O que é o liberal-totalitarismo? (parte 2)

 

dicta.a inveja

 

Marcos Paulo Fernandes de Araújo*

 

Como vínhamos de falar, os escritos de John Rawls podem ser encarados como um exemplar contemporâneo bastante representativo daquilo que havia chamado pensamento liberal-totalitário. Este modo de pensar tem como ponto de partida, como já dito, o erro metafísico da abstração total. Ele se consubstancia, na teoria política – e igualmente, daí, pretende fazê-lo na prática – em um projeto político que tem por base a revolta contra a realidade e a pretensão de reconstruí-la totalmente a partir da razão.

 

Todavia, antes de iniciarmos as considerações sobre o projeto político do autor, talvez convenha ressaltar qual seja o aspecto mais propositivo dele, isto é, aquilo em que ele se pretende apresentar como um melhoramento relativamente ao estado prévio das discussões sobre o direito e a justiça.

 

No caso de Uma teoria da justiça, a proposta de Rawls consiste justamente em “apresentar uma teoria da justiça que represente uma alternativa ao pensamento utilitarista em geral e, portanto, a todas as suas versões”[1], que, segundo ele, prescreveriam como meta da atividade social uma maximização do bem geral da sociedade, ou seja, da soma de satisfações desfrutada pelas pessoas, sem atentar à maneira como estas seriam distribuídas entre elas.

 

Tendo por base essa afirmação acerca da teoria que pretende desbastar, aponta como um dos propósitos declarados de seu projeto o de que “a violação da liberdade de poucos não possa ser justificada pelo bem maior compartilhado por muitos”[2]. Arremata afirmando que “em uma sociedade justa, as liberdades fundamentais são inquestionáveis e os direitos garantidos pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas nem ao cálculo dos interesses sociais”[3].

 

Segundo Rawls, na teoria utilitarista, o legislador ideal agiria fundamentalmente como um empresário, e isso se daria justamente em razão de que tal figura, ao calcular o saldo máximo de satisfação que seria a meta das leis elaboradas, apoiar-se-ia numa extensão indevida de um princípio de escolha projetado para um único ser humano, para a sociedade, fundindo todas as pessoas por meio de atos imaginativos do observador imparcial empático.[4] O utilitarismo, portanto, não levaria a sério a distinção entre as pessoas, segundo o autor de Uma teoria da justiça.

 

Pois bem: Rawls pretende ver superado esse suposto vício fundamental da teoria utilitarista, ao formular uma teoria da justiça que, em vez de considerar os princípios de escolha de um único ser humano, na sua totalidade, presume um pacto hipotético em que as “pessoas” irão aceitar, “de antemão, um princípio de liberdade igual, e sem conhecer os seus próprios objetivos específicos”[5]. Apesar de que diante de uma tal afirmação nossa “idéia intuitiva” seja vociferar um sonoro palavrão polissilábico composto, nossas reflexões ponderadas nos levam a crer que o melhor será dizer que nada poderia ser mais desprezível à pessoa, em sua singularidade, e em sua singular relacionalidade, do que tal formulação. Se há algo que não toma a sério as distinções entre pessoas é essa suposição, que as considera todas igualmente livres, num plano abstrato, isto é, igualmente indeterminadas, como um estratagema para justificar, contra todos os fatos, uma igual esfera de poder, ao argumento de que são todas igualmente capazes de escolher o bem.

 

De igual modo, deve-se precisar que a teoria de Rawls subverte, mais ainda que a teoria utilitarista, o são pensamento ético, na medida em que, se esta considera ser o justo um meio para maximizar o bem, o que já é errado, sua teoria faz muito pior, ao fazer uma instrumentalização contrária, e pretender ver o bem utilizado como ferramenta para obter “o justo”. Pois o bem é, de certa maneira, independente do justo, e não o contrário, na medida em que o justo é o bem de outro, e que se o conhece necessariamente a partir do bem de si, como demonstra o primeiro princípio específico da lei natural “todo ser vivo busca a conservação de sua vida”[6]. Porém Rawls dá por garantido que o bem de outro será atendido simplesmente se tornarmos mais indefinida sua identidade e mais indeterminadas suas aspirações.

 

Nada mais apropriado à figura do legislador rawlsiano, neste caso, do que o comentário de Voegelin acerca do sofista Pólo no Górgias: “Ele é o tipo de homem que irá piedosamente louvar o governo do direito e condenar o tirano, mas que fervorosamente inveja o tirano e não amaria nada mais do que sê-lo um ele próprio. Numa sociedade decadente, ele é o representante do grande reservatório de homens comuns que paralisam todos os esforços de ordem e proporcionam conivência popular na ascensão do tirano. ”[7] Ora, se no caso do utilitarismo, poderíamos configurar como despótica a pretensão do legislador ideal que pretendesse impor à sociedade sua visão de mundo através da imaginação empática, podemos configurar como totalitária a aspiração de Rawls, que pretende impor a visão moral de ninguém, visão moral a partir de lugar nenhum, ao resto da sociedade – sem imaginação empática, mas a partir de um Gedankenexperiment, de uma equação matemática.

 

Deste modo, vemos que o problema de Rawls com o utilitarismo não é o seu caráter instrumentalizador, mas, antes, a unidade da pessoa, ou, ainda, qualquer cosmovisão que constitua as preferências de uma pessoa. Ele confunde o desprezo pelo “bem-comum”, das teorias utilitaristas, com o apreço delas pelo “bem particular”, e acha que este está sempre contra aquele. Dessa forma, se o utilitarismo impõe sobre todos o bem de uma pessoa singular, mas possível, Rawls impõe um bem abstraído das pessoas reais, segundo a idéia que ele faz daquilo que deva servir a “qualquer pessoa selecionada ao acaso”[8], uma pessoa sem forma, sem princípios de ação, sem hierarquia de bens, uma pessoa que tem apenas indeterminações e… necessidades. Todavia, é impossível chegar ao bem-comum de uma comunidade sem passar pelo bem particular da pessoa. Isso foi afirmado expressamente por S. Tomás, que disse que “o bem de um só é anterior ao bem de muitos, que consurge a partir dos bens dos singulares.”[9]

 

Esse amor pela “humanidade”, ou melhor pela “sociedade”, ou, ainda, pelo conceito que ele faz de ambas, segundo o qual a “a pluralidade de pessoas diferentes com diversos sistemas de objetivos é uma característica essencial das sociedades humanas”[10], leva-o a desprezar o próprio objeto da virtude da justiça, ou, ao menos, o da comutativa, que é o “bonum alterius singularis personae”[11]. E amostra maior desse desprezo não poderia estar mais evidente do que na concepção de inveja de Rawls “como a propensão a considerar com hostilidade o maior bem dos outros, mesmo que o fato de eles serem mais privilegiados que nós não diminua nossas vantagens”[12] – cujo efeito é que estejamos dispostos a diminuir as vantagens de outrem mesmo que as nossas também o sejam[13] – quando ela consiste justamente, numa definição comunicável, em que “de algum modo o bem de outrem seja estimado como mal na medida em que é diminutivo da própria glória e excelência.”[14]

 

Uma das razões da inveja radica em que, como disse S.Tomás, algumas coisas não permitem a fruição de mais de uma pessoa ao mesmo tempo, como sói acontecer com as coisas temporais, o que advém do próprio caráter intrinsecamente limitado delas. Daí o bem alheio, na medida em que não pode ser desfrutado por alguém, dar origem à inveja, [15] por ser considerado impeditivo do seu próprio bem pelo invejoso.[16] Pela inveja, complementa ainda o Doutor Angélico, toma-se o bem de outrem como mal próprio[17]. Já para Rawls, a inveja ocorrerá justamente “na medida em que as diferenças entre esse indivíduo e os outros não exceda certos limites, e que ele não acredite que as desigualdades existentes estão fundadas na injustiça ou resultam da aceitação do acaso, sem nenhum propósito social visando compensá-las.” [18] Essa concepção parece, no mínimo, temerária e não constitui um apoio seguro para qualquer ordem social, tornando instável a ordem jurídica e política, caso aplicada: mais ainda quando lemos no mesmo livro a dificuldade que o autor tem de expor o que para ele sejam as “injustiças […] mais cruéis”, termo que, para ele, evoca uma idéia “extremamente genérica”, cuja “avaliação do grau de afastamento do ideal dependerá em grande medida da intuição.”[19]

 

Essa revolta contra a pessoa singular e concreta, contra o objeto da justiça particular, o “bonum alterius singularis personae”, que, como afirma S. Tomás, não é o fim de cada uma das outras[20], vai de par com uma insurreição também contra as sociedades e as estruturas sociais concretas. Toda a empreitada de Rawls consiste também numa grande invectiva contra a natureza e a sociedade historicamente constituída, na medida em que ela é considerada “o resultado cumulativo de distribuições anteriores dos dotes naturais […] conforme foram cultivados ou deixados de lado, e seu uso foi favorecido ou preterido, ao longo do tempo, por circunstâncias sociais e contingências fortuitas tais como o acaso e a boa sorte […] fatores tão arbitrários do ponto de vista moral.”[21]  Ou seja, toda a criação e, a reboque, toda sociedade humana pretérita são um grande nonsense moral, cujo sentido último apenas agora é desvelado diante dos nossos olhos – e ainda deveríamos agradecê-lo por isso! – por John Rawls. Diante de tal cenário, o autor propõe que “as vantagens dos que têm dotes naturais maiores devem limitar-se àqueles que promovem o bem dos setores mais pobres da sociedade”[22].

 

Essa noção, contudo, não é comunicável. Como pretender liberal um sistema em que não apenas o bem de um não deve prejudicar o outro, mas deve sempre promover necessariamente o bem do outro, e não de um outro qualquer, mas daquele que está mais abaixo dele no elo da cadeia social? Assim, Rawls presume, vejamos bem, PRESUME (aliás, ele presume, muito mais do que um filósofo deveria, e intui o tempo todo, sendo sua teoria um grande exercício de intuição presunçosa), que a vantagem dos que estão “acima” na cadeia social, caso beneficie quem está “mais abaixo” na sociedade, necessariamente beneficiará as classes intermédias.[23] Isso não apenas não é verificável, como tem, também, seu contrário ocorrendo em diversos cenários da história da humanidade: desde a extinção dos parlements, e das corporações de ofícios e associações de agricultores pela Loi Le Chapelier, na França, até a aversão à família – praticamente a última sociedade intermédia que restou na sociedade brasileira atual –, e à classe média manifestada por certos setores da sociedade urbana no Brasil, em nome de um discurso há muito refutado, mas ainda muito disseminado, por afagar de maneira extremamente cômoda o senso que cada “playboy” da Zona Sul pretende ter de pertencer à camada mais esclarecida e mais sedenta de justiça, mais moralmente elevada da população: o socialismo.

 

O liberal-totalitarismo de John Rawls reflete aquilo de que falou Chantal Delsol, ao tratar da imanentização da igualdade dentro do quadro de teorias políticas desprovidas de uma ontologia – como é a de Rawls: “teoria política, não metafísica” –: “os desejos (traduzidos em necessidades) tomam o lugar das aspirações. Estas últimas, espirituais, podiam continuar insaciáveis sem gerar infelicidade, ao passo que os desejos/necessidades insaciáveis suscita revoltas e ressentimentos sem fim”, concluindo, no parágrafo seguinte: “A inveja se tornou uma virtude.”[24]

 

Tudo o que fez Rawls, com sua teoria, foi uma repaginação do socialismo Fabiano nas discussões econômicas e amenizada no seu discurso. Aqui, nada de palavras-de-ordem, discursos incisivos e condenações taxativas; apenas “idéias intuitivas”, “convicções ponderadas” e “suposições”. Contudo, o totalitarismo proveniente da linguagem da abstração-total, que se esquece dos singulares, continua presente, conquanto dissimulado. É um totalitarismo sonso: sonso como John Rawls.

 

No próximo, e último, artigo, veremos como essa revolta de Rawls não consiste apenas numa revolta contra o bem dos indivíduos singularmente considerados, nem mesmo apenas do Estado, mas também contra o próprio fundamento da realidade, com suas idéias de razão pública e consenso sobreposto.

 

[1] RAWLS, John. Uma teoria da justiça. (§ 5 O utilitarismo clássico) p. 26-27.

[2] Ibid. (§ 5 O utilitarismo clássico) p. 32. Seja lá o que tenha querido dizer com essa frase, foi, no mínimo, infeliz ao expressá-lo, e os bandidos de todo o mundo provavelmente muito se contentariam em ouvi-la.

[3] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 34.

[4] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 35.

[5] Ibid., (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 37.

[6] Santo Tomás de Aquino. S Th., I-IIae, q. 94, art. 2, r.

[7] VOEGELIN, Eric. Ordem e História: III – Platão e Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2009, p. 87-88.

[8] RAWLS, John. Op. cit. (§24. O véu da ignorância), p. 169.

[9] Scriptum Super Sententiis, lib. 4 d. 23 q. 2 a. 4 qc. 2 expos. “Bonum autem unius est prius quam bonum multorum, quod ex singularibus bonis consurgit.”

[10] RAWLS, John. Op. cit. (§ 6. Alguns contrastes inter-relacionados), p. 35.

[11] Santo Tomás de Aquino. Summa Theologiae IIa-IIae, q. 58 a. 7 ad 1

[12] RAWLS, op. cit. (§80 O problema da inveja) p. 656.

[13] Eod. loc.

[14] Santo Tomás de Aquino. S. Th. II-IIae, q. 36, art. 1, r.

[15] Santo Tomás de Aquino. Scriptum Super Sententiis, lib. 3 d. 27 q. 1 a. 1 ad 3.

[16] Em outra passagem – Scriptum Super Sententiis, lib. 2 d. 5 q. 1 a. 3 ad 2 – o Aquinate fala que “a inveja é a dor pela prosperidade alheia, na medida em que é impeditiva de algum bem próprio.” “[…] invidia est dolor alienae prosperitatis, inquantum est impeditiva alicujus boni proprii.”

[17] Santo Tomás de Aquino. Summa Contra Gentiles, lib. 1 cap. 89 n. 12.

[18] RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes. (§80 O problema da inveja) p. 656.

[19] Ibid., (§ 39. Definição da prioridade da liberdade), p. 305.

[20]  Santo Tomás de Aquino. S. Th. I-IIae, q. 90, art. 3, ad. 3: “bonum unius hominis non est ultimus finis”. Santo Tomás de Aquino. S. Th. II-IIae, q. 58, art. 9, ad 3. “Bonum autem unius personae singularis non est finis alterius.”

[21] RAWLS, John. Op. cit., (§12. Interpretações do segundo princípio), p. 89.

[22] Eod. loc.

[23] Ibid., (§13. A igualdade democrática e o princípio de diferença) p. 96-97.

[24] DELSOL, Chantal. La haine du monde : totalitarismes et postmodernité. Paris : Du Cerf, 2016, p. 99.

Imagem: A Inveja’ (Óleo sobre tela) – Jacques de Backer (1570-1575) Museo di Capodimonte, Nápoles, Itália.

*Bacharel e Mestre em Direito (teoria e filosofia do direito) pela faculdade de direito da UERJ.

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