As tocaias da poesia

O negócio é o seguinte: você sabe que há algo de podre no reino da poesia brasileira quando, de repente (mas nunca mais que de repente, como se seu aparecimento já fosse esperado e planejado, não por nós, meros mortais, mas por algo além da nossa compreensão, algo que chega para salvar, na última hora, a pureza essencial da língua-mãe), surge no eixo Rio-São Paulo – sim, porque eles já o conheciam, antes de nós – a obra assombrosa de um poeta originário do Pernambuco que, na falta de adjetivo melhor para expressar sua riqueza e complexidade, deve ser chamado de grande, ou, no mínimo, insubstituível.

Mas qual seria o motivo de tamanho espanto, para que tal diagnóstico seja anunciado aos quatro cantos deste país? É muito simples, leitor: qualquer leitura, por mais superficial que seja, de um verso de Alberto da Cunha Melo – o poeta que tentamos apresentar à nossa limitada sensibilidade – é a comprovação de que esta arte chamada poesia, que foi por aqui adulterada, pervertida e retirada do seu sentido mais profundo e transcendente nos últimos cinqüenta anos, continua sendo um dos únicos meios de uma pessoa perseverar sobre este mundo que, como já dizia Auden, “não é o lugar bonito que aparenta ser/ com sua pacífica e histórica calma”.

Não só o talento é evidente, mas também a mestria de uma técnica própria, de uma temperamento único, de uma clareza poética no seu modo de expressão, que, por isso, podemos afirmar que se trata de um acontecimento ímpar em nossa literatura; e que será visto pelos mandarins no eixo Rio-São Paulo como algo sem importância, ou, o que é o pior, passageiro. Seria cômico se não fosse trágico. Entretanto, classificar (e o verbo classificar é inserido aqui como o sintoma de uma doença que contaminou boa parte da cultura brasileira) tal fato como passageiro é a prova de que este país nunca foi um lugar sério e, conformado com a patética condição, prefere se esconder igual a um avestruz e não enfrentar as inevitáveis tocaias do Mal.

Tudo isso está presente em “Dois Caminhos e Uma Oração” (Ed. Girafa), livro que reúne três obras de poesia do pernambucano Alberto da Cunha Melo e que marcarão qualquer um que procura o retorno do sagrado em nossa língua. Elas têm os singelos títulos de “Meditação Sob Os Lajedos”, “Yacala” e “Oração Pelo Poema” e, sob sua aparente neutralidade, esconde-se uma reflexão implacável sobre o ser humano e sobre a única coisa que importa quando nos deparamos com o fim (eufemismo também singelo para morte): Será que a vida possui algum sentido?

Porque é justamente sobre este dilema que a poesia sempre expressou – a luta contra a ausência de sentido para que o Sentido finalmente vencesse. Se você se deparou com alguma obra de arte que não discorresse sobre essa questão central da existência – e da qual todas as outras giram em torno – então, meu amigo, ela não valeu a pena. (Humm, sua mente pensa em rodopios intermináveis de sinapses mal resolvidas, é bem capaz que cem por cento de tudo o que vi, li e ouvi nesses anos – inclusive os poemas dos irmãos Campos, os filmes do Glauber Rocha, os discos do Caetano Veloso e as instalações de Hélio Oiticica – entrem nessa categoria, hem?) E Alberto da Cunha Melo é um dos poucos, neste país acostumado em fugir desse problema, que tem a coragem de agarrá-lo pela garganta usando simplesmente os meios silenciosos do verso.

Contudo, as boas intenções não fazem diferença nenhuma se o poeta não possuir a forma correta de exprimi-las em uma linguagem compreensível. Os temas que Alberto da Cunha Melo aborda em seus poemas são de tamanha complexidade que, se ele não tivesse a expressão exata, seria apenas mais um caso de “mamãe, eu quero ser Arnaldo Antunes”. Em outras palavras: uma poesia estéril, voltada para o umbigo, escrita numa linguagem em que a única concretude possível é a do hospício. O grande Guiseppe Ungaretti explicita o dilema do fazer poético como poucos neste trecho do seu ensaio “Ponto de Mira”:

“A primeira tarefa do artista é esclarecer seu pensamento. (…) Os dois pólos do tormento artístico, agora já na opinião de todos, são a sensação e a expressão. Mas entre um e outro há uma escala de elaboração, e é muitas vezes uma subida muito árdua. Imaginemos o jogo da maneira mais fácil – e não creio afastar-me demais da realidade -, suponhamos que a sensação mova os afetos do coração ou da mente, ou do coração e da mente: deveremos esperar uma conversão, ou seja, que a sensação se tenha tornado uma idéia autônoma, definida, nítida, antes de buscar as palavras mais estritamente adequadas a esta idéia. Tudo isto, inclusive a expressão feliz, pode ocorrer repentinamente, em casos que foram ditos “iluminações”, e em casos de força de hábito, de consumado ofício. Mas muitas vezes entre um grau e outro intercorre um tempo mais ou menos longo. Para passar da idéia às palavras que a contenham plenamente, coisa aliás muito problemática, e que mostrem todas as suas mais leves nuanças, é preciso às vezes um tempo longuíssimo”.

O trecho é longo, mas esclarecedor, porque aponta o assombro que provoca uma primeira leitura da obra de Alberto da Cunha Melo. É o assombro de uma obra que não foi feita em ciclos de palestras realizadas para agradar uma determinada patota. É uma obra que não precisou de manifestos estéticos, nem de politicagens acadêmicas. Ela foi elaborada lentamente, com o tempo conquistando o próprio tempo, vazando cada suspiro na palavra medida, na métrica precisa e no ritmo marcante. Cada poema marca a trajetória de um homem que usou a si próprio como vítima de uma tocaia maior, a da poesia que se alimenta do silêncio e do isolamento para persistir na verdadeira função da grande arte – a de recuperar a fagulha de sagrado que existe em todos nós.

Podemos sentir essa procura pela exatidão poética de um determinado sentimento – como, por exemplo, o da incomunicabilidade – nesta jóia cristalina que é “Casa Vazia”, retirado de “Meditação Sob Os Lajedos”:

Poema nenhum, nunca mais,
Será um acontecimento:
Escrevemos cada vez mais
Para um mundo cada vez menos,

Para esse público dos ermos
Composto apenas de nós mesmos

Uns jõoes batistas a pregar
Para as dobras de suas túnicas
Seu deserto particular,

Ou cães latindo, noite e dia,
Dentro de uma casa vazia.

Ou o pressentimento de que a maldade permeia cada detalhe deste mundo em “Tocaias do Mal”:

Devasta sempre devagar,
Como quem está construindo,
Como a noite recolhe o último
Resto de réstia em dia findo,

Sempre sem pressa se derrama,
Onda arrastando-se, de lama,

Para as cisternas, os baixios
Daquelas almas sem socorro,
Onde o amor deixa seu vazio

Que hospedará, neste verão,
O Mal e sua legião.

O silêncio, o exílio e a astúcia usados para este artesanato da palavra atingem um ápice visionário com “Yacala” (palavra quicongolesa para “homem”), um ciclone de ritmo, forma e conteúdo em que o leitor tem a possibilidade de vivenciar um inferno interior que somente um poeta da estirpe de um Baudelaire realizaria. Isso não significa, apesar de seu final brutal, que Alberto da Cunha Melo seja um niilista. Ao contrário: é um artista que sabe perfeitamente quais são os meandros e as conseqüências morais que implicam a escolha pelo “mundo-como-Idéia” (expressão lapidar de Bruno Tolentino) e que resultam em nada mais, nada menos naquela morte do espírito em que só os cadáveres e as pedras encontrarão alguma felicidade.

Mas não pense que este desespero de ecos kierkegaardianos é um modo fashion de fazer poesia, uma atitude fútil de épater le bourgeois, de fazer polêmica pelo simples prazer de fazer polêmica – as ações comuns ao círculo de pseudo-artistas que infestam nosso caldinho cultural. Alberto da Cunha Melo escreve sobre esses tormentos porque sente, como poucos, o aguilhão na carne, o famoso “drama da razão” entre o sentimento e a expressividade deste sentimento, entre a dificuldade de fazer o bem e a facilidade de provocar o mal, entre a fuga de uma realidade que termina em morte e a permanência de um mundo ainda intocado. Estes abismos do ser deixam qualquer um insano, como é o caso de Yacala Cosmo, homem como todos nós, obcecado pelos cálculos de uma estrela-guia e insensível ao sofrimento de sua própria morte, à caridade sensual da negra Adriana e à amizade de Mestre Bai. E, ao escolher uma vida de morte ao invés da morte na vida (porque esta é a única forma de viver realmente), o poeta pernambucano parece nos avisar, através da voragem que possui Yacala, nenhum outro final possível senão a ausência de sentido surgindo de maneira absurda e estúpida.

Entretanto, Alberto da Cunha Melo dá a prova que acredita numa afirmação do Sentido em “Oração Pelo Poema”, verdadeira profissão-de-fé em que, ao refletir sobre a dificuldade do fazer poético, mostra que é possível, graças à abertura ao mistério da existência, que o artista alcance o Absoluto do qual foi incansável perseguidor e que sempre foi protegido pelas silenciosas e eficazes tocaias da poesia. E, apesar das ciladas do mundo, a pureza da palavra é a única que pode reerguer a pureza da alma, pois, como diria Ungaretti, “a missão da poesia reafirma sempre a integridade, a autonomia e a dignidade da pessoa humana”. Algo que, sem dúvida, precisamos reaprender a conquistar e que Alberto da Cunha Melo foi um que nos ajudou a dar os primeiros passos.

5 comentários em “As tocaias da poesia

  1. Meu caro,

    Concordo com você, no que respeita ao diagnóstico de certa poesia brasileira. O problema do ACM, porém, é que as sombras de Cabral e Drummond são muito fortes, na sua poesia — ele não matou esses pais simbólicos, digamos, para lembrar o fanfarrão Bloom. Em suma: o eco deles às vezes emudece a sua própria voz. Ainda assim, é um grande poeta, sem dúvida — a despeito da horrosíssima edição da Girafa.

  2. Pingback: Links - O Camponês

  3. Leiam aquelas entrevistas polemicas dadas pelo o Bruno Tolentino… nelas ele havia citado Alberto Cunha Melo

    Lembro até do verso: “Viver, simplesmente viver… meu cão faz isso muito bem…

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