bancada de telejornal. Se quisermos reconstruir uma sociedade sã, capaz de refletir sobre as misérias humanas e sobre os ideais morais, precisamos enxergar além de dificuldades pragmáticas de ocasião e lançar o nosso olhar sobre o horizonte do bem eterno, em cuja contemplação andaram metidos os pais da civilização.

*Gustavo França é graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista Dicta& Contradicta

3 comentários em “A decadência da Filosofia Moral

  1. “Ser consequente é a obrigação principal do filósofo; todavia, é o que mais raramente se observa. As antigas escolas gregas nos apresentam muitos exemplos dessas virtudes, as quais não encontramos nesta nossa época sincretista, em que se constroem sistemas de coligação, sem nenhuma solidez ou honestidade, porque convém mais a um público que se satisfaz com saber de tudo um pouco, sem saber, afinal, coisa alguma, porém pretendendo tratar de todos os assuntos.” (Kant, Crítica da Razão Prática)

  2. “Se o que caracteriza definitivamente a Filosofia é a sua busca por aquilo que é universal…”
    Você escolheu considerar isso como verdade. Discordo, ou melhor, discordo tendo em vista o resto do seu texto. Entendi que você acredita na metafísica, em verdades eternas, moral absoluta e coisas do gênero. Com todo o respeito, o problema da metafísica, na minha concepção (fruto das minhas leituras filosóficas) é que ela não existe, é perfumaria.
    A real quebra com a tradição metafísica começou com Nietzsche (apesar de Nietzsche ter se “traído” com a “vontade de poder”), grande iconoclasta, proclamador da “morte de deus” (desconsideremos aqui as suas doenças mentais e problemas pessoais, pois ainda assim ele foi um grande pensador). A evolução dessa tradição, que veio a desembocar na filosofia da linguagem, já refutou a ideia de verdades em si, isoladas da linguagem e da tradição, que funcionam mais como quadros, pintados com as ideias de uns e outros, sempre buscando o status de verdades universais e atemporais.
    As únicas verdades morais talvez sejam as dinâmicas de “produção” das verdades passageiras (ou seja, não seriam propriamente morais). Até na física, área na qual avançam os estudos sobre burcos negros e é perseguida a unificação da relatividade com a teoria quântica, já vislumbramos a possibilidade de que as próprias leis da física sejam diferentes em outros lugares, chamados de singularidades, no interior dos buracos negros.
    O homem não é eterno. O homem é finito e não existem leis universais que governam os homens. Nem por isso eu saio na rua matando pessoas e nem tenho que usar uma muleta filosófica (metafísica) para acreditar na possibilidade de uma moral sólida, que pode muito bem ter outras bases, menos parecidas com religião ou crença em entidades superiores. Não precismos de bases eternas para o comportamento humano. Pare e reflita sobre isso.
    Podem existir regras morais universais? É claro que eu não desconsidero que os seres humanos, onde quer que estejam, se organizarão de maneira semelhante e terão dinâmicas sociais semelhantes. Mas isso ocorre porque vivemos num planeta razoavelmente homogêneo – considerando o restou do universo – e somos todos de uma mesma espécie, cujos integrantes são programados, geneticamente, de forma quase idêntica, e que uma convivência pacífica é sempre mais vantajosa do ponto de vista econômico, social, pessoal. Não vou me estender mais… Acho que já deu pra entender.
    Sou um grande admirador da filosofia grega e estou lendo a obra completa de Platão. Adoro Kant, apesar de ainda não ter lido seus trabalhos, mas apenas os de comentadores. Não sou ateu, mas também não acredito em nenhum deus. Meu objetivo foi simplesmente dar minha opinião, que difere da sua.

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