Uma reparação, uma explicação & um esclarecimento

Uma das grandes vantagens da Internet é a possibilidade de reavaliar o que você escreveu, publicou, pensou a respeito e depois, se for o caso, fazer as suas emendas.

Isso me aconteceu esses dias ao reler o post que escrevi sobre a encíclica Caritas in Veritate, entitulado Uma Encíclica Problemática. Ao rever a sua argumentação e também os comentários que se seguiram, fiquei com pontos de interrogação a respeito da minha atitude – e creio que isso pode ter influenciado alguns leitores.

Assim, tenho de deixar claras algumas coisas para que, depois, não ocorram mais confusões sobre o que penso ou faço:

1) Em primeiro lugar, nunca desejei/desejo/desejarei menosprezar a pessoa do Papa, em especial a de Bento XVI. É um homem íntegro, de uma alma verdadeiramente gentil, que tem de suportar uma série de inconveniências clericais para governar a Igreja com a decência apropriada. Ao usar termos como “esparrela ideológica” posso ter dado a impressão de que penso o contrário. Ela é errônea. Como jornalista, não posso cair na mesma “esparrela” de não dar o benefício da dúvida às idéias de uma tradição a qual me filio. Uso a expressão “benefício da dúvida” não no sentido jurídico lato, o que pode entender novamente que eu considero o Papa uma espécie de réu. Ao contrário: o “benefício da dúvida” é usado para garantir, antes de tudo, a inocência do indivíduo, i.e. a possibilidade de ele não estar a praticar as suas ações sem intenção maliciosa. Ora, é justamente isto que falta no jornalismo dos nossos tempos; qualquer coisa que a Igreja (e, por sua vez, o Papa) faça, logo é acusada de qualquer crime, sem apresentação prévia de provas. Não foi esta minha intenção ao escrever aquele post; apenas quis apresentar um problema exposto no texto da encíclica, e nada mais. Se alguém foi incentivado a desrespeitar ainda mais a pessoa do Papa por causa do que escrevi, afirmo aqui que repudio qualquer atitude que tenha tal característica.

2) Além disso, se assumo publicamente que eu me filio a uma tradição, e se o Papa é o representante dela, devo ter, antes de tudo, uma postura de humildade, que não foi demonstrada no tom do meu post. Faço isso por um motivo muito simples: se a Verdade é a base desta tradição, não posso negá-la. 

(E quando falo em tradição, refiro-me à linha de pensamento que, como bem resumiu Edmund Burke, é a base daquela sociedade que respeita o fluxo ininterrupto entre os vivos, os mortos e os que estão por vir)

Novamente, temos aí mais um exemplo de “benefício da dúvida”. Tenho de ser humilde ao fato de que o Papa sabe mais (e viveu mais) do que eu; tenho de ser humilde porque tudo o que ele quer é evitar uma situação catastrófica (e esta é a única maneira de eu aceitar a tal Autoridade Política Mundial que, além de ser defendida pela Igreja há séculos em sua doutrina social, seria supostamente uma barreira contra a anarquia e a guerra violenta); tenho de ser humilde porque, afinal, ele sabe mais sobre o “poder espiritual” do que eu, um mero mestre que sequer sabia definir o que era “espírito” nas primeiras versões de sua dissertação; e, last but not least, tenho de ser humilde porque o Papa não pensa em um contexto de cinco, dez anos pela frente, e sim no ritmo da eternidade, o que significa um andar muito mais lento, comedido e, sobretudo, prudente.

3) Ora, é por falar em tradição que tenho de me explicar sobre o conceito utilizado (de forma canhestra, admito) da era ecumênica. Alguns católicos não gostam de Eric Voegelin porque, segundo eles, sua obra não permite uma avaliação do dogma como experiência de aproximação da vivência cristã; para Voegelin, o dogma é uma petrificação da experiência, um afastamento do que seria a verdadeira “fé cristã”. Esta reviravolta do pensamento ocidental é explicada em dois textos seus: o primeiro é “Evangelho e Cultura” e o segundo é o livro “A Era Ecumênica”, quarta parte de “Ordem e História” (a ser publicada ainda este ano pela Loyola).

É aqui que eu divirjo dos meus colegas católicos – mas creio que não me afasto da tradição. E por uma simples razão: o que Voegelin elabora é algo que a Patrística já argumentava há muito tempo – o fato de que não há mais cristãos porque eles se distanciaram do Cristo e, por sua vez, do Deus vivo e pulsante do Antigo e do Novo Testamento. Em “A Era Ecumênica”, Voegelin mostra o processo desta desintegração em um escopo civilizacional – muito próximo do que estamos a viver atualmente, mesmo que seja os restos de um espólio que já foi magnífico.

Creio que Voegelin faz parte da tradição dos grandes pensadores da Civilização, e ele está no mesmo patamar de um Platão, de um Aristóteles, de um Sto. Tomás – e não estou sozinho nessa afirmativa. De fato, Voegelin tem suas imperfeições; mas a ambição da sua obra – e o que ele conseguiu – não podem ser relegadas ao esquecimento ou, o que é pior, ao desprezo – em especial, pelos meus colegas católicos. Ao usar um conceito voegeliniano para analisar uma encíclica papal, não estou, em hipótese nenhuma, menosprezando uma tradição de mais de dois mil anos, uma tradição que guarda a Verdade pela qual eu acredito sem pestanejar. Estou apenas a citar um filósofo que, no seu isolamento existencial do século XX, decidiu conversar somente com os grandes – e são estes que moldaram a mesma tradição que o Papa também defende. Portanto, Eric Voegelin, ao contrário de um Karl Marx, é um dos cumes da filosofia, e não seria exagero dizer que o atual Papa disse o mesmo, em uma carta que escreveu ao autor de Science, Politics and Gnosticism nos idos da década de 80, quando era então o arcebispo de Munique*.

Dito isso, reitero que, de todos os pontos do meu post, o único que eu não abro a mão é o fato de que, do modo como está redigido o parágrafo 67 da encíclica Caritas in Veritate, creio que ela aponta para uma idéia deveras problemática para os nossos tempos. Se isso é dolorido para mim, eis uma questão para a minha consciência, e não para a sua, caro leitor. O que quero acrescentar é que a crítica contra a tal Autoridade Política Mundial também faz parte da tradição que tento proteger; uma tradição em que a dignidade da pessoa está acima da máquina burocrática estatal e que a liberdade interior, conquistada através de lutas e mais lutas dentro das tensões da nossa alma, sempre estará acima de uma suposta liberdade exterior; e, apoiado nisso, acredito sim que tal idéia pode ser ingênua, anacrônica e contraditória (repito: a idéia, não o homem que a redigiu).

Basta agora esperar e ver os desdobramentos do que acontecerá; afinal esta tradição tem uma Verdade sobre a qual ela se sustenta e que, por isso, sempre estará pronta para ressurgir quando menos se espera.

*Esta informação se encontra na nota 15, explicada na pág. 428, da introdução do livro The Essential Pope Benedict XVI, publicado em 2007 pela HarperCollins, em uma coletânea de artigos organizada por John F. Thornton e Susan B. Varenne.