Somos todos Zé Maria-Ninguém

MedéiaGuilherme Krueger*

Peço desculpas, mas sem julgar as mulheres que abortam, não posso e não devo aceitar o argumento de que, sendo o Estado laico, o aborto é um assunto estrito de saúde pública.

A máxima “meu corpo, minha lei” supõe o corpo como inteiramente pertencente a uma pessoa. Isso é uma convicção cega, pois o corpo é fenomenal.

A marcha das vadias expõe a ambiguidade do corpo fenomenal: Se a sensualidade não justifica qualquer violência sexual, a sensualidade intencional de uma mulher é expressão do desejo de ser desejada em seu corpo. Isso é fenomenal. Ou seja, uma vez que o corpo de alguém me afete, ele, de certo modo, também me pertence. Todo corpo é existencialmente compartilhamento. E aí se constitui a ética. Eticamente, meu corpo não pertence só a mim.

Daí que a vida de um embrião, por ser totalmente dependente do corpo de uma mulher, não pode ser totalmente empoderado pela decisão pessoal dela, sem que isso não seja um brutal problema ético. Este problema também é meu e seu.

Só posso ser quem sou, e mais ninguém. Como toda pessoa, posso, no entanto, vivenciar a mim mesmo como outro (o que acontece, por exemplo, no teatro). Sei que nada sei de todo esse outro como si mesmo, mas que poderia vir a ser a mim mesmo. Isso é uma vivência com a qual é possível a percepção da fraternidade. Assim, posso eu vivenciar-me como mulher que sofre como nunca fui. Mas, também como um embrião que já fui um dia. Então, posso lembrar que um embrião já é uma vida que pode ser desumanizada até desanimada como estorvo, ônus. Não-vida pela vontade de poder de uma única mulher, seu objeto de descarte.

É fundamental o reconhecimento da autonomia pessoal para o Direito na decisão de quem toca o que no nosso corpo. Pois alguém pode decidir uma invasão devastadora do outro no arbítrio de seus afetos com falhas de interpretação e questionáveis estados de ânimo. Mas, nem por isso a decisão a respeito do aborto, por ser uma decisão de morte, se esgota na dimensão individual do exercício do livre arbítrio, pois afeta sobremaneira a comunidade no aparecimento e ocultação intersubjetivos dos valores à vida. A expressão ubuntu quer dizer sou por quem nós somos. Mas, a condição humana é originária das identidades construídas e reconstruídas – é uma vertigem imediata e impostergável entre o ubuntu e o verso de Píndaro genói oíos essí matón (Torna-te quem és).

Entre garantias individuais e uma moral comunitária, o Direito, para o aborto, não tem soluções naturais e neutras ante os alarmantes dados de sua prática, mesmo clandestina. Qualquer que seja a solução jurídica dada para o aborto, se todas as mulheres são Jandira ou Elisângela, elas são essa diferença.

Mas, antes de Jandira e Elisângela, homens, mulheres e transgêneros são também os esquecidos, os desconhecidos, sem gênero, sem classe, sem voz, sem nome, sem chance. Pois todos já fomos um dia Zé Maria-Ninguém. Sim, já vivemos uma igualdade absoluta no momento incerto em que vingamos e que sequer nossa mãe nos sabia. Ninguém deste mundo sabia de nós, olhava por nós, mas já existíamos igualmente. E eis um ensinamento possível dessa igualdade absolutamente real: estávamos todos inteiramente à mercê de outrem. Nos corpos de nossas mães, éramos os invisíveis, os intrusos, os estrangeiros, os confinados, os encarcerados, os sem-terra, os sem-teto, os moleques nos faróis, os refugiados da guerra e dos desastres ambientais, os ébrios pelos cantos, os anciões senis.

Já no corpo de uma mulher, a liberdade é responsabilidade e sustentabilidade, compromisso com as gerações vindouras e respeito para com as passadas – para com aqueles que ainda não conquistaram sua voz na democracia e os que já a perderam. O aborto não pode ser banalizado no Direito pelo Estado laico como uma prestação de serviço à disposição da freguesia, sem que nos tornemos uma sociedade mais estéril de sentidos para valores.

Mas, o que é isso, a fertilidade de sentidos para valores?

Ao se privilegiar o aborto como uma questão de saúde pública, se se solidariza nos tempos atuais com toda mulher e por isso se concilia seus direitos reprodutivos ao destino real de seus filhos impossibilitados. Já voltam à presença os filhos silenciosos de ΜΗΔΕΙΑ. Medéia, há 2.500 anos atrás, abandonada por seu marido e desprezada como estrangeira, matou seus filhos e este gesto de desespero nunca deixou de se repetir nos palcos da vida.

Vale aqui um fragmento de Ser e Tempo:

“O ser para a possibilidade enquanto ser-para-morte, no entanto deve se relacionar para com a morte como possibilidade. Apreendemos, terminologicamente esse ser para a possibilidade como antecipação da possibilidade. Será que essa atitude não abriga em si uma aproximação do possível e, com ela, não emerge a sua realização? Essa aproximação, porém não tende a tornar disponível o real numa ocupação. É no aproximar-se da compreensão que aumenta a possibilidade do possível. Como possibilidade a proximidade mais próxima do ser-para-morte se acha, face ao real, tão distante quanto possível. Quanto mais se compreender e desentranhar essa possibilidade, tanto mais puramente a compreensão penetra na existência das possibilidades em meio às impossibilidades. Como possibilidade, a morte nada traz à presença como realização. A morte é a possibilidade na impossibilidade de toda relação com a existência. Na antecipação, a possibilidade será sempre maior, ou seja, se desentranha como aquela que desconhece toda medida, todo mais ou menos, significando a possibilidade da impossibilidade, sem medida, da existência. Em sua essência, essa possibilidade não oferece nenhum apoio para alguma expectativa e para se configurar um real possível e, assim, esquecer a possibilidade. Enquanto antecipação da possibilidade, o ser-para-morte é que possibilita essa possibilidade e que a libera como tal.”

Ser-para-morte é ser sem razão alguma para ultrapassá-la (uma possibilidade ainda impossível), em que se distingue o sentir e o sentido confundidos no esquecimento das possibilidades para ser real.

Outro dia, li o ser-para-morte se dando na matemática. Infinitos são os raios de um círculo, mas é onde raio algum alcança que começa e termina o giro de toda roda. Na matemática, o ser-para-morte é o raio para o eixo, ou o eixo para o raio.

No ser-para-morte, há um sentido de lógica originária, em que logos é pura forma (logos no sentido da demonstração matemática do big bang), e é pura matéria (logos no sentido de presença no caos). O ser-para-morte como “antecipação” de possibilidade na morte, que é possível, mas nada traz por si à realização de uma possibilidade, é instauração do tempo como uma sucessão imutável de acontecimentos de um antes em direção ao depois e o instante que é irrepetível entre o já e o aí. O ser-para-morte é tempo como acontecimento totalmente indefinível, mas existente, ou totalmente definível, mas inexistente entre o antes e o já e também entre o depois e o aí. Como o círculo e a roda acontecem na matemática, o logos é o Big Bang e o Fiat lux. Uma “grande síntese” não se dá para a razão, mas na sua (im)possibilidade para o acontecimento, pois se dá na “ginga” de aparecimento e velamento, que só é contemplado no poético! É o sentido da frase de Carneiro Leão: a verdade é a ginga da capoeira em que ela dá rasteira em si mesma. É ou não uma bem humorada definição verdadeira da verdade?

Pois bem, um humanista vê nos filhos de Medéia a figuração simbólica do patriarcalismo e que, na História como história do esclarecimento humano, devem morrer. Mas isso vela um sentido da morte deles nos alvores da democracia. De Medéia, os filhos nasceram grandes e morreram grandes. A compreensão do sofrimento desta mulher, de toda mulher, pode ser grande na inversão impossível da sorte trágica de seus filhos possíveis. Aí, uma política grande.

*Advogado e economista especializado em gestão de cooperativas; Mestre em Filosofia.

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