Censura Disfarçada

 

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Um amigo pesquisador, que desenvolve seu trabalho em algumas universidades americanas, desabafou para mim dizendo que tem evitado frequentar as áreas demarcadas naquelas instituições com o selo safe space (espaço seguro). Explico. O “espaço seguro” não se resume, como se intui, numa área onde  as crianças podem brincar com tranquilidade ou atiradores podem exercitar sua pontaria sem preocupação de danos a terceiros. O conceito, digamos, recebeu um upgrade no uso e passou a abranger as ideias e as palavras no debate universitário.

O “espaço seguro”, destinado, em princípio, a garantir uma atitude inclusiva às minorias e, assim, evitar sentimentos odiosos, hoje, tem sido desvirtuado em prol da agenda politicamente correta: incorporado na pauta da política estudantil, tornou-se um expediente para evitar que assuntos polêmicos sejam dialogados, mesmo com argumentos de razões públicas. Mas isso não seria, no fundo, uma ameça à liberdade de expressão, justamente num ambiente propício à abertura de ideias para o estudante e ao saudável confronto de seus posicionamentos com os dos outros?

Imagino a cena. Entra-se numa sala de convivência discente de uma faculdade e, ao alto, bem visível para todos, pode-se ler a seguinte inscrição: ”Nesse espaço, são vedados a homofobia, a transfobia, a misoginia, o racismo, o classismo, o machismo e qualquer outra forma de discriminação lesiva ao estado psicológico alheio”.

Na prática, qualquer um que se diga ofendido, por esta ou aquela expressão, acaba por encerrar o debate antes mesmo de começá-lo, mesmo que a proposição alheia seja dotada de um mínimo de racionalidade argumentativa. Não há livre trânsito de ideias. Apenas uma mão de direção. A mão do conformismo intelectual, pois “não se pode ameaçar” a segurança emocional alheia. Quando se fomenta a proliferação de “espaços seguros”, alimenta-se a famosa menoridade intelectual kantiana e o debate, para a comunidade acadêmica, faz menos do que pode e, para a socidade, não faz o que deve.

Ao que parece, quando um estudante queixa-se de uma ameaça real e imediata à sua “segurança” no ambiente acadêmico, no fundo, ele, implicitamente, está a reclamar da “ameaça” de um discurso contrário não desejado e a solicitar, por via dos “espaços seguros”, uma espécie de contramedida contra as moléstias emocionais suscitadas por ideias inquietantes.

Um sujeito afirma: “a família, como a união mais ou menos durável, socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos, é um fenômeno universal, presente em todo e qualquer tipo de sociedade”. E segue a resposta: “sua noção de família é homofóbica, discriminatória às minorias familiares e ofensiva aos meus pensamentos a respeito do assunto”. E ponto final na discussão.

O passo consequente será o de advertir, por exemplo, num material como um livro, que “o conteúdo desta obra é potencialmente traumático, por propiciar o risco de uma experiência negativa ao leitor”. Depois, teremos o index de leituras proibidas: “Mercador de Veneza”, de Shakespeare, por disseminar o antissemitismo; “Caçadas de Pedrinho”, de Lobato, por ser racista; “Orgulho e Preconceito”, de Austen, por fomentar a sociedade patriarcalista fundada na família “heterossexual” e “Ilíada”, por retratar a misoginia homérica.

Como se pode notar, o tal “espaço seguro” não tem nada de seguro. Não é seguro para uma reflexão profunda das ideias e nem para um diálogo construtivo e cordato entre posições opostas. É uma zona onde a censura disfarça-se de respeito e, assim, presta-se para a proliferação do vitimismo sociológico, da intolerância do politicamente correto e para o patrulhamento de quem se “atreve” a suscitar algum tipo de pensamento que afete o estilo de vida e as suscetibilidades puritanas dos defensores de tais espaços. Noutra época, quem desafiava a censura, era tido como rebelde. Hoje, é visto como um intolerante…

Ao final de nossa conversa, respondi ao meu amigo que, com o intuito provocativo, arrancaria uma das placas de “espaço seguro” e colocaria outra no lugar, com os seguintes dizeres: “Espaço inseguro. Aqui, suas ideias serão apreciadas pela solidez e coerência e não por aquilo que você é”. Com respeito à divergência, é o que penso.

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de direito, doutorando em Filosofia e História da Educação, pesquisador, professor, coordenador do IFE Campinas e membro da Academia Campinense de Letras (fernandes.agf@hotmail.com).

Artigo publicado no jornal Correio Popular, 06.05.2015, Página A-2, Opinião.

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