A Gênese de ‘Do Enigma ao Mistério’ – IV

Uma das opiniões mais unânimes de todas as pessoas que conheceram o Bruno Tolentino é a de que ele era uma “pessoa muito difícil”. Mas, se de fato seria uma mentira negar completamente esta afirmação, mais errado ainda seria aceitá-la sem nenhuma restrição.

Convivi com o Bruno apenas nos seus três últimos anos de vida e tenho certeza de que esse pequeno convívio não foi suficiente para me dar um panorama completo do seu comportamento. Principalmente porque nessa época ele já estava, senão debilitado, certamente menos ativo do que já havia sido. E como ele mesmo me disse uma vez: “ter saúde me faz um mal danado”.

Ao longo desses anos eu presenciei mais de uma “briga” arranjada pelo Bruno e ficou claro para mim que boa parte do seu comportamento era semelhante ao de uma criança. Todo mundo que já teve contato com crianças sabe das reações exageradas que elas costumam ter, dos momentos em que tudo é ruim simplesmente porque estão com sono etc. Mas também há as vantagens, as enormes vantagens de uma personalidade completamente desprovida de preconceitos, que está preocupada com a coisa que lhe é apresentada e não com o que vão pensar que ela pensa se gostar disto ou daquilo. Em outras palavras, o Bruno tinha mesmo uma simplicidade (e uso a palavra até nos seus sentidos mais elevados) impressionante ao lidar com absolutamente tudo. 

Isso fazia, por exemplo, com que ele conversasse com qualquer pessoa sobre qualquer assunto. E também explica a única coisa que o tirava do sério: a falsidade, querer parecer sem ser. Ah, era até engraçado ver a facilidade com que ele percebia isso e a facilidade com que destruía qualquer falsa pretensão.

Digo tudo isso porque o que aconteceu no final da primeira aula mostra um pouco esse lado. Como eu disse na semana passada, a felicidade do Bruno ao terminá-la para os seus trinta alunos só pode ser comparada a de uma criança quando chega o Papai Noel. E notem como a voz dele estava fraca no final, demonstrando o cansaço que certamente sentia. Mesmo assim, chegou em casa depois das 11 horas da noite e foi acordar todo mundo para contar o seu sucesso.

Eu não sei o que passou pela cabeça do Bruno nos dias que se seguiram, mas eles certamente foram decisivos para o andamento das coisas, como vocês verão na semana que vem…

***

Eu havia dito que a condição para editar as gravações seria publicá-las aqui para que todos tivessem acesso ao material original. Até agora só estou um pouco decepcionado com uma coisa: quase não recebi críticas. E já que ninguém as fez, eu mesmo terei de mostrar os meus erros.

Antes, apenas um comentário: como vocês ouvirão, esta parte foi certamente uma das mais difíceis de editar, talvez a mais difícil. Porque é ao mesmo tempo a mais densa e a mais confusa de todo o curso. Por isso a necessidade de cortes, transposições etc.

Mas nada pode justificar o fato de eu ter cortado a crítica que ele faz mais ou menos aos doze minutos sobre as concepções de “direita” e “esquerda”. Quando ouvi a gravação para preparar o post, pensei: “ué, por que será que deixei isso de fora? Ah, já sei. Deve ser porque não encaixaria no raciocínio”. Então fui acompanhando a gravação com o texto da revista e percebi que ela se enquadraria perfeitamente. Nesse caso, só posso pedir desculpas… E garantir que se um dia as aulas forem reeditadas, farei o que puder para modificar esta parte do texto.

Outro caso que poderia ter entrado na versão final são as considerações sobre “o mal como doença” e como isso se dá na literatura, conforme exposto lá pelo décimo sétimo minuto da gravação. Nesse caso já não tenho tanta certeza do meu erro, porque as referências que o Bruno faz ali são sobre as obras que seriam tratadas no curso tal como ele havia pensado até então. Mas na segunda aula ele já mudaria completamente de idéia, de maneira que nada do que foi proposto de fato aconteceu. Por outro lado, dirá o meu acusador, pouco importa a sequência, a continuidade, o curso; o que importa é que as considerações sobre Thomas Mann, Conrad, Shakespeare e Machado são sensacionais. Enfim, deixo para vocês decidirem. 

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4 comentários em “A Gênese de ‘Do Enigma ao Mistério’ – IV

  1. Se a quase ausência de críticas o decepcionou um pouco, permita-me enfurecê-lo: percebe-se que não sem motivos o poeta o escolheu; mesmo não posto à prova, mostrou o senhor ser de escol. Parabéns!

  2. Incrível! Ao ouvir a primeira e segunda partes da aula, apesar de excelentes, a impressão era de algo que caminhava para um término confuso. Agora, com esta última parte, e após acostumar com o ritmo da voz do Bruno, as pausas, o humor – é possível imaginar até os gestos do poeta – , não sei explicar como, tudo faz sentido, tudo se fecha, mesmo sem os necessários complementos de aulas posteriores. Realmente merece uma transcrição completa, apesar daquela ótima apresentada na revista.

  3. Consegui meu exemplar da revista ontem à noite. Li o artigo do Bruno Tolentino. Basta dizer que, quando terminei de ler, eu estava tremendo. Não era de frio. Era de maravilhamento. Não consegui dormir.

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