É um dado exato que 90% de toda a informação que temos hoje foi criada nos últimos dois anos.
Então, (i) aos que lidam com matéria abstrata, o melhor é selecionar; (ii) aos que lidam com fatos, o melhor será engolir tudo, digerir e fazer inferências: a já cansativa ideia de Big Data vai mesmo, ao que parece, mudar tudo. E com ela os avessos a tecnologia serão finalmente jogados para escanteio. Já é possível prever em parte o resultado de processos judiciais, local e hora de crimes, potencialidade de investimentos; o grau de fidelidade das previsões irá aumentar. A divisão entre ciências humanas e exatas já está a perder sentido e, como dizia alguém que trabalha há 30 anos com o assunto, os polímatas já são material necessário.
Quanto ao primeiro grupo, recomenda-se o novo trabalho do capitão Daniel Dennett, do qual o Guardian publicou fragmentos aqui. Como não dar ouvidos a um velhinho que sabe pilotar um barco?
Alguns atalhos são valiosos:
– Admitir erros em público sempre foi prática da ciência, que bem poderia inspirar filósofos e intelectuais, gênero pré-histórico e raramente afeito a aprender com os próprios erros.
– Respeitar o oponente. Inclusive facilitar a sua vida, sintetizando-lhes os argumentos de modo a arrancar-lhe um “poxa, você disse melhor que eu o que eu queria dizer”. Creio que seja o mais difícil: no Brasil, acostumamo-nos a classificar oponentes como inimigos, “malditos esquerdistas”, “filhos da UDN”, sem perceber que agimos exatamente como o pior de nossos pesadelos argumentativos.
– Não multiplicar entidades sem necessidade (a famosa navalha de Occam; inclusive seria bom navalhar todas as variantes de Occam: Okham, Ockam, Ockham). O uso de argumentos sobrenaturais ou religiosos fora do seu âmbito é um exemplo de como não comportar-se em um debate filosófico; desde quando, pergunta Dennett, invocar um ser metafísico e além de toda compreensão é buscar a explicação mais simples?
– Não perder tempo com 90% da porcaria que se produz. Quer debater o argumento ontológico para a existência de Deus? Jogue Dawkins e outros escritores de auto-ajuda pela janela. Comece com Tomás de Aquino, que o rejeitou, e Alvin Plantinga, que o sufragou integralmente. Em outras palavras, esqueça as caricaturas e concentre-se no que de melhor se produziu — em todos os sentidos — sobre o assunto, especialmente ao criticar uma posição ou visão de mundo. Sobretudo não refute espantalhos. Ops.
– Tudo que parece profundo demais deve ser ignorado (uma característica necessária dos abismos é não terem fundo). Esqueça longos discursos sobre o o Mal, substantivos com letra maiúscula, a educação do homem magnânimo, o apocalipse, a desconstrução da privacidade em tempos pós-narratológicos. E quem ainda aguenta esse tipo de coisa? Ah, era isso — procure responder a perguntas retóricas.
Julio, é preciso muito boa vontade e condescendência para afirmar taxativamente que “admitir erros em público sempre foi prática da ciência”. Pode ter sido em termos ideais – naquela imagem que os cientistas ateus têm de si mesmos e que gostam de apresentar publicamente – mas aconteceu poucas vezes na prática, vide os escândalos e fraudes científicas que todos conhecemos. A grande pergunta é: será que o próprio Dennett está disposto a seguir os atalhos que ele aponta e a admitir humildemente eventuais implicações teológicas a que uma discussão verdadeiramente científica (ou seja, sem a influência do ateísmo militante) pode levar? Depois de assisitr ao documentário da BBC “Os 4 Cavaleiros do Ateísmo”, eu sinceramente duvido.
Fernando, onde é que alguém falou em cientismo e ateísmo? Eu falei de ciência; quando um cientista erra, ele é obrigado a reconhecer o seu erro, porque normalmente é fácil mostrar onde ele está. Difícil é admitir um erro quando não existe clareza, como em matéria ideológica. Como já falamos aqui, fraudes são onipresentes em qualquer empreendimento humano. Se depõem contra a ciência, depõem contra qualquer outra área: filosofia, religião, tecnologia, direito. A premissa, felizmente, é falsa.
O outro ponto: dados obtidos e interpretados restritivamente pela ciência não levam a qualquer consequência metafísica, que dirá teológica. Novamente, é preciso trocar o disco! Bater em espantalho (cavaleiros do ateísmo e bobagens semelhantes) não leva a lugar algum.
Pelo contrário,
Eu realmente nunca vejo cientistas admitindo seus próprios erros. Normalmente, mesmo quando enfrentam uma barreira de dados, eles preferem se encastelar em seus feudos tenurados e manter a validade de sua obra publicada. Isso é o que aconteceu em quase todos os debates científicos de que tenho notícia. Normalmente para um avanço científico valer, tem de se esperar uma nova geração que aceite que determinada teoria foi provada. E isso que falei vale inclusive para o próprio Dennett que foge dos paradoxos absurdos de sua teoria da mente, enfim…
Embora o exemplo talvez tenha sido infeliz, a constatação de que cientistas rarissimamente admitam seus erros é um dos fatos empiricamente mais comprovados que posso imaginar.
E “ex definitio” é latim errado, o correto é “e definitione”.
Gepeto, sim, o exemplo foi infeliz. Também acho absurdas algumas consequências da teoria da mente de Dennett, mas não é minha área. Quanto aos fatos empiricamente comprovados, aguardo as fontes. Uma das vantagens de conviver com cientistas é ter experiência em primeira mão.
Diz-se na verdade “ex definitione”, de uso corrente na literatura ‘acadêmica’ alemã e inglesa dos sécs. XVII-XVIII, e ainda usada entre os ingleses. “E definitione” não tem uso algum. Esta, sim, é minha área. Mande um abraço ao Pinóquio.
Júlio, quando você fala em a ciência, isto não seria uma entidade com maiúscula?
Paulo, eu nunca usei assim, e nem me parece uma boa prática. História, sociologia, ciência. Tudo fica mais pé no chão com inicial minúscula.
Divinizar a ciência é um erro grotesco. Não há nada de grandiloquente em estatística e métodos formais. O ponto é que funciona.
Julio,
“desde quando, pergunta Dennett, invocar um ser metafísico e além de toda compreensão é buscar a explicação mais simples?”
O que é “um ser metafísico”? E por que invocá-lo não pode ser a explicação mais simples?
E
“Tudo que parece profundo demais deve ser ignorado ”
Mas, isso não é condenar-se à ignorância? Não é próprio do ser humano e, mais especificamente, do espírito científico buscar explicações de tudo, por mais ‘profundo’ que algo seja?
Humm.. esse admitir erros dos cientistas parece mais o direito de resposta dos jornais – ninguém lê.
Lembro quando li sobre a fraude do homen de Neanderthal. Foi uma nota de canto de página na revista Superinteressante. Compare isso com o fuzuê na época da suposta descoberta…
Lembro na minha aula de evolução no ensino médio… Todos na sala me ridicularizavam por ser evangélico e não acreditar na evolução. Na aula a professora disse que era 98% a probabilidade de o homem ser da linhagem do macaco. Aí eu perguntei: Qual é o DNA mais parecido com o do homem: Ela disse “O rato”. E pronto, ficou por isso mesmo. Não admitiu o absurdo da afirmação anterior. Se eu não tivesse perguntado…
André, parei em “Superinteressante” e na professora do ensino médio.
Wagner, também não sei o que é um ser metafísico. Por esse motivo, nunca é a explicação mais simples, e sempre a mais obscura.
Não. Condenar-se à ignorância é buscar a ignorância. Buscar explicações, não.
Não há necessidade apagar seu erro de declinação, Julio, como apagou aquela referência ao Olavo.
Sobre ciência, não precisamos ir muito longe: Thomas Kuhn, Paul Feyerabend, dois historiadores e filósofos da ciência que apresentam toda a vastidão de referências de tudo isso que falo. Eu sei que não são pensadores obscuros que te fazem parecer cool, são até meio batidos, mas servem como antídoto a essa sua visão ingênua da ciência. E você encontra em qualquer livraria deste país.
Abraços (Pinóquio te deseja também)
Gepeto
Parou com razão..
Mas dá um desconto… eu tinha 17 anos…
Disse isso só pra demonstrar a divulgação da ciência aos mortais…
Se o mea culpa dos cientistas fosse relevante, seria tão percebido quanto a descoberta inicial… isso que eu quis dizer
ah… e a professora tinha mestrado na usp..
ih.. parou de novo
Você que errou o uso, Gepeto. O erro apareceu numa versão antiga do comentário (não consegui recuperar), que ficou postado porque o servidor caiu ontem à tarde. Que obsessão com o Olavo! Isso prova a mediocridade massiva desse país.
Kuhn e Feyerabend estão um pouco desatualizados, mas são referência obrigatória. Abraços!
André, isso acontece mesmo e é uma lástima. As humanas da USP são ainda outra lástima (não sei como é em biológicas, mas o depto. de química é excelente).
Julio,
” também não sei o que é um ser metafísico. Por esse motivo, nunca é a explicação mais simples, e sempre a mais obscura.”
Não entendi. Você não sabe o que Dennett quis dizer com “ser metafísico”? É isso? Ou que o Dennett falou besteira e apenas, o que é mais provável, quis jogar todo e qualquer ente sobrenatural (REAL ou não) dentro desse ‘saco’ para caber em sua ideologia?
“Não. Condenar-se à ignorância é buscar a ignorância. Buscar explicações, não.”
Mas se o Dennett diz que devemos IGNORAR tudo que é “muito profundo”, então, imagino que ele também não queira que encontremos explicações para essas coisas. Não? Ou é possível explicar aquilo que ignoro?
Wagner, leia o texto original referido.
Julio,
A que texto referido você alude? Há algo ‘linkado’ em seu texto e que eu não esteja conseguindo ver?
Caro Julio Bacon,
A inflação dos 90% mencionados no início do seu post, seguramente, deve-se ao lixo virtual produzido nos últimos anos. Tenhamos em mente que até a população vivente nas favelas do Brasil e da Índia, por exemplo, recentemente, passou a inundar a internet com tissunamis de dados. Some-se a isto a digitalização crescente do lixo burocrático em todos os níveis governamentais.
Mas o que impressiona são outros 90%. Os 90% mencionados no texto de Dennet. Se a lei dos 90% por ele suscitada é correta, a “informação” gerada pelas fontes sérias, ou supostamente sérias – pelas ciências, pela literatura, pelo direito, pelas artes em geral, pela filosofia, pelo jornalismo profissional, pela apologética religiosa, por livres pensadores, é supérflua. Isso é desanimador, por um lado, entusiasmante por outro. Desanimador por que só muito improvavelmente, a custa de muito suor, virtú e auxílio da fortuna (principalmente auxílio da fortuna) integraremos o subconjunto dos happy few responsável pela produção dos 10%. E entusiasmante porque ao menos não precisaremos perder tempo com os 90% de refugo informativo, desde que tenhamos o faro apurado para o filé mignon. Fareheit 451 para 90% dos livros e revistas do mundo. Publicações como a Dicta tem o dever de servir de filtro para os 10% de informação relevante.
Por fim duas perguntas:
(1) Não faltaria uma regra na lista de Dennet, qual seja, publicar menos? Refiro-me ao problema estrutural do publish or perish, e da consequente má qualidade dos trabalhos, reconhecido pela própria comunidade acadêmica; e
(2) qual seria o âmbito adequado para o uso dos argumentos sobrenaturais? Ainda tenho o preconceito de que os teólogos, filósofos e peritos católicos – seus 10% melhores – têm seguido e ainda seguem as “seven tools” de Dennet (e de que são os únicos mandatários do sobrenatural que tem o cuidado de fazê-lo). Creio, por exemplo, que até um intelectualmente limitado exorcista não descarta, in limine, as respostas mais simples antes dei iniciar os trabalhos. Ou num certo ponto se cansam e “jump to conclusions!”?
“Essa experiência me fez perceber um fato notável: uma nova verdade científica nunca triunfa por conseguir convencer os adversários, mostrando-lhes a luz, mas porque esses adversários morrem e surge uma nova geração para a qual essa verdade é familiar.” Autobiografia Científica, Max Planck
Wagner, está linkado na palavra “aqui”: http://www.guardian.co.uk/books/2013/may/19/daniel-dennett-intuition-pumps-thinking-extract
Vinícius, é uma lista de atalhos.
Não sabemos o que forma esses 90% produzidos nos últimos dois anos, mas parte dele é relevante. São dados que envolvem preferências da sociedade, ciência, tecnologia, empresas, economia e tudo o que se pode imaginar. Definitivamente não é só lixo; muito longe disso.
(1) Tem outras “regras” no livro dele. Mas, sim, eu acredito que seja um bom conselho o de publicar menos, e sobretudo não praticar o fatiamento de teses para publicação em partes (salsicha científica, como chamam). Até coisas como impacto de publicações estão sendo questionadas, e muitos propõem o fim de critérios desse tipo. A comunidade evolui com as críticas externas e internas. Mas sempre vai haver fraude e má qualidade misturada na ciência. Quando a intelectualidade começar a propugnar consistentemente a excelência científica no Brasil (por enquanto, só em ciências exatas, físicas e biológicas temos isso), e isso começar a trazer resultados, serei o primeiro a criticar as más práticas e semear um pouco de ceticismo.
(2) O âmbito adequado para uso de argumentos sobrenaturais é na ascética e na teologia, mesmo que seja numa conversa entre dois crentes. Eles não têm cabida em debates públicos fora da teologia, porque suas premissas não são aceitas. Eu não aceito as premissas de um muçulmano ou de um espírita quando tenta trazer a fé para um debate, etc.
A fé, na linha tomista, não é um argumento, porque não é um conhecimento. (Abra a Suma e os resumos de teologia; você sabe do que estou falando: a afirmação de que o conteúdo da fé não é um conhecimento é categórica.) Num debate filosófico ou científico, o conhecimento que se discute não envolve o sobrenatural, assim como não envolve fantasmas e magia. É diferente a questão de serem coisas diferentes a teologia, o espiritismo lato sensu e a magia. O fato é que não são conhecimentos. Se digo que o universo se expande, não há como enfiar na argumentação uma premissa que não se baseia na expansão observável, direta ou indiretamente, do universo. Isso se espraia por qualquer outra questão. Existe até lugar para a metafísica em sentido filosófico, questionável, é verdade, porque proposições metafísicas procuram falar do ‘todo’, da constituição das coisas; sem, todavia, qualquer apoio empírico direto. A necessidade metafísica é uma restrição da necessidade lógica, e por isso envolve infinitas possibilidades, ainda, no reino físico. O princípio da não-contradição em sentido metafísico — que atinge qualquer universo possível, do nosso ao de um romancista tresloucado — diz apenas que uma coisa não pode ter e não ter ser ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Que isso diz sobre a constituição de um universo concreto? Praticamente nada, embora evite falsidades flagrantes e permita desmontar certos argumentos absurdos.
A partir de um de seus links, Julio, eu fui parar no blog de Stephen Wolfram, em http://blog.stephenwolfram.com/.
O post mais recente (14/05/2013) começa assim:
“I’ve been curious about Gottfried Leibniz for years, not least because he seems to have wanted to build something like Mathematica and Wolfram|Alpha, and perhaps A New Kind of Science as well—though three centuries too early.”
“Mathematica” é o software que Wolfram desenvolveu. “Wolfram|Alpha” é o mecanismo de conhecimento que ele projetou. E “A New Kind of Science” é o livro que Wolfram escreveu.
Ou seja, Wolfram interessa-se por Leibniz, antes de mais nada, porque este queria ter sido Wolfram, mas tal empreendimento ainda era imaturo na Alemanha do séc. XVIII.
Não sei se tive azar e escolhi um dia ruim para ser apresentado ao seu blog. Ou talvez Wolfram seja um amante da ironia e eu é que não estou familiarizado com isso. Mas o fato é que parei por aí.
Felipe, hullo! É, esse aspecto do blog dele também me incomoda. Embora os projetos sejam mesmo semelhantes (o de Leibniz e o de Wolfram), ter um insight desses no séc. XVIII é mais valioso que qualquer um que Wolfram sonhe ter tido. Mas quem se preocupa com isso se está rico? Hehe. Anyways, se não há interesse nesse assunto, não vejo por que ir adiante. Abração.
Julio,
Com muitos dias de atraso, obrigado pela resposta. Mas fica ainda uma questão: parece-me que você reduz o significado da palavra conhecimento àqueles fatos que são objetivamente observáveis ou demonstráveis a quaisquer pessoas sob determinadas condições. Mas sabemos de uma infinidade de fatos que só nós presenciamos ou de que nos conscientizamos que não podemos demonstrar a ninguém não obstante não tenhamos a menor dúvida de sua veracidade. Exemplo: atos que praticamos longe das vistas de qualquer pessoa, nossos próprios pensamentos inconfessáveis, etc. Não são conhecimento? Talvez conhecimentos imprestáveis cientificamente, mas ainda sim conhecimento. Outra coisa, sempre achei impossível separer fé de conhecimento, uma vez que, em qualquer ciência, quando o cientista inicia seu trabalho, parte de um número incomensurável de premissas cuja veracidade ele não pode verificar, uma por uma, só podendo confiar, ou por assim dizer, ter fé, que sejam verdadeiras. Não?
Abraços.
Abraços.
Vinícius, eu acredito que esses outros fatos não registrados cientificamente, se são fatos, são conhecimento. E também que o cientista parte de um número enorme de premissas que não verificou ele mesmo — mas que outros verificaram. Lembre-se que o senso comum que o acompanha (parte daquilo que não é questionado ou verificado explicitamente) é fruto da experiência, e não da fé. Quando falo em “objetos de fé”, falo em sentido estrito. Se um cientista usa qualquer premissa de fé, está a fazer qualquer coisa, menos ciência.