Kafka ante a psicanálise, ante Max Brod

Franz Kafka — The Poet of Shame and Guilt
Saul Friedlander
Yale University Press
2013

 

“Talvez os judeus não tenham estragado o passado da Alemanha, mas é bastante possível concebê-los estragando o presente da Alemanha”, assinala Franz Kafka em uma carta ao amigo Max Brod, em maio de 1920. Poderiam ser palavras de um radical antissemita, em especial depois do papel dos líderes judeus na revolta comunista de um ano antes, o que aprofundou ainda mais um ódio de fundamento racial. Ou fruto de sarcasmo político diante da condição judaica, deteriorada desde o fim da primeira grande guerra, seis anos antes. No entanto, tal reflexão vinha de um judeu aclimatado e aculturado na tradição alemã e que viria a perder seus parentes mais próximos no Holocausto, duas décadas depois. Kafka se encontrava no meio desses polos históricos, demarcados pelas duas maiores guerras do século XX.

Conforme destaca em seu diário no fim da Primeira Guerra, o autor nada tinha a ver com os judeus. Mal tinha a ver consigo mesmo e já se dava por contente de ficar quieto num canto, contente só por poder respirar. Ou, em outro registro biográfico que nos permaneceu intacto até os dias atuais, desta vez em carta à amante Milena Jesenska, um mês depois da citada a Brod: “Eu poderia te censurar por ter em alta conta os judeus que você conhece (eu, inclusive) — há outros! —; na verdade às vezes eu gostaria de metê-los todos (eu, inclusive) dentro, digamos, de uma máquina de lavar. Em seguida eu esperaria um tempo e depois abriria a máquina bem pouquinho para ver se todos eles tinham se sufocado e, caso não, fecharia novamente e continuaria fazendo isso até o fim”.

Um poeta de sua própria desordem, como é constantemente referido na biografia escrita por Saul Friedlander — Kafka – The Poet of Shame and Guilt — e publicada pela Yale University Press em abril de 2013, ainda sem tradução no Brasil. A tese do professor Friedlander é a de que Kafka passou boa parte de sua curta vida em constante conflito com não apenas com a questão judaica, mas com sua própria sexualidade, com a família, com o pai e com a identidade alemã. Mais do que isso, o autor nos expõe uma questão que, embora não a reitere nem a aprofunde como devido, é de extrema importância para os estudos kafkianos ou para quem deseja melhor conhecer a sua biografia: o quanto de Kafka sabemos é fruto da edição de Max Brod, que foi, até a década de 1980, o responsável e o principal censor de toda a produção, biográfica e ficcional, de uma das grandes figuras literárias dos últimos séculos.

Nascido em Praga, tal qual Kafka, Friedlander é historiador especializado em Holocausto e professor emérito da UCLA, nos EUA. Quase a totalidade de sua produção acadêmica se dedica ao tema da barbárie nazista, embora tenha escrito, além deste Kafka (o único diretamente sobre literatura), outros livros com motivações afins a seu principal objeto de estudo. De 1978/9, temos o seu History and Psychoanalysis, que parte de modelos topológicos para explicar a história, no que considero tanto um movimento de empobrecimento da história como da psicanálise. E aqui Friedlander cai na mesma armadilha com Kafka.

Onde ele poderia esmiuçar melhor a relação entre Kafka e Brod, neste percurso histórico que comprometeu — e ainda compromete — boa parte da fortuna crítica do autor de A Metamorfose, Friedlander adota uma abordagem que se aproxima da psicanálise para interpretar diferentes eventos, reações e, o que considero pior, passagens das obras de ficção. O mesmo parece ocorrer com outra biografia recentemente lançada, esta com mais repercussão, em paralelo com um documentário cinematográfico; trata-se de Salinger, de David Shields e Shane Salerno — também de 2013. A profusão de leituras psicanalíticas no livro sobre Kafka não excede nem se compara às feitas por Shields/Salerno, porém não deixa de ser exagerada e, mais do que isso, é desta abordagem que Friedlander parte para chegar a algumas conclusões que não são nada mais além do que meras conjeturas de um terapeuta em início de carreira.

Logo em sua introdução, o autor nos diz que “Kafka’s fiction was but a more or less heavily disguised autobiography”. Podemos trocar o nome do autor no início da sentença e aplicá-la a torto e a direito. Não está certo. O uso do “more or less”, com o intuito de relativizar esse vazio disfarçado de máxima, só põe ainda mais em xeque a reflexão. Uma autobiografia mais ou menos disfarçada é o tipo de afirmação que deveria evitar-se em biografias, quanto mais em análise literária, o que, lamento, o autor se propõe também aqui. Porque é de um reducionismo que mistura obra e vida e compromete ambos.

Em outro trecho, mais adiante no livro, flagramos o autor em nova interpretação, quando faz o jogo entre a irmã real de Kafka e a irmã em A Metamorfose. Para o autor, o fato de haver no quarto de Gregor Samsa um recorte com uma mulher toda coberta de penugem, um símbolo de sexualidade feminina, desvela uma fantasia de incesto e castração que “supõe-se” que Kafka também teria com sua irmã real. Afinal, e muitas aspas em afinal, é a irmã de Samsa que, ao fim, em vez de defendê-lo contra o pai, é a primeira a querer livrar-se do corpo. O desejo de incesto e a consequente castração, marcada pela transformação horripilante do animal, são o mesmo na obra e na vida de Kafka. Por quê? Friedlander assim o quer, mas não fundamenta qualquer associação nem na vida do autor tampouco em sua obra.

Outra interessante relação que o autor se estende por boa parte do livro é a de Kafka com Max Brod. A partir de passagens de seus diários, Friedlander suspeita um homossexualismo e pedofilia em Kafka. No caso de Brod, é a maneira como Kafka se relaciona com ele que gera certa desconfiança. Em 2 de fevereiro de 1922, em passagem clássica de seu diário (pois foi o período em o autor começaria a escrever O Castelo), ele chama Brod de “meu pequeno B.”, celebra toda a inocência do amigo ao vestir suas meias de tal e tal jeito, e a maneira como fala. Muitas vezes, aliás, a maneira como Brod parece falar faz Kafka pensar que “ele quer voltar comigo pra casa hoje”. Tudo isto retirado de seu diário, que, Friedlander encara como um desejo homossexual que é castrado e nunca concretizado.

O que me faz lembrar bastante a discussão, que sequer deveria ser digna de uma aula de ginásio, sobre a suposta atração de Bentinho por Escobar, em Dom Casmurro. Há universidades que abordam o tema, há teses dedicadas ao tema. Por quê? Porque Bentinho, por exemplo, inveja o braço mais forte de Escobar, em comparação. Qualquer prognóstico de fundo psicanalítico não pode partir de fatos e situações isolados mencionados em uma única sessão com o terapeuta, em uma das premissas de Freud que parece ter sido, pelo menos no âmbito da crítica literária, mais desrespeitada.

Voltando a Brod, figura-central em tudo o que conhecemos de Kafka, aqui temos o que se sobressai de positivo na leitura desta obra. Porque Friedlander, apesar de psicanalista frustrado, é um pesquisador sério que foi atrás de suas fontes e não se baseou apenas no que temos de mais superficial sobre Kafka e sim recorreu às edições críticas alemãs lançadas no fim dos anos 1980 e no começo dos anos 1990 para comparar com a edição feita por Brod (em ficção, cartas e diários).

Friedlander acerta em comparar o original escrito por Kafka com as omissões e alterações propostas por Brod e que, infelizmente, até hoje são validadas como base da fortuna crítica. Quaisquer que tenham sido as motivações de Brod em alterar longas passagens dos diários e das cartas — e Friedlander, claro, se apressa em adivinhar os porquês da psique brodiana — o mérito da análise está em trazer luz ao texto original de Kafka. Os melhores e os mais recentes trabalhos acadêmicos sobre Kafka, em especial nos Estados Unidos e na Alemanha, consideram Brod um criminoso ao alterar tanto do que foi deixado de seu espólio. Não por tê-lo publicado (contra a vontade de Kafka), mas por tê-lo feito tal qual um censor, primeiro privado, preocupado com eventuais questões que poderiam tirar o autor tcheco de uma espécie de santidade literária, depois censor editorial, com alterações na ordem de períodos, paragráfos e até capítulos, como é o caso de Amerika, entre muitos outros.

Faltou a Friedlander distanciar-se mais desta lamentável tendência do gênero biográfico (de analisar o biografado com associações que não dão liga no imenso e complexo universo de Kafka) e valer-se deste verdadeiro tesouro que são as edições críticas, que dispensam a péssima interferência de Brod, para então aprofundar e enriquecer a crítica kafkiana. Friedlander, apesar da ótima apuração no material original de Kafka, adota a postura clássica do terapeuta mais ortodoxo, que, sentado atrás de seu objeto de trabalho no divã, só consegue ver a ponta de seu biografado.
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