Adeus, Crítica na Rede

O blog de filosofia Crítica na Rede, modelo para qualquer empreendimento na área, está a nos dar adeus. Fundado em 1997 por Desidério Murcho (como iniciativa pessoal), o sítio informou, entreteve e fez pensar muita gente com textos elegantes e no-nonsense, traduções de filósofos desconhecidos do público de língua portuguesa, além de resenhas oportunas de novos livros.

No texto de despedida, o luso professor da Universidade Federal de Ouro Preto (embora seu lar intelectual seja o Kings College, Universidade de Londres) se ressente do atraso cultural de Portugal. Vivendo no Brasil, no entanto, deve ter a consciência de que não estamos melhor — eu diria que vamos, talvez, pior — e que por isso a crítica também nos atinge. Ela não se limita ao ‘académico’, porque não vamos tão mal em ciências (e “filosofia científica” nada tem que ver com positivismo, morto e enterrado: é um nome, a meu ver infeliz, para a filosofia que segue os conselhos de Aristóteles e não despreza os resultados da física, da biologia, da química — seja tomista, continental ou analítica.) É um problema de formação e de seleção do que queremos absorver. Em matéria de humanas, nem sequer no imitar o estrangeiro somos bons: nossos intelectuais à esquerda copiam os franceses dos anos 60-80 e os da direita substituem pensamento por ideologia de sinal trocado e paranoia. Como diz um amigo, o bordão crítico deve ser sempre: falta estudo. Ou talvez devamos aproveitar mais as benesses do mundo virtual.

O blog ficará, por enquanto, ali ond’está, “enquanto a publicidade das suas páginas gerar receitas suficientes para pagar as despesas com o domínio e o servidor”. Aproveitem — arqueologia é sempre boa opção.

8 comentários em “Adeus, Crítica na Rede

  1. “Falta estudo.” No fundo, o que essa frase quer dizer não é “falta estudar os autores, obras e escolas que nós consideramos a verdadeira tradição filosófica”? E quem é o juiz desta “seleção”? A impresssão que tenho é essa seleção que você propõe é alterar o foco de nossa atenção para a produção acadêmica de centros de produção de teses filosóficas estrangeiros, principalmente anglo-saxões. Mas não há muito subjetivismo nesta seleção, um preconceito “escolista” fruto de uma fascínio pessoal?

    No mais, ótima dica.

  2. Vinícius, é impossível escapar da seleção. Mas como toda seleção faz uso de um critério, ainda é possível avaliar este último (por paradoxal que pareça avaliar um critério de avaliação). O critério implícito aqui é a razão. Fora da razão não pode haver uma tradição filosófica autêntica. Com isto estou longe de dizer que é fácil definir “razão” e, portanto, afastar todo critério de seleção. Tudo que está incluído no ilusionismo e na enganação, consciente ou inconsciente, pode ser facilmente afastado. Ainda posso fazer algum uso de Lacan ou Derrida? Talvez, embora eu particularmente duvide disso. O esoterismo, por exemplo, é fácil de descartar; o mesmo vale para critérios do tipo “se é mainstream, é ruim” — e isso é mais comum do que pensamos. Porque é de bom senso confiar minimamente no que recebeu atenção e foi amplamente discutido (como Kant e Descartes) e desprezar ou ao menos suspeitar de autores que não receberam atenção (como é o caso de Voegelin, tão em voga no Brasil) e que pretendem resolver todos os problemas da modernidade. E isso é só um começo, porque a filosofia é feita de pensamento, e não de autores.

    Quanto aos anglo-saxões, não é de hoje que fazem filosofia de qualidade; e depois do desmascaramento do surto hipnótico francês (pós-modernismo, desconstrucionismo, etc), restaram poucas dúvidas de que, se a filosofia está em crise, ao menos em alguns lugares ela ainda está viva. E é o caso dos EUA e da Inglaterra, para usar o critério geográfico. Quem quer estudar filosofia, vai a Oxford, a Cambridge ou à NYU. Há bons centros na Alemanha e na Itália, e mesmo na França, mas ali a decadência é muito maior.

    A distinção entre “filosofia acadêmica” e “não-acadêmica” é irrelevante. Ou é filosofia séria, ou não é, seja o filósofo tipicamente acadêmico (McIntyre, Anscombe, ou nosso colaborador Michael Pakaluk) ou um lobo solitário que odeia a academia (Wittgenstein, por exemplo). Importa o que ele diz, e não onde o faz. É contingente que, hoje, a filosofia seja feita principalmente na Academia. Desde a Idade Média é assim, com honrosas exceções. Podia ser diferente? Sim. Mas é infantil desprezar o contingente em favor de uma ideia romântica (perenialista ou hippie, o que seja) de como deveriam ser as coisas. Vamos para o lugar em que a coisa é feita, e ponto final. Os métodos mudam, mas permanece como critério a paixão pela verdade e pelo rigor — e a desconfiança de todo tipo de picaretagem iluminada, que tudo quer resolver — que caracterizou a filosofia desde Aristóteles, por incertos que sejam os resultados. A divulgação da filosofia analítica é desejável porque, nessa tradição, a eliminação de picaretas e o desprezo pelo discurso hipnótico é fenômeno que salta aos olhos. Medo do rigor e da técnica costuma ser causado pelo receio de ser excluído por incompetência ou falta de talento. O que você diria a um suposto físico que dissesse que odeia a parte matemática da mecânica quântica? A boa filosofia exige dedicação, e às vezes o domínio de ciências auxiliares, como a filologia (para a filosofia antiga), ou a familiaridade com algum ramo da ciência, como a física. Isso implica seleção; e o brasileiro tem horror à objetividade.

    E pode saber: nos bons filosófos da tradição analítica, desde o início, você encontrará uma rejeição do academicismo — praticamente a mesma que costuma ver nos lobos solitários, embora menos radical.

  3. Hum… Parece-me que o caso é grave em vista do uso recorrente, nesta e em outras ocasiões, de alusões veladas (reconheço o pleonasmo, mas entendo-o necessário) que sabemos muito bem a quem pretendem atingir. Não há dúvida de que estamos diante de uma patologia de ordem psíquica, ou, para ser mais preciso, de um trauma causado por abuso intelectual de menor. Ou — uma deferência neste caso — tratar-se-ia de abuso de menor intelectual? Talvez as duas coisas ao mesmo tempo. De qualquer forma, apesar dos gemidos e ranger de dentes da vítima inerme, o perpetrador dessa agressão emocional permanece livre e impune, e o que é pior, continua abusando intelectualmente de outros menores, até mesmo de amigos da presente criatura molestada.

  4. Paulo, ao que parece você também foi atingido pelas minhas terríveis alusões veladas; peço desculpas se doeu. Um abraço.

  5. Me sinto satisfeito com sua resposta, Júlio. Principalmente com a frase “vamos para o lugar onde a coisa é feita e ponto final.” E com a indicação da razão como critério.

    O que chamo de preconceito “escolista” é a afirmação de certas abordagens e métodos, ou mesmo de temas como os únicos válidos e representantes da verdadeira tradição filosófica, sem reconhecer o valor das inúmeras outras possíveis.

    Você cita Voegelin, por exemplo. Certa feita, eu estava para iniciar um mestrado em ciência política enquanto lia “A Nova Ciência da Política” de Éric Voegelin. O curso, pelo que vi, tinha como autores guias, digamos assim, gente respeitada no mainstream acadêmico da área como Arendt Lijphart, John Raws e outros. Conforme a perspectiva destes autores elegidos como guias daquele curso de mestrado, as preocupações centrais eram com os problemas da representação política nas democracias modernas e os inúmeros problemas que isso suscita. Todos os estudos gravitavam em torno deste eixo e nada além interessava. Discutem, em suma, problemas de aperfeiçoamento da instituições democrática. Curiosamente, o livro de Voegelin, logo no início, e por ser um livro antes de Filosofia Política que de Ciência Política, dizia que a representação, ou “legitimidade”, tema central da política, não poderia ser reduzido a uma questão representação tal como entendida nas democracias representativas, que esta era apenas uma espécie do que ele chamava de representação existencial (que pode assumir a forma de democracia, ditadura, monarquia, etc., etc., etc.) e que, além das duas, ainda existia o nível da representação cosmológica (em que as formas de organização social ou política são encaradas como reflexos da cosmovisão total de uma determinada sociedade: a maneira como elas representam todo o universo). Creio que, por isso, ele deu ao livro o nome de “A Nova Ciência da Política”, ou seja, porque quis alterar o eixo das preocupações da ciência para o nível da representação cosmológica. Não sei se Voegelin foi o pioneiro desta o perspectiva (digo na modernidade, pois ele mesmo afirma que ela não é mais que um retorno a ciência política de Platão e Aristóteles), mas creio que ela não seja mainstream. De qualquer modo, me parece uma perspectiva válida e supremamente mais interessante e rica de problemas, embora seja ignorada pelas academias mais respeitadas da área atualmente. Aí surge também o problema da torre de babel, em que as escolas vão se aprofundando em sua metodologia própria, constituindo um arcabouço técnico próprio até os mais finos requintes e passam a não se entender mais, sendo comum que passem a acusar umas às outras de não dominar a técnica, não ter o rigor necessário, não ter estudado, etc. Retrata isto o célebre episódio em que um reputado politólogo europeu, ao ouvir uma palestra de Voegelin, saiu com cara de “não entendi nada que ele falou.” Era isto que eu tinha em mente quando falei de preconceito escolista.

  6. Foi triste saber que a página do professor Desidério Murcho será desativada, e grata a notícia de saber que vive no Brasil. Almejo que continue a nos brindar com seus muito bem elaborados artigos em outros espaços. Como mero interessando em assuntos filosóficos (sem formação na área) sempre encontrei nas dissertações do professor Desidério orientações preciosas sobre variados temas que volta e meia me interessavam conhecer melhor. Certamente o Crítica deixará saudades…

    Boa sorte ao professor em seus novos empreendimentos.

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