Dizem que Gustave Flaubert passava dias sobre uma única sentença.
Em “Educação Sentimental”, que estou relendo em um momento de profunda identificação com Frédéric Moreau, o autor francês concentra uma rede de sentimentos de negatividade e dispersão na figura de um personagem em processo de destituição moral. Moreau é um ninguém, cujo mergulho neste mar de vaidades e obscuros e enganosos desejos termina por dissolver qualquer caráter que poderia restar ao herói. Esperanças são abandonadas enquanto acompanhamos a sutil derrocada do bonapartismo em Paris.
Neste momento da minha vida em que também empreendo uma jornada rumo ao desconhecido de minha alma em um lugar novo, a trajetória de Moreau recupera, mais do que um exame comparativo de como eu li o romance há alguns anos de como estou lendo agora, mas um sentido de construção de cada período que é montado para fazer o herói tropeçar, não para guiá-lo. A frustração das experiências humanas mais cotidianas, a insegurança, o orgulho que começa na juventude e jamais desaparece.
O movimento, o passo adiante em novas direções, a “educação”, em contraponto à concepção de Rousseau (que garantiria crescimento), em Flaubert leva à derrocada. E cada sentença, tão pacientemente concebida (não sem dor, decerto), se desenha quase como areia movediça a Moreau.
Destaco o trecho abaixo, que traduzo livremente, como uma relevante ilustração do mais genuíno ennui de nossos tempos modernos.
As tão prometidas alegrias não chegavam; esgotadas as suas leituras, percorridas todas as coleções do Louvre, e assistidos, repetidamente, todos os espetáculos, ele caiu em uma inação sem fim. Milhares de coisas se ajuntavam em sua tristeza. Ele precisava agora cuidar de seus próprios lençóis e lidar todo dia com o porteiro do seu prédio, um idiota que mais parecia um enfermeiro de hospital que vinha toda manhã arrumar sua cama, grunhindo e cheirando a álcool. Seu apartamento, ornamentado com um relógio de alabastro, lhe desagradava. As paredes eram muito finas e podia-se ouvir os estudantes ao lado preparando ponche, rindo, cantando.
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É engraçado perceber o quanto livros clássicos como este “falam” com seus leitores, não importando a época nem a idade em que se tem a obra em mãos e passa-se a folhear as páginas avidamente como se estivesse diante de uma jornada com fim prescrito. Um momento que se vivencia durante a leitura de um trecho, um parágrafo, um capítulo, a obra por completo pode descrever ou permitir uma reflexão mais apurada sobre o que se sente, se pensa e se faz no presente e fornecer uma chave para o futuro próximo.