Apontamentos sobre a literatura brasileira e o romance policial

Calma, leitores, calma. Desta vez não farei o esperado: falar mal da literatura nacional. Sei que posso me tornar um clichê ambulante, mas prefiro ser uma contradição ambulante – e olha que só com esse trocadilho infame posso citar o Raul Seixas, o que seria uma surpresa para muitos e um anátema para outros.

(Obviamente, não farei isso. Há um limite para tudo.)

O motivo de escrever sobre nossa literatura contemporânea vem deste post do Sérgio Rodrigues, do Todo Prosa, um dos dois sujeitos sérios quando se trata da recente crítica literária (o outro é Michel Laub, com seu blog divertidíssimo). Sérgio pergunta-se da incapacidade do escritor brasileiro em criar uma tradição de literatura policial, algo tão comum em outros países, até mesmo na fria e perfeita Suécia. Há uma inclinação para a possível resposta de que o escritor brasileiro – esta espécie em abstrato que quase entrará em extinção – não compreende adequadamente as suas desigualdades sociais e políticas. Diria que é mais: o que falta ao escritor é a noção de uma perspectiva metafísica – para ser mais exato, a ausência do que seria o Mal.

Explico-me: o tema do romance policial é o Mal, com M maíusculo mesmo. Raymond Chandler (aliás, tema de um ensaio brilhante de Rodrigo Duarte Garcia a ser publicado na Dicta&Contradicta 4, em dezembro) já afirmava que o que está em jogo em uma investigação é sempre um elemento de redenção, a possibilidade de que o detetive particular coloque um pouco de ordem neste mundo através de sua visão cínica, porém sutilmente virtuosa, do ser humano. Sem isso, o romance policial carece de tensão – aliás, elemento muito ausente nas tentativas nacionais, que se preocupam mais com as regras do jogo e com a estrutura policialesca do que com a substância humana em si.

Um exemplo que não vem do Brasil, mas que serve como prova de competência de um escritor estrangeiro no assunto: o novo romance de Thomas Pynchon, Inherent Vice (também assunto de outro texto que será publicado na Dicta 4, de autoria de Luiz Felipe Amaral). É uma homenagem à linha hard-boiled, inclusive com referências diretas ao estilo de Chandler e Hammett. Mas o detetive particular, Doc Sportello, é um sujeito que está mais para o Dude do Big Lebowski, pois fuma mais marijuana do que propriamente investiga o seu caso. Além disso, Pynchon tira sarro explícito de outras convenções, como a trama intricada (bem, em relação a Pynchon, isso é uma vitória, já que ele nunca se preocupou com tramas em seus livros gigantescos), a femme fatale, o magnata corrupto, etc. Contudo, ainda assim, trata-se de um romance policial: a precisão do estilo (e que estilo! Há sempre uma frase engraçada esculpida com aquela graça pynchoniana em cada um de seus parágrafos), o ritmo da trama e, sobretudo, a noção de ameaça que surgirá a qualquer momento provam isso a cada linha.

É justamente essa noção de um Mal que permeia as coisas que falta não só no nosso romance policial, mas em toda a nossa literatura contemporânea. O que tínhamos com Machado, Guimarães Rosa, Osman Lins, Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, perdeu-se em algum lugar que desconhecemos. Ainda assim, temos algumas esperanças; vejam, por exemplo, esta entrevista de Raimundo Carrero, dada ao jornal curitibano Rascunho – é uma forma digna de recuperar justamente a perspectiva metafísica de que falo a respeito. E, ao mesmo tempo, leiam a entrevista de Bernardo Ajzenberg, que, apesar de não citar a tal “metafísica”, apresenta-a sob o disfarce de uma humildade a respeito da literatura que chega a ser tocante.

Temos que recuperar a sensação de uma ameaça constante em nossas vidas. Só assim teremos uma verdadeira literatura – seja policial, seja de qualquer outro gênero. E, para isso, sempre podemos contar com um Rubem Fonseca que, se não tem mais o talento de antigamente, consegue ainda fazer um vídeo divertido, ao anunciar o lançamento de seu O Seminarista.

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