Debates – Editorial

Assim como o pensamento é individual e interiorizado, o diálogo é o pensamento exteriorizado e coletivo. Os dois estão tão intimamente relacionados, que onde houver um se encontrará o outro e, vice-versa, onde faltar um faltará o outro, como se pode lamentavelmente verificar muito bem em regimes totalitários e culturas fundamentalistas. A receptividade e o pluralismo congênitos da sociedade brasileira, por sua vez, parecem fazer dela um terreno particularmente promissor para o diálogo. Bastará, contudo, passar ligeiramente em revista algum simpósio acadêmico ou uma disputa política ou cultural qualquer na grande mídia para se ver – entre seus intermináveis monólogos e conversações soltas, entre panegíricos de um lado e insultos de outro – o quão raro é o genuíno debate de idéias no país. Toda discussão supõe certa disciplina e técnica, e pressupõe, acima de tudo, um acordo de base e um esforço comum de busca da verdade além das impressões pessoais. E nenhum “respeito às diferenças” por si só e nem mesmo a mera troca de opiniões jamais serão suficientes para se lograr esse objetivo. Muito além disso impõe-se o esforço positivo de expor com clareza a própria posição, de compreender a alheia a partir de seus próprios princípios e, finalmente, o passo decisivo: distinguir em uma e outra a verdade do erro e, em última instância, da mentira, à qual ninguém deve respeito algum – bem ao contrário, tem a obrigação de reprimir com um taxativo Não.

Foi com considerações como essas em mente que Dicta & Contradicta foi batizada. Desde então temos trabalhado para fazer jus a este nome. Conscientes de que há ainda muito a se fazer, damos agora mais um passo nesse sentido.

A partir de março nosso site abrirá mensalmente um fórum de discussão em torno de um dos artigos impressos na revista. Eduardo Wolf, que nos ofereceu na última edição uma crítica precisa a Um mestre na periferia do capitalismo de Roberto Schwarz, inicia o debate deste mês com uma apreciação do Breve discurso sobre a cultura de Mario Vargas Llosa publicado no mesmo número.

O próprio Vargas Llosa expôs com lucidez o curto-circuito desencadeado por uma intelectualidade que, à custa de promover o diálogo criticando todo tipo de dogmatismo, acaba por impor – conscientemente ou não, pouco importa – um dogma próprio, a saber, de que não há hierarquia possível dentro de uma determinada cultura e dentre as diversas culturas entre si. O que é irônico, se não fosse trágico, é que esse mesmo princípio elimina fatalmente toda possibilidade de crítica, posto que esta, em seu sentido etimológico mesmo de “distinção” (krísis), exige necessariamente um critério objetivo independente das opiniões subjetivas através do qual se possa justamente afirmar a validade de uma delas em oposição à invalidade da sua contrária. Na falta deste, todo juízo não só é uma simples opinião individual, como não pode pretender ser mais do que isso. E se é assim, se a possibilidade de se diferenciar um juízo falso de um verdadeiro é negada a priori, então não há nenhuma razão para se contrapor uma opinião qualquer a outra. Em outras palavras: não há diálogo possível.    

A isso só podemos dizer Não. O diálogo é, sim, possível, e com a presente iniciativa pretendemos estabelecer mais um ponto de partida na sua direção.

E, para que se possa passar da possibilidade à realidade, espera-se, mais do que nunca, uma contra-partida do leitor, a quem, como sempre, as portas do nosso site estão abertas. Desejamos uma boa leitura e uma boa discussão.

4 comentários em “Debates – Editorial

  1. Olá! Costumo ler alguns textos da Revista, mas nunca me motivei a comentar por não me considerar apta. Esse texto de apresentação, contudo, me motivou especialmente porque trata de temas que me são muito caros – a importância do discurso, a verdade e a crítica. E o mais curioso foi a coincidência de que hoje mesmo passei cerca de quatro horas conversando com uma amiga sobre esses temas. Uma das coisas que falamos foi sobre a proximidade entre os extremos. Brincamos que algumas escalas deveriam ser circulares. Na mesma linha do argumento expresso ali no texto sobre os dogmas. Os termos que usamos foram: aquele que diz que ninguém pode acreditar numa verdade absoluta cria por si próprio outra verdade absoluta – a de que não se pode acreditar em verdades absolutas. No fim, mesmo que defendendo posições opostas, comportam-se da mesma maneira dogmática – onde não há discussão possível. Eu acredito que sobre os mistérios do mundo as pessoas podem acreditar no que quiserem, desde que sua fé não justifique a submissão dos demais (seres) nem a supressão das demais fés.
    Sobre o diálogo e a verdade, um texto da Hannah Arendt sobre o G. B. Lessing me foi uma iluminação. Acho que dialoga (hehe) com o texto da Dicta.

    “Pois o mundo não é humano simplesmente por ser feito por seres humanos, e nem se torna humano porque a voz humana nele ressoa, mas apenas quando se tornou objeto do discurso. […] A grandeza de Lessing não consiste meramente na percepção teórica de que não pode existir uma verdade única no mundo humano, mas sim em sua alegria de que ela realmente não exista e, portanto, enquanto os homens existirem, o discurso interminável entre eles nunca cessará. Uma única verdade absoluta, se pudesse existir, seria a morte de toda aquelas discussões…E isso teria significado o fim da humanidade. […] Hoje em dia é raro encontrar gente que acredite possuir a verdade; ao invés disso deparamo-nos constantemente com os que estão seguros de estarem certos. A diferença é básica: a questão da verdade no tempo de Lessing ainda era uma questão filosófica e religiosa, ao passo que nosso problema de estarmos certos surge no interior da ciência…Ao dizê-lo deixo de lado a questão de se a alteração nas formas de pensamento se mostrou benéfica ou perniciosa para nós. Apesar da diferença entre as noções de possuir a verdade e estar certo, estes dois pontos de vista têm algo em comum: os que assumem um e outro não estão preparados, em caso de conflito, a sacrificar seu ponto de vista à humanidade ou à amizade”

    Lessing opunha verdade (no sentido filosófico e religioso) a humanidade. Para ele a divergência pacífica era a base do discurso (amizade) e este, matéria humana. Concordo sem pestanejar com ele. E aqui é onde creio que se encontra a tolerância às diversas culturas, aos diversos pensamentos -DESDE QUE eles não eliminem o dicurso, não se baseiem na supressão do outro – de dentro ou fora de seu sistema cultural. A verdade que nos é acessível é esta sobre estar certo ou errado – sobre os fatos mundanos. Na ciência, nos fatos, nas decisões coletivas, nas questões básicas de moral, ética. Aí existe o diálogo que busca um consenso, uma verdade – pilares comuns, pontos de referência. E aliado a esse o diálogo incessante sobre a verdade que não é acessível a ninguém, mas é produto de fé. Por fim, sobre não sacrificarmos um ponto de vista em nome da humanidade – ainda acontece – mas Arendt escreveu à luz (ou melhor, trevas) da II Guerra Mundial e, portanto, sendo um pouco mais pessimista do que algo com o que eu gostaria de concordar.

    Parabéns à revista!
    E espero ter contribuído um pouquinho!
    Abç.

  2. Pingback: duas contribuições decisivas à difusão dos valores civilizacionais entre os povos em escrita « Chá das Cinco

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>