A Gênese de ‘Do Enigma ao Mistério’ – II

A história das três últimas aulas de Bruno Tolentino começou no dia 22 de dezembro de 2006. Lembro-me perfeitamente do espanto que senti ao receber um telefonema de Renato Moraes avisando que o Bruno havia sido internado com uma grave crise hepática. No dia seguinte, fomos ao hospital e, depois de visitá-lo, conversamos com o médico de plantão. Ele estava muito debilitado, e a pergunta óbvia não podia faltar: “Doutor, o sr. acha que ele consegue escapar dessa?” Ao que o médico respondeu: “Veja bem, no momento ele não corre perigo. Se o quadro continuar a se desenvolver desta maneira, poderá sair daqui. Mas um paciente com esse quadro não tem uma expectativa de vida muito longa”.

É engraçado, mas nesses momentos sempre temos a tendência de fugir da realidade, como quem estivesse à beira do abismo e pensasse: “Humm. Até que não é tão fundo assim”. Fosse como fosse, naquele instante ficou claro que o Bruno não tinha mais muito tempo, que a partir daquele momento ele faria muitas coisas pela última vez.

Como o médico havia previsto, o quadro desenvolveu-se bem e, antes do fim do ano, ele estava novamente em casa. Recuperou-se aos poucos. O momento decisivo foi depois do Carnaval, quando a profa. Ana Lydia Sawaya se encontrou com o prof. Dante Gallian (ambos são da Escola Paulista de Medicina). A Ana Lydia era quem estava hospedando o Bruno nos últimos meses de vida, junto com outras moças do movimento Comunhão e Libertação, e o Dante era então do Centro de Extensão Universitária, que no ano anterior havia promovido um curso – aliás excepcional – do Bruno sobre poesia brasileira.

A situação naquele momento era absolutamente incerta: a saúde do Bruno era relativamente estável, mas ele ainda se encontrava debilitado pelo que havia passado. Ou seja, não era possível fazer qualquer previsão do que iria acontecer: sim, havia um abismo por perto, mas ele sempre fora ótimo equilibrista; e quem sabe não surpreenderia a todos mais uma vez? Mesmo assim, os dois professores encontraram-se e decidiram que o Bruno precisava dar aulas, pois era aquilo o que ele mais queria. Com isso decidido, a Ana Lydia foi conversar com o Bruno, que lhe disse algo como: “Filhinha, eu quero dar essas aulas, mas sou péssimo para organizar qualquer coisa. Chame o Guilherme que ele pode ajudar com isso”. Foi então que entrei na história e combinei com os três que me encarregaria de toda a infra-estrutura prática do curso (buscar o Bruno em casa, levá-lo de volta, avisar se houvesse algum problema etc.). Como auxiliar acadêmico, o Bruno chamou o Marcelo Consentino, que ajudaria com a ementa do curso, com uma substituição eventual caso o Bruno não pudesse dar alguma aula, etc.

* * *

A história continua na semana que vem. Mas queria acrescentar aqui uma nota sobre a gravação e o texto publicado na revista. Como disse na semana passada, a decisão mais difícil foi mudar a ordem das aulas no texto impresso; ainda terei muito a dizer sobre isto ao longo desta série, mas posso começar dizendo que o motivo principal foi a falta de unidade entre as aulas. Isso não é de maneira alguma uma crítica ao conteúdo; antes foi o que provavelmente as tornou tão ricas. Mas o fato é que não havia uma unidade temática explícita (não foram três aulas preparadas em seqüência); pelo contrário, cada uma foi como que a primeira aula de um curso completamente diferente. Mas a intenção era a mesma: a urgência de dizer o que mais lhe ocupava o coração. Por isso, é natural que a cada semana ele abordasse temas completamente diferentes, mas que mesmo assim tinham um fio condutor comum.

Foi por isso que, cheio de dúvidas, decidi organizá-las em outra ordem: quem estava lá, com certeza teve uma experiência única e pôde perceber claramente a unidade, pela própria maneira como as coisas se desenvolveram; já quem apenas lesse a transcrição não conseguiria perceber o esforço de elocução, o ritmo da fala, e ficaria apenas com um texto confuso. Para quem leu a revista e quer conferir o meu trabalho linha por linha, a primeira aula está nas duas partes finais do texto (V e VI). Os cortes dessa parte foram pequenos e, na sua maioria, justificam-se facilmente, como por exemplo quando o Bruno fazia referência ao curso que ele havia dado no ano anterior: os alunos eram em grande parte os mesmos, os leitores certamente não o serão.

As digressões eram o que representava o maior problema. O Bruno era mestre em pegar um tema que às vezes chegava a parecer banal, começar a contar uma longuíssima história que aparentemente não tinha nada a ver com aquilo, mas no final amarrar perfeitamente bem o assunto (não sem antes provocar algumas gargalhadas!), às vezes depois de alguns dias! Mantive essas digressões no texto, mas foi necessário cortar outras tantas. O motivo é o mesmo: na linguagem falada eram sensacionais, na escrita trariam mais confusão que qualquer outra coisa.

Mas já falei demais: aproveitem a primeira meia-hora da primeira aula, que foi gravada no dia 8 de maio de 2007. Na próxima semana, mais meia-hora (e outro pedaço da história dessas aulas).

Audio Bruno Tolentino II

4 comentários em “A Gênese de ‘Do Enigma ao Mistério’ – II

  1. Digo que a aula publicada na DC de Tolentino está maravilhosa! Gostei muito dessa parte: “a compreensão das coisas só pode ser compreensão de Deus, porque, se não o for, será apenas uma inauguração de supaermercado. Se este inigma não me interessa em si, então apenas me interessa quantificá-lo; e se a vida não é metafísica, é uma mera quantificação, um empilhamento que não faz nenhum sentido. Ou seja, a vida ou é metafísica, ou não é nada” (p.19)
    Abraço!

  2. Ao terminar de ler Do Enigma ao Mistério, veio-me a mente… It´s astonishing!!

    Impressionou-me sobremaneira a quantidade de experiências e conceitos ensinados pelo Bruno e sintetizadas em tão poucas páginas !

    Foi delicioso conhecer as “experiências da realidade” do menino Bruno e concluir o quanto a vida deste homem-Poeta ensinou para nós. Mesmo para aqueles que conviveram um breve tempo com ele!

    Emocionei-me em várias partes do texto.
    Destaco – “É essa dimensão metafísica da vida que transfigura tudo. Temos a impressão que tudo existe apenas porque Deus está respirando e, se Ele parasse de respirar, tudo se desfaria em poeira. Na verdade tudo é poeira mesmo, mas nesses momentos, como que numa respiração de Deus, todo aquele pó se transforma em brilho- que às vezes é percebido, às vezes não. Isso é o momento de epifania.”

    Abraço da Rosana!

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