A imoralidade da democracia de massas

massdemo

 

 

Gustavo França*

Na atual cultura de slogans e de jargões ideologizados, não é raro emergirem soberanas algumas unanimidades, sustentadas não em pressupostos racionais fundantes de uma cosmovisão compartilhada, mas na repetição mecânica de clichês sem lógica e sem significado, conferindo justiça à sentença de Nelson Rodrigues. Em nossos dias, uma das mais retumbantes unanimidades é a democracia. Tornada praticamente sinônimo do bem, elevou-se a categoria transcendental do pensamento o juízo segundo o qual a democracia é o único caminho para a liberdade e para a justiça. Seja quando um aprendiz de Bolsonaro levanta na Avenida Paulista um cartaz pedindo intervenção militar, seja quando um esquerdista mais exaltado aplaude as ditaduras bolivarianas, a “defesa da democracia” é sempre invocada como o mais importante pelas vozes “razoáveis” e “ponderadas” do pensamento corrente.

Para uma mente ideológica, de raciocínio binário e de alcance de visão limitado à data de seu nascimento, a democracia é o único governo livre do subjugo; existem dois regimes no universo: a democracia e a ditadura. Por outro lado, uma alma conservadora, que busca princípios eternos que se aplicam a todas as realidades e desconfia de todos os projetos pré-prontos de sociedade perfeita (tanto os baseados na construção de um futuro que seja o fim da história – utopia revolucionária – quanto os baseados na volta a um passado idealizado – utopia reacionária), sabe que a democracia não é senão uma das formas políticas já concebidas nos últimos três milênios de civilização.

Aristóteles há muito percebeu a profunda complexidade do problema dos sistemas de governo. Não só buscou trabalhar com um leque alargado de tipos de regime, mas também viu que há espécies variadas de democracia (que, aliás, para o estagirita, é a forma degenerada de governo popular, decadência em relação ao sistema que ele chama genericamente de politeia, palavra grega para constituição). De forma gradativa, minuciosa e sempre muito prudente, Aristóteles desfia elementos (com base em princípios fundamentais) que permitem identificar as melhores versões da democracia, segundo os critérios (justapostos à mera igualdade vazia) de distribuição dos bens e funções públicas e a ligação do governo com as virtudes comunitárias.

A verdade é que o sistema que hoje se banalizou chamar de democracia é um tipo particular de democracia: o que quero denominar democracia de massas. Tal espécime é aquela em que desaparecem todas as instâncias comunitárias de intermediação entre a multidão absolutamente diversificada de indivíduos, com pouquíssimas raízes culturais compartilhadas e afastada dos pequenos ambientes de produção de ideias, e o Estado central. Uma política desprovida de bases morais e religiosas e de uma reflexão a partir de uma cosmovisão abrangente (feita, pois, mediante slogans e gritos de guerra, linguagem natural dos movimentos de massa) que se sobrepõe aos costumes pessoais, à família, às escolas e à formação cultural do caráter íntimo de cada um. É a democracia como concebida no sonho totalitário de Rousseau, que chegou a defender a extinção de todas as associações privadas, como as corporações comerciais, as igrejas e os partidos.

Já na filosofia política moderna, Alexis de Tocqueville foi um dos que se esmeraram na tarefa de investigar os princípios perenes da ética pública, aplicados à variedade de regimes no tempo e no espaço, reservando exatamente ao problema aqui enfocado o seu clássico “A democracia na América”. Embora as mais distantes interpretações dessa obra já tenham sido oferecidas, creio que se possa dizer que o autor francês foi movido por uma observação curiosa: encontrou na América uma sociedade democrática que funcionava e progredia, enquanto na Europa a crescente democratização trazida pelas revoluções liberais vinha levando à decadência moral e ao caos. Grosso modo, sua análise se centra no fato de que a democracia norte-americana se baseia em corpos intermediários (expressão inspirada em Montesquieu, sua grande influência), que, calcados no princípio da subsidiariedade (uma instância superior só deve atrair para si a competência para aquelas tarefas impossíveis de se realizarem pelas inferiores), estruturam a vida comunitária pela auto-organização dos pequenos grupos, consoante suas tradições morais e seus costumes culturais. A atuação do poder central já nasce limitada por esses laços fundamentais, construídos nas atividades do dia-a-dia e não nos rompantes das demonstrações de rua.

Para que uma democracia seja virtuosa e possa prosperar segundo critérios universais de justiça, é preciso que se baseie nas pequenas comunidades e nos vínculos culturais, a construir paulatinamente sólidos corpos intermediários dos quais irradiem toda a estrutura institucional. A democracia de massas, edificando-se de forma exatamente oposta (uma máquina burocrática opaca igualando todos os indivíduos numa política multitudinária), aniquila a cultura, dissolve os laços morais comunitários, impede a reflexão e a contemplação, alimenta as ideologias e as paixões, favorece a concentração de poder e se torna muito mais suscetível à tirania e ao totalitarismo do que qualquer outra forma política.

Como afirmei, não é minha pretensão proscrever a democracia nem levantar o estandarte de um regime de governo superior. Meu fundamento inicial é de que existem princípios éticos (liberdade cultural, limitação do poder, respeito à dignidade humana) que se aplicam à política de todas as épocas e de todos os lugares, respeitando, evidentemente, a diversidade de cada contexto. Esses princípios permitem o desenvolvimento de vários sistemas obedientes a eles, inclusive, a democracia. Ao contrários de alguns conservadores entusiastas da monarquia, penso que a democracia pode ser mais adequada a muitos Estados contemporâneos. Contudo, a democracia de massas não é apenas inconveniente por motivos contingentes, é absolutamente injusta porque fere os padrões essenciais de normatividade. Reforçá-la a todo o custo, longe de ser o caminho oposto à ditadura, é rota para, em nome de uma igualdade antinatural e abstrata, atirarem-se ao lixo a liberdade e a paz.

 

*Gustavo França é graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista Dicta & Contradicta

3 comentários em “A imoralidade da democracia de massas

  1. Muito bom o texto, mas essa consideração final sobre uma oposição entre democracia e monarquia não me parece correta. É evidente que na tipologia clássica elas são formas de governo diferentes, contudo, ao longo do tempo, a democracia se firmou mais como um sistema de governo compatível que como qualquer outra coisa e, desse modo, ela apenas “adjetiva” a forma X ou Y.

  2. Está dando gosto de acompanhar a nova fase da Dicta. De início veio o estranhamento pela ausência de autores mais subjetivistas, mais personalistas, como os que marcaram a “encarnação” anterior. Antes, os artigos chamavam o interesse mais para quem escrevia do que pelo assunto. Pode ser uma impressão momentânea, favorecida pelo fato de que os articulistas são ainda novos para mim, por eu ainda não distinguir suas vozes. Ou também porque os pontos de vistas dos problemas estão sendo tratados de um modo que me faça pensar mais no objeto da discussão do que em quem o analisa – ponto para vocês. Se é realmente uma qualidade nova da revista, que seja bem-vinda. Parece haver um salto de maturidade. É bom ver que retornaram do desvio da rota a qual a revista ia. Vida longa à Dicta & Contradicta.

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