Rand ou Capra?

Joe Carter, editor online da First Things, traçou um paralelo inusitado entre George Bailey, o protagonista de “It’s a Wonderful Life”, o clássico natalino de Frank Capra, e Howard Roark, o herói do romance “The Fountainhead”, de Ayn Rand. O paralelo vem a calhar porque, em primeiro lugar, há semelhanças exteriores entre os dois: ambos são arquitetos e ambos ao longo da vida viram-se no dilema de seguir suas aspirações custe o que custar ou deixá-las de lado pelo bem alheio. Bailey capitula, Roark persegue seus valores até o fim, mesmo quando isso lhe custa passar meses sem nenhum cliente e até abandonar temporariamente a arquitetura para trabalhar numa pedreira.

O que Carter tem em mente é a comparação das duas posturas éticas, que podemos chamar aqui, para simplificar, de altruísmo e egoísmo. O altruísta é quem sacrifica seus valores pelas outras pessoas, e o egoísta é quem os persegue mesmo que isso vá contra a vontade alheia. O curioso é que Carter elege George Bailey (ou o que ele considera que George Bailey representa) como o exemplo moral a ser seguido. O homem que nunca fez o que queria, e que sempre cedeu às pressões externas, e cuja vida portanto era frustrada a ponto dele contemplar seriamente o suicídio, é visto como um ideal; afinal, ele não fez o que lhe deixaria feliz; ele se sacrificou.

Até que ponto a vida sacrificada pelos outros (isto é, que abandona os próprios valores e portanto é infeliz) é boa para essas mesmas pessoas a quem se quer ajudar é um ponto a ser considerado. Imagine que sua esposa ou seu marido seja alguém constantemente infeliz; deixou de lado seus sonhos e aspirações para viver ao seu lado e te servir, e seus dias são por isso amargos e mal-humorados. E o melhor vem agora: quando você pergunta o que acontece com ele, e por que ele é tão amargo, a resposta é: “Ora, você não sabe? Sacrifiquei minha felicidade para te fazer feliz.” Delícia, hein?

Será que é isso mesmo que Carter espera que aceitemos como o maior bem? Vou deixá-lo falar: “What makes George Bailey one of the most inspiring, emotionally complex characters in modern popular culture is that he continually chooses the needs of his family and community over his own self-interested ambitions and desires—and suffers immensely and repeatedly for his sacrifices.” (Itálico dele). Por algum motivo, eu não me sentiria muito “inspirado” se meus pais ou meus amigos ou meus colegas de trabalho fossem assim.

Já Howard Roark ele considera um mau exemplo, um adolescente rebelde e vândalo (acusação curiosa, dado que em nenhum momento ele pratique vandalismo). Perseguir um ideal alto, indo além do auto-sacrifício frustrado pelo “bem” alheio, é um sonho pueril e mau. Um gênio criador, que percebe claramente a grande obra artística ou produtiva a qual é chamado a fazer no mundo, deve abrir mão dela para se tornar mais um membro indistinto da massa.

Vejam bem: sou o primeiro a apontar os inúmeros defeitos de Roark como personagem e da filosofia de Ayn Rand. Sem dúvida ele estaria dentre as últimas pessoas das quais eu gostaria de sentar do lado num jantar. Mas fidelidade aos valores mais altos da própria existência não é um defeito. A ética altruísta do sacrifício pede-nos uma traição e um fracasso que demanda, como pagamento, a chantagem emocional de todos à nossa volta. Um homem amargo e frustrado não contribui para o bem alheio; ele é ruim para si e ruim para os demais.

A própria idéia de que fazer o próprio bem é mau e fazer o bem alheio é bom é suspeita. Por que comprar e gostar de um picolé para mim é mau mas comprar um picolé para outra pessoa se deliciar é bom? Se se deliciar com um picolé é bom, então é bom quando o outro faz e também quando eu faço. Imagine se todos adotassem a ética do sacrifício altruísta em suas vidas: todo mundo infeliz e miserável à custa de, e para, todo mundo.

Voltemos ao exemplo do casamento. Acima descrevi o que me parece um casamento mau e doentio, no qual cada lado condena-se à miséria para o bem do outro, e que resulta claramente no mal do outro. O casamento saudável, por outro lado, é aquele em que cada lado vê no bem do outro o próprio bem. Um bom pai de família abrirá mão de muita coisa para cuidar melhor de seus filhos e passar tempo com sua esposa; mas ao fazer isso ele estará perseguindo a sua felicidade, pois essas coisas que ele prioriza em suas ações são exatamente as que ele mais valoriza, e por isso ele é feliz, e por isso podemos dizer que, ao perseguir o bem para sua família ele persegue o bem para si mesmo.

The Fountainhead tem um personagem que representa exatamente as escolhas de George Bailey de “It’s a Wonderful Life”, embora levadas ao extremo: seu nome é Peter Keating. Peter é um arquiteto promissor mas completamente sem espinha, que faz tudo para aparecer bem; ele é incapaz de escolher por si próprio e quer sempre agradar aos outros. Depois de um curto período de glória, amarga o esquecimento do público e o fato de nunca ter produzido nada de valor real. Ao mesmo tempo, na esfera pessoal, abandonou o verdadeiro amor de sua vida em troca de uma mulher que nada tinha a ver com ele, só para seguir os desígnios maquiavélicos de sua mãe. É um personagem que, embora não contemple o suicídio, evoca mais pena do que George Bailey.

Afinal, o próprio “It’s a Wonderful Life” admite uma análise muito mais benevolente do que a de Joe Carter. George Bailey, de fato, deixou de lado muitos valores em sua vida; há um quê de mediocridade e falta de coragem inegáveis em sua trajetória. Contudo, foi ao mesmo tempo alguém que conquistou outras coisas importantes às quais ele ainda não dá o devido valor. O fim do filme, quando ele se dá conta de tudo que ele de fato tem (uma ótima família, amigos, etc), não é um elogio do auto-sacrifício (no sentido de sacrificar o próprio bem), e sim uma indicação de que nós, muitas vezes, não damos o correto valor aos diversos bens que se nos apresentam e que conquistamos enquanto lamentamos a perda de bens menores. Diferentemente de Peter Keating, o altruísta completo, George Bailey teve sim sua dose de egoísmo, ou seja, conseguiu para si um bem que é parte importante na vida de um homem feliz. O homem bom, afinal de contas, não é o que sacrifica seus valores, mas o que persegue, sem concessões, os valores corretos. Por isso mesmo, o desfecho não é o suicídio (seguido, quem sabe, da doação de órgãos para salvar vidas anônimas: o altruísmo perfeito), e sim a felicidade e a descoberta de que a vida é maravilhosa para quem sabe olhá-la.

6 comentários em “Rand ou Capra?

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