Whytube

Em Crimes and Misdemeanors (1989), Woody Allen conta a história de um homem comum, integrante de uma família comum, que tem a oportunidade de matar um homem, vamos dizer assim, sem a mínima possibilidade de ser descoberto. E então entra uma discussão cinematográfica razoavelmente profunda sobre teodicéia, ou seja, sobre o destino, Deus e a liberdade humana. No background, a vida de um filósofo humanista capturada em um documentário (posteriormente o velhinho comete suicídio).

Não podemos reclamar do fato de que Allen dá a sua resposta, ou melhor, de que ele faz prevalecer a sua visão de mundo durante todo o filme. O absurdo sempre vence – o absurdo é a substância das coisas que não se vêem; nós damos sentido às coisas, mas no fim das contas esse “sentido” é uma criação virtualmente ex nihilo. Mas a pergunta está lá: será mesmo assim? O suicído do filósofo prova alguma coisa? (e aqui ponho a velha pergunta, raramente digna de nota: quando algo dá errado com alguém que representa um ideal de virtude, isso é sinal de que a virtude não existe?).

Com isso Allen, fiel a Heidegger, insere-se num ambiente tipicamente moderno, morto lá nos anos 40 ou 50, se muito. Ele está totalmente fora de moda, e por isso o filme, apesar de ser considerado por muitos críticos o melhor do diretor, só costuma ser visto por woodymaniacs.

Não há espaço para algo próximo ao “existencialismo” no mundo contemporâneo – ao menos no mainstream. O que tem emplacado é a ocultação do absurdo; a ocultação da pergunta. Não há fundamento e ponto final: e portanto a pergunta por um fundamento é perda de tempo. Nesse sentido, a contemporaneidade é uma afirmação nietzscheana; por isso triunfou a MTV, o otimismo naif auto-ajuda, os reality shows (experimente analisar filosoficamente a banalidade – o banal é o absurdo inquestionável – e prepare-se para não sair do lugar) e tudo o mais que nos autos consta. Uma grande suma do que é mais trendy hoje é o empreendedorismo total: não questione, seja simplesmente pró-ativo.

Num universo paralelo, o dos estilos de vida ligados à música, temos um novo culto da tristeza e do desespero; mas mesmo aí, só há afirmação epidérmica. (Le plus profond, c’est la peau, dizia profeticamente Paul Valéry). E um revival da colagem pós-moderna, que pensei ter enxergado em “Daniel”, do Bat for Lashes: ela soa como The Cure, mas a pergunta pela existência, característica do “gótico” inglês, que aparece explicitamente até em álbuns medianos e tardios como Bloodflowers, está completamente ausente. A figura exterior está lá, mas foi recortada e não resta qualquer memória da sua origem. Musicalmente, estamos ainda nos anos 90, apesar do sucesso do gosto pelo underground (indie=pop), inimaginável uma década atrás.

Uma geração extremamente conservadora e conformista, a que nasceu nos anos 80-90. Não se deixe enganar pelas aparências. A única pergunta que ela realmente faz a si mesma é “por que devo questionar?” E os mais novos, nascidos depois de 2000, perguntam coisas do tipo (o caso é real): “como vocês ficavam online antes da Internet?” Eles fazem parte da geração atual, que nasceu conectada, e que sequer pode imaginar uma sociedade offline.

(Não é fácil dizer se isso desembocará numa era de pessimismo, saudável ou não, dado o movimento pendular das visões de mundo. Alguém disse que a crise econômica pode despertar questionamentos. Não duvido. Mas sou “individualista” a ponto de só acreditar em pessoas concretas, e de afastar prudentemente, quando se torna perigosa, a divisão ingênua entre pessimistas e otimistas).

Mesmo assim, espero a volta da pergunta e do questionável ao amado mundo dos i-phones. Isso me lembra a especulação de um matemático dos anos 80: como seria a vida de um objeto tridimensional num mundo bidimensional?

5 comentários em “Whytube

  1. Caro Lemos,
    quis achar um link de apoio, mas vai assim mesmo: 1) você foi na mosca sobre a generosa modernidade do WA, que certamente lhe garantirá longa sobrevida (como a do Saul Bellow de “Herzog”). Muito meados do século XX, isso de querer equilibrar, enquanto ecoava ainda o que foi a II Guerra, a) uma estética tendencialmente absolutizada de raiz nietzscheana (pessoalmente contorno o Heidegger para não escorregar) e b) compaixão e humor judaicos e americanamente cristianizados. 2) Para ficar em exemplo quase aleatório, penso em NY como aparece em “Everyone says I love you”; um modelo exportável até para Veneza e Paris, com saraus natalinos, canções de amor esponsal ao piano e flertes extra-conjugais ao som de muito do que há de melhor na música popular da Gringolândia. Algo assim como o protótipo de cidade/polis calcada naquele equilíbrio instável, que corteja o colapso. 3) Nem por isso menos interessante e bela quando recriada nos filmes, inclusive no seu alheamento consciente e explícito à sensibilidade das últimas décadas; e nem por isso menos, hm, existencialmente “autêntica” (tosse seca). 4) Não deve ser casual a relativa escassez de Woody Allen no youtube. Ignoro se é possível ao cineasta coibir circulação de suas imagens por essa midia. Ainda que seja o caso, fica manifesta a sua ligação com tempos de relativização e de existencialismo “humanista” consideravelmente menos tolos que o da contemporaneidade, em seu mainstream, de fato, afirmação inconsciente, trágica e decadentemente nietzscheana quase 100%(falo em decadência para remeter ao sentido que lhe dá o próprio Frederico; http://dailynietzsche.blogspot.com/2008/01/from-decadence-to-nihilism.html). 5) Ocultação do absurdo, sepulcros caiados, existências de olhos e egos bem fechados (grande Kubrick).

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