Antitruste

A solução para a crise das humanidades (permitam-me usar a inicial minúscula), em vez de acrescentar palavras à interminável discussão, talvez fosse retirar-lhes o material inflamável: a política, e tudo o que já foi filtrado pelos seus critérios internos. É certo que a própria política se beneficia do seu tratamento apolítico, até displicente. O sucesso pífio dos movimentos anárquicos, por se terem sempre envolvido com política, é prova disso. Mas desde o surgimento do estado (permitam-me novamente usar a inicial minúscula) já não é mais lícito, aos que querem cortar excessos e justificativas, falar de política a partir dos seus próprios termos. Essa insistência histórica é o tema principal da história da teimosia, e nem homens graves — que nos provocam mais o riso que a admiração, nessas situações — como Dante e Goethe lograram escapar-lhe.

Como observadores externos da picaretagem que sempre ronda a conversa política, em todo o seu espectro, dos bolcheviques aos conservadores caipiras, estamos em posição privilegiada para dizer que ao menos nos fornecem matéria para a imprecação e para o humor.

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modus operandi, como gostam de dizer os americanos, da política é a divisão entre amigos e inimigos. Por isso o pensamento morre no momento em que alguém pisa em solo ideológico, seja para denunciar conspirações de esquerda, seja para expressar o seu intuito ‘autocongratulatório’ de propor um mundo melhor.

Quando o critério não é a força intrínseca e contextual dos argumentos, sobra apenas o seguinte: ele não é um dos nossos, ergo está errado. A conclusão deprimente é de um estudo que se pretende, e em certos aspectos não deixa de ser, científico. (A única sociologia que sobreviveu aos chutes aleatórios foi a que fez uso de estatística e de métodos rigorosos. Ainda falha, mas menos digna de desconfiança apriori: é possível discutir resultados com outros dados, e eles sempre podem ser refutados, desde que uma alternativa com poder maior de explicação seja apresentada.) Trata-se de um paper publicado no British Journal of Social Psychology, cujo abstract anuncia:

People are more resistant to criticisms of their group when those criticisms are made by an outgroup rather than an ingroup member, a phenomenon referred to as the intergroup sensitivity effect (ISE). The current study compared four competing models of how argument quality would moderate the ISE, with a view to establishing the complex interrelationships between source and message effects in group-directed criticism. Quality of the argument affected responses to ingroup critics, but not to outgroup critics. For outsiders who wish to promote positive change and reform in a group culture, this leads to a somewhat depressing conclusion: their message is likely to be rejected regardless of whether it is objectively ‘right’, well-considered, well-justified, or well-argued.(*)

Sem necessariamente discutir os dados, um bom exercício a fazer é: testemunhei continuamente o fenômeno em minha vida corrente? Vi amigos sendo atacados em lugar de seus argumentos? Justificativas que se seguem a, e não antecedem, uma tomada de posição irracional?

A resposta, aos acostumados aos fóruns de discussão, disputas políticas e religiosas, e até aos debates científicos, será certamente positiva. Embora muitas vezes não o confessemos nem a nós mesmos, caímos sempre no mesmo erro. É a história da política.

Outro exercício a fazer é procurar entender os argumentos do inimigo, quando estivermos na posição de contendores, e se possível concordar com ele — e sempre fazer concessões motivadas pelo que foi dito, e não por quem o disse. Não existe sujeito do discurso na objetividade lógica, e nem na objetividade contextual. O que nunca é um dos nossos. A realidade possui um mecanismo antitruste contra monopólios dogmáticos.

O último exercício é ir realmente contra a corrente, e cultivar o silêncio. Quem disse que vale a pena ganhar um debate a todo custo?

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(*) SR Esposo, Shooting the messenger: outsiders critical of your group are rejected regardless of argument quality, Br. J. Soc. Psychol. 2013, jan 14. Quem possui acesso universitário via VPN ou nas instalações, eis o link.

12 comentários em “Antitruste

  1. O que seria a política (mantendo a grafia em minúscula em prol do autor do texto) se não fosse esta necessidade de polemizar a partir dos dois – ou mais – lados dos problemas sociais, de agremiar pessoas que corroborem com as mesmas opiniões do grupo, que prefira regozijar-se com os benefícios que advêm com o cargo a levar em conta as demandas imediatas da população eleitoreira entre outras questões que se abatem sobre o social e o individual? Seria uma verdadeira política eficiente que não se preocuparia com as pulsões egóicas de seus eleitos e ocupantes do funcionalismo público no que se refere a conter os avanços da problemática social vista nos estratos da saúde pública, da educação, da segurança e do aumento da miséria em locais onde a pobreza esteja abaixo dos níveis de uma boa qualidade de vida? Não é de hoje que a política traz este ar de ‘mal necessário’ que pode ou não funcionar em um futuro longínquo (ou mais próximo) caso uma nova administração assuma os cargos em vista. Entre partidos e plataformas, o que faz a roda da política girar é conhecer este jogo e saber tirar os proveitos necessários para agir em função das demandas da população, mas sem se queimar com escândalos privados que podem manchar a reputação de uma legenda e de uma posição partidária.

  2. De fato. Até a ciência ou filosofia política deveria ser a-política, ou melhor, a-partidária, como pretendia Aristóteles, segundo parte de seus intérpretes. Mas há correntes da filosofia e da ciência política que advogam a impossibilidade gnosiológica de uma filosofia ou ciência a-política (tenho em mente o marxismo). Qual é a sua posição a respeito? Recentemente, em um debate que os leitores aqui devem conhecer sobre uma questão geopolítica bem delimitada – o papel do Grande Satã na Nova Ordem Mundial – este problema metodológico básico foi posto em questão, quando um dos contendores objetava que era absolutamente impossível que o outro fizesse uma análise desinteressada do problema como pretendia. Mas não nos esqueçamos também de que a ideologia pode fantasiar-se de análise imparcial.

  3. V., bem colocado. Sobre o debate, não o conheço; geralmente passo longe quando o assunto é alguma patacoada* sobre NWO ou globalismo. Não acredito em orquestração em nível mundial, porque isso é impossível. Análise imparcial nunca existe; mas é possível poupar muito do ridículo das análises políticas e denúncias (movimentos de minorias, comunismo, etc) não servindo a nenhum critério interno “nós” v. “eles”. Se alguém posa de imparcial tendo entrado em um debate que é confessadamente de um grupo contra y e outro a favor de y, por exemplo, é fácil saber que não passa de picaretagem. Mas se a pessoa procura, de fato, ser razoável, e o prova com fatos (reconhece erros continuamente, porque é basicamente só o que cometemos, e reconhece argumentos mesmo quando minam a sua posição declarada), então pode-se dizer que estamos diante de uma análise racional.

    Provavelmente, quando alguém diz que é “absolutamente impossível uma análise desinteressada do problema”, como no debate que você citou, é porque no fundo sabem que têm o rabo preso e não são argumentadores racionais, mas picaretas. Reconhecer a dificuldade é uma coisa; desde o início — metodologicamente — afastar uma análise desinteressada é um péssimo sinal.

    Não fique a impressão de que a ciência política, por exemplo, é uma atividade condenada. Não é. Como a sociologia, ela pode e deve se utilizar de estatística e dados objetivos e recusar-se, terminantemente, a se comprometer com algo como conservadorismo, esquerdismo, o que for. O depto. de ciência política da USP conseguiu fazer muito nesse sentido, pelo que tenho visto. Enquanto isso, perdemos o nosso tempo com debates onde todo mundo tem o rabo preso. Mas não há nada de novo sob o Sol.

    * Agradeço a correção de um leitor.

  4. Julio,

    Eu tbm acho orquestração em nível global operacionalmente impossível, mas isso não quer dizer que não seja a ambição e a tentativa de alguns grupos.

    Outra coisa que parece importante observar: a ciência política que faz uso de ‘dados objetivos’ e estatísticas, sabe qualquer um que tenha estudado história o suficiente, muitas vezes atribui a ‘tendências’ e outras abstrações ações concretas de grupos políticos. No fim das contas, só existe ação humana e é possível que um jornalista bem informado acerte muito mais que o sociólogo de ‘métodos rigorosos’ e estatísticas.

  5. Felipe: de ambições desmedidas, inversamente proporcionais ao tamanho e à influência do grupo que a expressa, o mundo está cheio.

    Usar de dados objetivos não obriga o pesquisador a fazer uso de uma ontologia falsa da ação humana. Não sei com que frequência isso acontece (e seria difícil medi-lo), mas a primeira coisa a notar é que um erro não invalida um acerto metodológico. De resto, o pesquisador também deve tomar em conta 1) a impossibilidade de previsão dos movimentos históricos (em uma linha: a história do futuro não é objeto de conhecimento) e 2) os constantes equívocos estatísticos, especialmente quando utilizados para provar grandes teses. Aumentar os dados e diminuir a ambição das teses é sempre uma medida desejável. O que mais vemos são visões de mundo omnicompreensivas (ou, pior, teorias conspiratórias) acompanhadas cada vez de um número menor de evidências empíricas. Não é por acidente que muitos escolheram a paranoia como traço mais significativo das últimas décadas.

  6. Note que essa chamada a “apolitização” ou “desideologização” da política tende a ser veementemente identificada e denunciada como uma estratégia de extrema direita. Por outro lado, essa estratégia é (ao menos parcialmente) contraditória, já que de um grupo constituído para colocá-la em prática também poderia ser dito estar adotando uma ideologia específica. Nesse sentido, o melhor que você pode fazer, individualmente, para manter um certo nível de consistência, é se transformar em alguma coisa compatível com esse cenário ideal, na esperança de alterar (leve mas garantidamente) a estrutura de incentivos na direção correta, tão logo uma suficiente massa crítica seja alcançada. Assim, de fato, o único movimento vencedor pode ser o de recusar-se a entrar no jogo.

  7. Glads, obrigado pelo comentário. O texto está em um nível diferente, e claramente não tem em vista a ação política imediata ou um movimento. Se o que você disse fosse verdade, a política em ação seria inevitável, e tudo seria lido como político. Mas não é assim; o desprezo pela política não é necessariamente uma ação política. É uma atitude humana tout court, como comprar tomates ou falar mal do vizinho. Esse desprezo pela política pode ser usado politicamente? Sim, se for esse o contexto — e então teremos o surgimento de um grupo articulado (mesmo com o uso de um personagem renderizado em 3D, como num dos episódios da série inglesa Black Mirror). É o caso da extrema direita moderna, que você mencionou. Basta ler o que eu digo e o que dizem os membros e simpatizantes dos partidos austríaco (Freiheitliche Partei Österreichs), húngaro (Fidesz), grego (Golden Dawn) e francês (família Le Pen) associados a essa linha, aqui no Brasil os tongos que defendem a “tradição ocidental” na arena política; eles vivem de política, e nós fazemos boas piadas sobre eles.

    Agora, se você quer algo realmente maluco e interessante na área da ação (anti)política, leia a entrevista com Hans-Hermann Hoppe na Dicta 10, que está saindo do forno.

  8. Não entendi a frase “um erro não invalida um acerto metodológico”. Se houve um erro, o método que levou à este erro não é inválido ou, no mínimo, problemático?
    E: um exemplo de ontologia falsa da ação humana seria a de Mises?

  9. Luiz, se o erro surgiu após o cumprimento estrito do método (=caminho para obtenção de resultados), sem nada acrescentado, sim. Mas estávamos, eu e o Felipe, nos referindo a erros independentes do método, ou seja, ontológicos.(*) Para ser bem concreto, um exemplo. Um cientista político faz uso do método estatístico e conclui: “a classe C elege pessoas da classe A”. Esse é um dado objetivo. A conclusão seguiu o método e não disse mais do que os dados permitiam dizer. Agora suponha que o pesquisador diga: “pobres votam em ricos porque têm inveja”. Esse erro ultrapassou o método, ou seja, fez uso de um método para, fora dele, concluir uma falácia. Por isso eu disse: isso é comum, mas não invalida o método [de buscar dados objetivo]. Entendeu o que eu quis dizer?

    Normalmente se invoca erros infantis como esse para combater o uso de dados objetivos. “Não há objetividade, porque veja só, a conclusão de que pobres votam em ricos por inveja, baseada no resultado de que ‘a classe C elege pessoas da classe A’, está errada”. Esse contra-argumento é uma falácia, e nem preciso continuar com detalhes técnicos de lógica material; em suma, não invalida o método estatístico, porque “por inveja” caiu do céu. No entanto, a turma do chute (o que eu chamei lateralmente de cigarras mágicas) gosta de usar falácias desse tipo como desculpa para a sua falta de habilidade exata — o rigor causa preguiça, então preferem ligar-se aos autores que tiram teorias mágicas, sem base objetiva, do chapéu, porque é mais divertido. O problema é que são falsas.

    O exemplo que eu dei de “non sequitur” nunca aparece assim, evidente, nos discursos desses autores. Mas se você tira o acessório, isolando e enumerando afirmações-chave de forma precisa, acaba descortinando o essencial. Por baixo de muita ‘história’ e humanidades muitas vezes só há um encadeamento de falácias.

    Sobre ontologias falsas da ação, eu não me referia a Mises. Não o conheço em detalhe para dizer. Como teoria filosófica, uma ontologia da ação só é completamente falsa quando flagrantemente contraditória.

    (*) Muitas vezes se pode substituir ‘ontológicos’ por ‘lógicos’. A ontologia pode ser vista como um conjunto de fatos (um universo) expressos de modo preciso.

  10. Entendi, Julio, e obrigado por responder.
    Mas só por curiosidade: o chapéu poderia ser o do Mises? Gostaria de saber se você concorda com “A Ação Humana” ou prefere “anti-trustismos” como a ontologia da ação keynesiana dita “propensão marginal a consumir” ou as arbitrariedades (na minha opinião ele é louco) algoritmicas do “equlíbrio de Nash”.

    Abraço.

    Luiz Aquino

  11. Luiz, não entendo de Mises e nem de Keynes. O Joel Pinheiro entende; você pode perguntar a ele. Particularmente, todavia, eu gosto das loucuras do Nash, que eu já apliquei a um caso de arbitragem de que cuido.

  12. “Como observadores externos da picaretagem que sempre ronda a conversa política, em todo o seu espectro, dos bolcheviques aos conservadores caipiras, estamos em posição privilegiada para dizer que ao menos nos fornecem matéria para a imprecação e para o humor.”

    concordo com tudo menos o `sempre` da picaretagem. acho que os dois lados são grotescos e cheios de picaretas, mas também de muita gente `honesta` e burra ou de vocabulário político ingênuo.

    e discordo que o problema seja envolver política nas humanidades, porque não acho que seja possível exclui-la (é possivel, por exemplo, assinalar um vocabulario por ex. estetico que nao lidará com política, mas isso seria, ao que entendo, uma decisão política).

    a questão é como tê-la, e não extirpá-la (acho).

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