Mente redutível ao Cérebro?

Se você coloca um pedaço de chocolate em sua boca, você sente um gosto. Ao mesmo tempo, uma reação ocorre no seu cérebro; uma reação que se iniciou nas papilas gustativas da sua língua e mandou sinais elétricos crânio adentro.

Se um neurocientista, com conhecimento perfeito do cérebro, observar seu cérebro enquanto você prova este chocolate, ele saberá dizer, apenas observando suas sinapses, que você está agora experimentando o gosto do chocolate. E mais: se ele, em seu laboratório, abrir sua cabeça e reproduzir essa mesma exata reação que seu cérebro teve quando você provou o chocolate, ele produzirá, em você, a mesma exata sensação.

No entanto, nessa história toda, há algo a que esse neurocientista, ainda que dotado de pleno conhecimento sobre o cérebro, não tem acesso: a sua experiência enquanto tal. Ele sabe que você está sentindo o gosto de chocolate; ele sabe como produzir em você a sensação do gosto de chocolate; mas ele não experimenta esse gosto. Há algo nesse processo que é restrito apenas a você e à sua subjetividade.

É esse dado básico e irrefutável – explorado por exemplo por Thomas Nagel no clássico ensaio “What is it like to be a bat” -, essa distinção incontornável entre processo físico cerebral (observável) e experiência subjetiva (não-observável), que embasa a tese de que, embora intimamente ligados, não dá para falar em uma identidade forte, plena, entre mente e cérebro. O gosto que você sente ao comer o chocolate não é as sinapses neurológicas que acompanham, ou até mesmo produzem, esse gosto em sua consciência (no sentido de tudo aquilo de que estamos conscientes, e não no de “consciência moral”); gosto que não está no cérebro (assim como a cor vermelha que está em sua consciência quando você olha uma maçã não está, de maneira alguma, no seu cérebro). Se fossem, então conhecendo um, conheceríamos o outro. Não é o caso.

É possível traçar uma forte correlação, talvez perfeita, entre o processo físico e a sensação subjetiva, mas não é possível identificá-los; afinal, há coisas que se predicam de um que não se predicam do outro. E se aceitarmos que um causa o outro, ainda ficamos com o problema: como poderia tal causalidade se dar?

14 comentários em “Mente redutível ao Cérebro?

  1. Uma pergunta que sempre faço aos materialistas “fanáticos” é o que explica melhor o amor: as sinapses que ele provoca ou o poema de Camões (Amor é fogo que arde sem se ver,
    é ferida que dói, e não se sente;
    é um contentamento descontente,
    é dor que desatina sem doer. (…).

    O que você usaria para explicar o amor a um adolescente?

  2. Pois é, Wagner.

    Isso me lembra um comentário do P. F. Strawson que conheci via uma resenha do Nagel. Os materialistas/fisicalistas chamam as explicações usuais, pré-filosóficas da ação humana (p. ex: dizer que você pegou uma maçã porque tinha fome) de “folk psychology”; como querendo dizer que não passam de crendices populares. Strawson, ironizando a expressão, diz que a “folk psychology” é aquele campo inferior do saber usado por “such simple folk as Shakespeare, Tolstoy, Proust and Henry James.” – Skepticism and Naturalism: Some Varieties.

    Contudo, note que admitir a riqueza da descrição literária de nossos estados interiores não constitui estritamente uma refutação do fisicalismo. Mas realmente, dá um mal-estar: então o que produzimos de mais sublime, e que dá mais insights profundos sobre a vida, não passa de um amontoado de impressões equivocadas?

  3. Martim, não há “fetiche” nenhum. O conhecimento de como nosso corpo, e em particular nosso cérebro, funciona é essencial para entender o ser humano. Tanto que, historicamente, os filósofos que mais pensaram a relação entre alma e corpo sempre se dedicaram também ao estudo de como nosso corpo funciona: Aristóteles e Descartes são bons exemplos.

    Hoje em dia, a ciência natural avançou demais para que um filósofo de formação tenha tempo de se dedicar à parte técnica dela – realizar experimentos, medir resultados. Mas é ainda imprescindível se manter a par de seus resultados e até ajudar na sua possível interpretação. Não é à toa portanto que os mais relevantes de hoje em dia mantenham-se cientificamente atualizados: Daniel Dennett, Thomas Nagel, John Searle, Colin McGinn; para citar alguns. Sem falar no trabalho desses mesmos filósofos em elaborar experimentos teóricos que por sua vez podem ajudar os cientistas.

    Pegue um experimento como o de Benjamin Libet, de 1980, que aparentemente (em 2009 levantaram-se algumas críticas experimentais a ele) mostrou que o cérebro do agente dá sinais da ação que ele vai tomar antes mesmo do agente ter tomado a decisão consciente de tomá-la. Ou seja, o neurocientista observando o cérebro num scan poderia prever a ação do indivíduo antes mesmo do indivíduo decidir realizá-la conscientemente. Será esse resultado compatível com as diferentes concepções de livre arbítrio que temos? E com a de escolha consciente? Trabalho para os filósofos.

    Enfim, não há fetiche; apenas desejo de conhecer a realidade, que é o que move tanto a filosofia quanto a ciência. E como a realidade é uma só, é natural que um se interesse pelo que o outro faz.

  4. Joel:

    Uma explicação de quatro parágrafos para contrargumentar uma pergunta provocadora de uma linha – e depois afirma que não é “fetiche”?

    Em todo caso, Feliz Natal e bom 2013 para vc.

    Abs

    Martim Vasques da Cunha

  5. Martin,

    Admitindo-se que seja “fetiche” (que eu não entendi porque você fez tal ilação): muda algo na argumentação do Joel?

    Feliz Natal e ótimo 2013!

  6. Joel,
    Alguns comentários.

    Acho que um bom argumento contra o fisicalismo vem do fato de que uma pessoa depressiva sob efeito de um antipressivo perfeito, isto é, com os níveis hormonais equilibrados dificilmente seria considerada uma pessoa “bem” ou “curada”. Se tudo fosse apenas uma questão puramente física não haveria porque não achar isso. O nosso senso comum meio que alerta contra. além disso, ainda que o fisicalismo esteja na moda (não seria apenas um epifenômeno [eles gostam dessa palavra, hehe] de um cientificismo moderno — cientificismo esse que a ironia do Martim capturou muito bem?), ele ainda precisa responder de uma forma minimamente aceitável o problema dos qualia aqui mencionado, para não falar em outros. E eu, ainda que apenas um leigo, não consigo ver uma resposta satisfatória. Você vê um bom argumento a favor do fisicalismo, além de um simples triunfalismo científico?

  7. Bruno,

    Sim, vejo ao menos um bom argumento. Manipulando o cérebro, já se consegue produzir um monte de tipos de efeitos mentais. Tudo o que ocorre no cérebro são processos físicos; nossos membros se mexem como resultado desses processos cerebrais (tanto que já se tem membros eletrônicos que se mexem sob impulsos cerebrais como se fossem membros normais).

    Por acaso uma sinapse sequer deve ocorrer contrariamente às leis da física? É quase certo que não. Sendo assim, tudo o que ocorrer no cérebro segue simplesmente as leis da física. E aí não há espaço para a mente ter alguma eficácia causal.

    A meu ver, para o mentalismo (entendido como “em pelo menos alguns casos a mente tem eficácia causal em processos do mundo físico”) ser verdadeiro, é preciso que as leis físicas acomodem certa indeterminação numa magnitude relevante para os processos cerebrais, e que essa indeterminação possa ser determinada por algum tipo de intencionalidade do sujeito. É isso que argumenta o físico quântico Henry Stapp em Mindful Universe. Se, por outro lado, mostrar-se que os fenômenos do cérebro são 100% determinados fisicamente, então de fato não sobra espaço para a mente ser eficaz em nada.

    Mas sim, os argumentos que você levanta me parecem um bom caminho para mostrar que há algo de errado com o fisicalismo e que portanto o cérebro não deve ser tão simples assim. Por outro lado, às vezes parece que eles dependem demais em algo que (como no argumento dos qualia) não passe de uma incapacidade cognitiva nossa, mais do que de um insight metafísico.

    O argumento do antidepressivo perfeito me parece falho, porque ninguém imagina que já conhecemos plenamente o cérebro em todos os seus detalhes, complexidade, interdependências, etc. O dia em que o conhecemos plenamente, dirá um fisicalista, então seremos capazes de tratar qualquer depressão.

  8. Joel,

    Desconheço o debate acadêmico sobre esse tema, mas há algum consenso ou, ao menos, sérias inferências se é a mente que causa as sinapses no cérebro ou o inverso?

  9. Olha, Wagner, é difícil de responder. Resposta curta: não há consenso.

    Resposta mais longa: a sua primeira formulação – “a mente causa sinapses no cérebro” – pode querer dizer coisas diferentes. Se ela quiser dizer “sinapses são causadas por uma entidade não-física”, então é certo que ninguém hoje sustenta isso. Sinapse é um sinal elétrico. Ele ser causado por uma mente seria dizer que, sem condições físicas anteriores que levassem a isso, um sinal elétrico foi produzido. Nosso cérebro não está a todo instante violando as leis mais básicas da física como a conservação de energia em sistemas fechados (pois uma mente causar uma sinapse seria, em termos físicos, energia ser criado do nada).

    O cérebro é um sistema físico e seu funcionamento segue leis físicas; e tem sido cada vez mais desvendado hoje em dia (embora ainda estejamos engatinhando nesse campo). De alguma maneira, ele se relaciona com a mente, esse âmbito pessoal e não-físico que é também difícil de ser negado. Mas seria um erro se eu desse a impressão de que esse dualismo cérebro-mente, duas substâncias em algum tipo de relação uma com a outra, fosse aceito por todos.

    O que posso dizer é que as opções são basicamente três.

    1- ou o âmbito físico explica tudo, e nesse caso estados mentais são produtos de estados cerebrais ou são os próprios estados cerebrais e nós cometemos um erro ao achar que um não se identifica ao outro. Em todo o caso, o físico é o que “realmente” existe, e o mental é uma aparência.

    2- Ou estamos cometendo um erro ao separar cérebro e mente ou ao priorizar um sobre o outro, e na verdade não dá para falar que um cause o outro; ambas as explicações causais para a ação humana são verdadeiras, e portanto não passam de perspectivas diferentes, ou de aspectos diferentes, de uma mesma entidade ou processo. Um se reduz ao outro de alguma maneira, mas não há prioridade metafísica; ambos são verdadeiras explicações da ação humana.

    3- O âmbito físico não explica tudo (em particular, não explica a ação humana), e precisa portanto de alguma intencionalidade mental para operar. Isso pode se dar, por exemplo, por uma indeterminação estrutural (dentro de certos limites determinados, é certo) dos processos cerebrais, que acaba sendo resolvida pela mente, por algum tipo de teleologia ou o que seja.

    Se eu tivesse que estimar qual é a opinião majoritária na academia, eu diria que é provavelmente uma versão da 1: no fundo o que há mesmo é o mundo físico, e cometemos algum erro ao supor: ou que existe tal coisa como uma mente que não é plenamente identificável aos fenômenos cerebrais, ou que, ainda que fenômenos mentais existam e não seja idênticos aos fenômenos cerebrais, então que eles são estritamente causados por estes.

    Afirmar a 3 tem uma implicação séria: se está afirmando que alguns processos físicos (como a sua ação de pegar um copo d’água neste calor dos infernos) não admitirão de explicação física perfeita. Ou seja: que apenas olhando para as sinapses do seu cérebro e as reações que elas desencadeiam, não será possível explicar/prever sua ação. Eu acho que existem bons argumentos para sustentar isso (minha posição é a 3); mas ao mesmo tempo quanto mais se conhece sobre o cérebro, menos espaço de possibilidades sobra para a atuação da mente. A física quântica oferece uma esperança de solução satisfatória para os mentalistas, mas nem preciso dizer que qualquer prova ou coisa do tipo está muito longe de ser alcançada. Por isso, é complicado sair por aí alardeando a “física quântica”, vedete de tudo quanto é tipo de crendice e realmente entendida por poucos. Prefiro uma via alternativa: mostrar problemas estruturais, potencialmente insolúveis, no tipo de explicação que o fisicalismo dá às ações humanas. Se tiver sucesso nisso, então por implicação algo está errado na concepção fisicalista.

    Para quem tiver um interesse religioso/espiritual na questão (afinal, ela toca em nossa própria identidade metafísica), acho que a única resposta que abre a possibilidade para a concepção religiosa tradicional de alma imortal é a 3. Para crenças mais panteístas ou que negam a realidade última do indivíduo enquanto entidade distinta do resto do universo, a 2 se adequa mais, e possivelmente até a 1 funciona.

  10. Joel,

    Obrigado pela resposta abrangente. Não sei se ainda algo atualizado ou não, mas uma das obras que mais me impressionou sobre esse tema foi “A Energia Espiritual”, de Henri Bergson.

    Já não me recordo mais da argumentação e dos exemplos que ele dá, mas, se não me falha a memória, ele afirma que o cérebro é o “instrumento” pelo qual a alma opera no mundo físico e dele aure seu conteúdo. Lembro que me pareceu, na época em que o li, bem interessante e convincente.

  11. não li o texto na íntegra, mas o título, tendo mente redutível ao cérebro, já parece errar. Memórias podem ser alojada na medula espinhal (bem como na retina do olho, por alguns segundos isso é possível)

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