Um mercado livre?

mercado de escravos

 

Marcos Paulo Fernandes de Araujo*

Enfrentando questões profundas da realidade humana com a delicadeza de quem pensa estar diante de um teorema geométrico, há algumas pessoas no cenário intelectual que se destacam por pensar que para que um mercado seja verdadeiramente livre é necessário que nele sejam permitidas transações tais como o livre comércio de entorpecentes, como o crack, o reconhecimento da prostituição como apenas mais uma atividade entre as outras e, pasme-se, a livre venda de órgãos (não, não aqueles de igreja) e até mesmo pessoas! Ressalve-se, contudo, que não advogam a escravidão em sentido estrito. Defendem apenas que crianças com as quais os pais não se sentem à vontade possam ser vendidas em adoção.

Poder-se-ia pensar que idéias estapafúrdias como as sobrescritas não servem para nada. Não é verdade. Diante de tais afirmações, é mister pormo-nos a pensar mais a fundo e tentar descobrir uma resposta significativa à pergunta sobre o que é, afinal, um mercado livre.

A resposta dada acima, com a exclusão teórica da escravidão, propõe-nos que aceitemos como normal que tudo possa estar sujeito às leis da oferta e da procura, e ao pacta sunt servanda, exceto adultos, pelo simples fato de que alguém valoriza mais o dinheiro do que outros bens – não me cinjo aqui aos materiais. Será possível viver assim?

Entender um mercado livre simplesmente como a não imposição de limites éticos quaisquer às transações econômicas tem sua origem numa consideração errônea do termo livre. Querer ter por livre mercado um mercado potencialmente ilimitado significa reconhecer ao dinheiro um poder ilimitado. Esta característica costumava ser reservada, na teologia, à Divindade, e utilizá-la em prejuízo da liberdade dos indivíduos, significa erigir o mercado em divindade e o homem em seu escravo. Não significa nada  além do velho culto do deus Mamon.

Não é assim que se deve considerar o vocábulo livre caso se queira compreender o mercado como uma realidade humana, sujeita às falhas e perversões da vontade humana individual. Afinal, a liberdade humana não significa ausência de limites. Ao contrário, tem por pressuposto a própria capacidade de limitar a atividade dos instintos sobre si, permitida unicamente pela vontade, que é o desejo guiado pela intelecção do bem, que concede ao homem um vislumbre de alternativa à mera atividade sensório-afetiva, que é o que lhe torna possível o ato de eleição.

Um mercado livre, portanto, será em primeiro lugar um em que se reconheça a liberdade humana. Não é possível que seja livre um mercado totalmente guiado pelo impulso do amor ao dinheiro, que reconhece como legítimo que um ser humano possa vender seus filhos ou partes do próprio corpo desde que haja alguém disposto a pagar por eles. Um mercado livre não é um mercado em que se topa tudo por dinheiro. Este é, sim, um mercado escravo do dinheiro. O mercado, esse conjunto de transações, baseia-se sobretudo no não-mercado, na existência de bens que não estão sujeitos a serem adquiridos por nenhum dinheiro do mundo, que não podem estar a elas submetidos, muito embora haja gente disposta a comerciá-los. A existência de movimento pressupõe alguma estabilidade. Do contrário, torna-se caos.

Todavia, se um mercado livre começa sobretudo pelo reconhecimento da impossibilidade de serem negociados certos bens, ele não se cinge a isso, somente. E nisto a ameaça vem por outro lado, oriunda daqueles que desejam engolfar a vida privada na pública, por meio daquilo que se chama, nestas bandas, horizontalização dos direitos fundamentais; que não passa de um nome pomposo para uma nova espécie sutil de totalitarismo, que obriga, em síntese, a contratar com quem não se quer e a pautar suas decisões de descontratar quem não se quer a critérios aprovados pelos movimentos sociais e pelos iluminados das escolinhas de direito.

Uma correta concepção do que seja o mercado deve rechaçar semelhante tipo de ingerência. Por basear-se na dignidade da pessoa humana, é mister que nele se reconheça também a plena liberdade de não contratar um empregado, de recusar-se a vender uma mercadoria ou a prestar um serviço a quem quer que seja, pelo motivo que for. Se por um lado pode-se forçar alguém a não topar tudo por dinheiro, é forçoso que ele também seja livre para tanto por si próprio, quando não desejar negociar nas situações em que o dinheiro não lhe pague aquilo que não pode ser comprado mesmo com todo o dinheiro do mundo. Todavia, é preciso admitir que a ameaça daqueles que pensam nada haver além da oferta e da procura é menos perniciosa do que a daqueles que querem sacrificar tudo no altar da homogeneidade induzida.

 

* Marcos Paulo Fernandes de Araujo é bacharel e mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Faculdade de Direito da UERJ.

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>