A direita de Marcelo Coelho

É um sinal de que vivemos em tempos interessantes o fato de Marcelo Coelho ler e comentar The Conservative Mind de Russell Kirk (que será publicado em breve no Brasil pela É Realizações como A Mentalidade Conservadora, em tradução de Eduardo Wolf, como parte de um trabalho inestimável para a cultura nacional organizado por Alex Catharino), como ocorre neste post em seu blog. Como ele próprio reconhecera anteriormente, a escrita de Kirk não é marcada pelo tom agressivo, polemista e puramente negativo de muito do que passa por literatura conservadora (ou neoconservadora) hoje em dia; há uma visão de mundo mais profunda em suas páginas. Contudo, parece-me que o próprio Marcelo Coelho não imita a boa prática que ele elogia em Kirk. Seu texto revela a mesma hostilidade para quem discorda dele (para os infames representantes da “direita”) que um neoconservador contemporâneo destila contra seus inimigos progressistas, esquerdistas, ou seja lá o que forem. A nota principal dessa postura é nunca deixar seu adversário falar e nunca fazer a descrição dele em termos neutros ou minimamente compreensivos.

O artigo dá uma descrição informal do que caracterizaria a “direita”, termo que “ainda tem uma conotação injuriosa”. O direitista é “[a] favor dos grandes negócios, da mínima intervenção do Estado na economia, da indústria armamentista, da ‘dureza’ contra os adversários, da ideia de que a competição, mais do que a solidariedade, estão inscritas na natureza humana”.

A primeira pista de que há algo errado é que essas características se excluem umas às outras ou, na melhor das hipóteses, demandam algum tipo de sofisticação ou matização para se conciliarem: pois como defender ao mesmo tempo o Estado mínimo e o armamentismo; como, afinal, o Estado paga pela indústria bélica; e que tipo de sacrifícios ele impõe à população para financiá-la e utilizá-la? E como ser a favor do Estado mínimo e dos grandes negócios? Ora, quem mais favoreceu os grandes negócios do que os Estados de bem-estar e militaristas dos séculos XX e XXI?

As duas últimas características listadas são enigmáticas. Com base no quê se afirma que um direitista é a favor “da dureza contra os adversários”? Porque certos regimes de direita (como Pinochet no Chile) massacraram membros da oposição? Ora, mas a exata mesma coisa não foi feita, em escala até maior, por regimes de esquerda na União Soviética, China, etc.? E por acaso um socialista aguerrido não é tão intransigente e turrão quanto um polemista conservador? Seja no campo da política ou do temperamento, a escolha do autor parece baseada mais numa opinião pré-concebida do que numa tentativa séria de descrever o outro lado. Ademais, que a direita veja o homem como mais mau, mais antissocial, que a esquerda, também é questionável. Se por um lado é verdade que certo tipo de conservador pessimista e de liberal defensor do “egoísmo como virtude” de fato vejam no ser humano nada mais do que vícios (a serem combatidos ou incentivados, respectivamente), também é verdade que muitos socialistas, especialmente os desiludidos e os revolucionários, veem a humanidade (a humanidade que existe no mundo real, e não a promessa de humanidade a nascer sob o sol da utopia) como corrompida e má.

Enfim, o termo “direita”, como o próprio Marcelo Coelho afirma, abrange uma série de posições; o que ele não diz é que essas posições podem ser mutuamente excludentes e até mais distantes entre si do que certos tipos de direitismo são de certas variantes de esquerdismo. Um fascista está muito mais próximo (em todos os campos: político, econômico, cultural, filosófico) de um socialista pró-soviético de velha guarda do que de um liberal clássico, que todavia também entra no pacote da “direita”. O conservadorismo de Kirk é outro polo nessa vaga “direita”, distante tanto do fascismo quanto do liberalismo (embora talvez pragmaticamente conciliável com uma sociedade de Estado mínimo como defendem os liberais e na qual, afinal, o poder é descentralizado e as tradições locais podem florescer).

Marcelo Coelho, neste texto ao menos, deixa de lado qualquer desejo de compreender o lado oposto. Sua visão da direita em nada deve à forma como o direitista mais caricato vê os esquerdistas: conspiradores que querem instituir o mal enquanto tal e destruir tudo o que há de bom. O direitista, seja de que estirpe for – e é isso que todas as variantes têm em comum; Coelho não o diz mais deixa implícito – é alguém que ama a pobreza, a morte, que quer destruir as “conquistas sociais” e a democracia; em suma, um inimigo público.

Vilões que querem o mal pelo mal são coisa de desenho animado (lembro-me do Capitão Planeta e seus vilões que adoravam “poluir, POLUIR! MUAHAHAHA!”). O conservadorismo de Kirk ao menos merece uma exposição imparcial antes de feita a crítica e o comentário. Ao invés disso, e já deixando antever que a abordagem atual será levada adiante, Coelho promete expor em artigos futuros suas “contradições e maluquices”.

Por que ele não faz também algo mais interessante: num exercício de autorreflexão, procurar entender por que a obra de Kirk teve tanta importância? Afinal de contas, tratava-se de um posicionamento francamente antimoderno e contrário ao “espírito do tempo”, que – tanto no lado socialista quanto no capitalista – tinha o progresso tecnológico e o material como critérios indubitáveis de sucesso. Tem algo aí além de “contradições e maluquices”. Aguardemos os futuros artigos deste que é, sem dúvida, um debate relevante para o Brasil.

10 comentários em “A direita de Marcelo Coelho

  1. Acho que o cara ficou assim de tão ridicularizado que foi pelo Reinaldo Azevedo.

    Mas é curioso como escreve mal; ligeiramente mal: “Por mais que se diga, termos como “esquerda” e “direita” continuam a fazer sentido, embora o sentido não seja o mesmo que há 50 anos.”

    Não seria “por mais que se diga o contrário”?

    Se ele não consegue concatenar o próprio texto, como quer entender o pensamento conservador – e a partir de um livro só?

    Se eu fosse um progressista, já estaria gritando, escandalizado: “preconceito! preconceito! pré-conceito!”.

  2. O governo PT pode ser considerado de direita por beneficiara o surgimento de “grandes negócios” (vide JBS e afins)?

  3. 1) esse filtro anti-spam de vocês é muito fraco.
    2) Cara, relaxa, é o marcelo coelho, ele escreveu patópolis.

  4. Esse texto fraquinho precisava mesmo ser comentado. Parece que o Marcelo Coelho sequer sabe o que é corporativismo…

  5. Esse negócio de defender “grandes negócios”, livre mercado, consumismo, etc. não tem nada a ver com conservadorismo.

    Qualquer um vê que o avanço do capitalismo desenfreado tem contribuído para a degeneração dos valores no Ocidente.

    Muito mais importante do que o progresso material, os prazeres e a felicidade terrena, é o progresso espiritual.

  6. Bem, vou comentar um tanto quanto “extemporaneamente”… Minha definição de conservador: um bundão, com medo do futuro. Essa é a mais verdadeira. Em geral, conservadores têm medo, medo do novo, medo de arriscar, medo de inúmeras coisas. Basta ver como são os textos de Pondé, Azevedo, Carvalho, Coutinho … todos temem. Temem a eugenia, temem a busca pelo mundo perfeito, temem o avanço do comunismo, temem, temem e temem. Não vislumbram o avanço tecnológico como central para a humanidade. São bundões, assim de simples. E os digníssimos aqui desta revista são uns bundinhas (brincadeirinha, não levem tão a sério).

  7. A propósito do tema do post, Marcelo Coelho tem feito novos posts sobre o Russell Kirk, e devo dizer que agora em que passou à crítica do livro em si, o resultado tem sido muito melhor do que seu post original deixara antever. Críticas sérias a alguns pontos bem centrais do conservadorismo.

  8. Joel, bom saber. O Kirk escreveu coisas dignas de crítica nesse livro em particular, e isso merece ser divulgado. Talvez você pudesse escrever alguma nota sobre essas críticas do Marcelo Coelho (não tenho simpatia alguma com ele; mas desde quando a simpatia é critério racional?). Uma coisa é certa: vai dar pano para a manga, dado que Kirk — mesmo que tenha escrito coisas escabrosas em The Conservative Mind — é tido como intocável por muita gente.

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