Asserções normativas

Gostaria, quase que como um exercício, de discutir a tese do meu amigo e colega colunista Joel Pinheiro sustentada numa  discussão sua com o luso Filipe Faria publicada no blog Ad Hominem (§ 2). Trata-se da seguinte proposição:

(1) É impossível derivar qualquer juízo normativo de afirmações positivas sobre os costumes ou a biologia humanos.

O problema é bastante antigo em ética.

Antes, gostaria de fazer pequenos reparos. Em primeiro lugar, parece-me que possa ser inconveniente ou incorreto, mas não impossível, derivar uma proposição (normativa ou, como manda a cartilha, alética) de outra qualquer. É muito polêmica a afirmação da necessidade absoluta das regras da lógica, embora eu tenda a concordar com ela; mas se as encaramos como regras de um jogo, não me parece impossível que possam ser mudadas (as experiências do lógico russo N. A. Vasíliev no início do século passado e as relativamente recentes, e bem sucedidas, investigações do nosso filósofo Newton da Costa mostrariam que isso é possível). Eu reformularia a tese assim:

(2) É incorreto derivar um juízo normativo de afirmações positivas sobre os costumes ou a biologia humanos.

O que demanda, ainda, outro reparo: as expressões “juízo normativo” e “afirmação positiva”, menos precisas (o que é perdoável, em se tratando de um post), podem ser traduzidas como “asserção _____”:

(3) É inconveniente derivar uma asserção normativa de uma asserção fática sobre costumes ou a biologia humanos.

Henri Poincaré observou, aparentemente — mostrarei que não é assim — de acordo com (3), em La Morale et la Science (1913), que se as premissas estão todas no modo indicativo, então a conclusão não deve estar no imperativo. (Note que essa própria formulação viola a regra que ela própria estabelece: “se as premissas estão todas no modo indicativo” — premissa no modo indicativo –, “a conclusão não deve estar no imperativo” — conclusão no modo imperativo, “não esteja a conclusão no imperativo!”.)  Para compor-se validamente um juízo imperativo, é preciso ao menos que uma das premissas estejam no imperativo. Como no exemplo de Jörg Hansen:

(4) Sustente os seus pais aposentados! Só posso sustentar os meus pais aposentados se roubar alguém. Logo, roube alguém!

Assim, as asserções consuetudinárias (os costumes) passam nesse teste de Poincaré, uma vez que os costumes podem ser formulados no imperativo. O silogismo (4) acima pode ser visto como um exemplo disso: do costume de sustentar os pais eu derivaria a necessidade de obter dinheiro, e se só posso obter dinheiro roubando, devo roubar. A condição formal em jogo é que cumprir um imperativo implica cumprir aquilo que lhe é necessário. Obviamente, num corpo normativo coerente e de acordo com nossa sensibilidade moral, a condição de que o necessário para cumprir um imperativo válido não inclua ações ilícitas (como roubar) deveria ser incluída nas exigências; isso não é difícil de formular filosoficamente, já que roubar contraria outro imperativo (não roube!) a ser levado em consideração, supõe-se, pelo agente.

Mas e as asserções biológicas ou naturais?

Pensemos antes no caso dos artefatos produzidos pelo homem. O modo como um relógio é feito determina como ele deve ser usado? Eu penso que sim. O imperativo “não atrase aleatoriamente o relógio!” poderia ser derivado da asserção “o relógio funciona bem se está de acertado”. Repare no advérbio bem. Uma das funções principais dele é indicar um modo; isso qualquer estudante amador da língua e, eu diria, qualquer observador da realidade das coisas sabe. Um relógio funciona se está fora de qualquer fuso horário (eu posso inclusive acertá-lo de acordo com o fuso horário de Moscou, se quiser viver como um moscovita), mas funciona mal. Qual o uso de um relógio em desconformidade com o horário vigente? Esse horário foi fixado por costume. Daí a premissa implícita, que torna o raciocínio cumpridor da exigência de Poincaré:

(5) [Todo relógio deve estar acertado, se queremos que funcione bem]. Este relógio não está acertado, e eu quero que funcione bem. O relógio não estar acertado é incompatível com o funcionar bem. Logo, acerte o relógio!

Afora detalhes técnicos que não vamos fornecer, o raciocínio funciona, intuitivamente, muito bem, apesar das objeções teóricas que possamos fazer. (Por exemplo: usar cinquenta relógios amarrados uns aos outros para escapar de um cativeiro seria algo lícito, considerando a natureza do relógio? Lícito, apesar de heterodoxo, deve ser. Mas o pior de tudo é que esse uso pode ser justificado praticamente, funcionalmente. Só a possibilidade desse fato já nos coloca diante de alguns problemas.) Fazemos uso dele constantemente. Se funciona, na prática, para artefatos, o que dizer dos entes da natureza? A natureza de um ser biológico determina certas ações?

Vamos usar o mesmo caso do nepotismo. Definamos mais estritamente nepotismo como a ação de um agente público de investir em um cargo público um parente, exclusivamente porque o investido é parente. Esse ato poderia ser proibido ou obrigado com base em uma nota biológica do ser humano? Vejamos:

(6.1) O homem pratica o nepotismo por natureza. O nepotismo é bom. [O homem deve ser bom = O homem deve praticar atos fundados em tendências da sua natureza]. Logo, pratique o nepotismo!

(6.2) O homem pratica o nepotismo em virtude de sua natureza má. [O homem deve ser bom = O homem deve se abster de praticar atos fundados em tendências más da sua natureza]. Logo, se abstenha de praticar o nepotismo!

Veja que o problema aqui, para todos os efeitos, é a existência de duas apreciações morais diferentes sobre o nepotismo, aqui simplificadas. Em (6.1), o nepotismo é bom; em (6.2) ele não é bom. A premissa entre [ ] é a premissa implícita de que precisamos para, de acordo com a exigência de Poincaré, derivar uma conclusão no imperativo. As concepções de moral divergentes são premissas de fato (expostas logo acima), embora contaminadas por noções normativas.

Há muitos quilômetros de discussão meticulosa aqui; vou me abster de colocar o carro na estrada. Vamos apenas explicar nossa conclusão sobre a tese central formulada pelo Joel:

(3) É incorreto derivar uma asserção normativa de uma asserção fática sobre costumes ou a biologia humanos.

Creio que a tese não se sustenta, como demonstrado acima.

Não vejo como seria incorreto, e muito menos impossível, levar a cabo esse tipo de derivação. O caso mais problemático das asserções fáticas sobre biologia mostra que, com a existência de premissas normativas implícitas e praticamente inseparáveis das fáticas (a separação, pensamos, é feita para efeitos analíticos), todas no imperativo, é possível derivar asserções normativas — normalmente isso é feito com o uso de advérbios absolutos, como bem e mal. Concepções morais podem estar erradas, em última instância, mas as conclusões tomadas a partir delas são tecnicamente corretas, mesmo que não sejam verdades lógicas formais ou sejam contra-intuitivas. O expediente das premissas implícitas é, além de corrente, inevitável; não logramos prescindir dos juízos morais (ou mesmo práticos, como em (5) acima). Isso não significa que eu discorde, substancialmente, do Joel. A ideia foi apenas esclarecer alguns pontos.

4 comentários em “Asserções normativas

  1. Julio,

    Dois pontos não ficaram claros para mim. Gostaria que, se possível, você os comentasse.

    Em primeiro lugar, sua afirmação de que Poincaré viola sua própria regra no momento em que a formula. O raciocínio de Poincaré não é da forma “se as premissas estão no modo indicativo, a conclusão DEVE estar no indicativo”, mas sim da forma “se as premissas estão na modo indicativo, a conclusão estará no modo indicativo”. Ou estou errado? Se a segunda formulação estiver correta, ela não viola a própria regra, já que de premissas no indicativo não deduziu nenhuma conclusão imperativa (ou normativa, como queira).

    Em segundo lugar, sua afirmação de que as asserções consuetudinárias (uma expressão que me pareceu estranha) passam no teste de Poincaré pois os costumes podem ser formulados no imperativo. A partir dessa afirmação você sugere ser possível “do costume de sustentar os pais” derivar a “necessidade de obter dinheiro”. Mas essa raciocínio também me parece problemático. Pois o costume só pode ser colocado no imperativo por quem o aceite ‘do ponto de vista interno’, i.e., para quem o considere normativo. Isso implica uma premissa adicional ao raciocínio (de que “devemos seguir os costumes”, ou algo do tipo).

    Ademais, a simples existência de um costume pode ser constatada de um ‘ponto de vista externo’, como regularidades observáveis de comportamento, e, portanto, não permite a derivação que você julga ser permitida. Assim, que exista o costume de sustentar os pais – uma asserção fática – não se segue que se deva sustentá-los – uma asserção normativa – a menos que acrescentemos a premissa de que ‘os costumes são normativos para aqueles que os aceitam’. E, ainda assim, a conclusão não seria propriamente normativa, mas antes fática: afirmaria que “existe um x que considera obrigatório (ou normativo) o costume p”. Não há nenhuma inferência normativa a partir de asserções factuais nesse caso. Ou há?

    Um abraço do
    Horácio

  2. Horácio, em primeiro lugar obrigado pelos comentários oportunos. Vamos lá:

    1) Passar o requisito de Poincaré para a forma descritiva é uma possiblidade; é chamado de ‘truque de Dubislav’ na discussão padrão sobre lógica de imperativos, em homenagem ao lógico W. Dubislav (veja aqui, em Zur Unbegründbarkeit der Forderungssätze, Theoria 3 (1938), pp. 330–342). Você transforma facilmente um raciocínio contendo imperativos em um contendo apenas premissas ou conclusões descritivas; basta que descreva o estado de fato que obterá se o comando for obedecido. Foi o que você fez. “A conclusão estará no modo indicativo” é a descrição do estado de fato que obtém quando o imperativo “a conclusão deve estar no modo indicativo!” é cumprido. É um bom truque — ele é chamado assim na literatura –, mas não sei se isso resolve o problema. Porque na prática nem sempre o comando de Poincaré é obedecido. Assim, a formulação mais direta é a que eu deixei no texto: “se as premissas estão no modo indicativo, a conclusão DEVE estar no indicativo”. Isso está quase que textualmente em Poincaré.

    2) Todo costume opera em primeiro lugar no modo imperativo. Um costume não é uma descrição; eu posso descrevê-lo, mas todo costume, por ser costume, é um dever hipotético. Aqui no Brasil, por motivos obscuros mas compreensíveis, não devemos ultrapassar pela direita. Isso foi positivado no CTB posteriormente. Quando percebemos o fato, percebemos uma norma, e não uma simples descrição que não vincula ninguém. Quando alguém diz: “Aqui no Brasil, se ultrapassa pela esquerda”, não está fazendo uma simples descrição; é um comportamento desejado pelo costume-dever. Se for uma descrição, ou um fato puro, isso reforça ainda mais a tese de que as inferências do fático ao normativo não só não são impossíveis: são corretas. Do costume de sustentar os pais, eu disse, surge a necessidade, para quem aceita esse costume, de obter dinheiro; é uma necessidade prática. Por isso a formulação: para observar um comando, devo também observar aquilo que é suposto por ele. Não posso sustentar ninguém sem dinheiro; logo, se aceito o costume, devo procurar dinheiro (suposto que não o tenho).

    3) “Ademais, a simples existência de um costume pode ser constatada de um ‘ponto de vista externo’, como regularidades observáveis de comportamento, e, portanto, não permite a derivação que você julga ser permitida”. Mas é lógico que permite a derivação! Uma regularidade observada é usada como fundamento para a instituição, ou formação natural, de um costume. Ele pode ser ilícito, até; mas é um costume, e por isso tem força virtual normativa. Não estou dizendo que devamos aceitar os costumes; eu sequer entrei nesse mérito. Meu objetivo era mostrar que, como muitos fatos só analiticamente se podem desvincular das asserções normativas baseadas neles, é falsa a tese de que não podemos derivar normas de fatos: não só fazemos isso o tempo todo, como a lógica mostra que, com a presença de premissas implícitas normativas, é correto fazer essas inferências. Perceba que, ao aceitar como absolutamente verdadeira a tese (3), transformamos a ética em um exercício puramente positivista (e mesmo que sejamos positivistas, ainda precisamos fundamentar logicamente o uso de imperativos, penso eu) e sem fundamento racional.

    Eu não usei esse argumento, mas aí vai: ao passar da lógica material presente em muitos dos nossos argumentos (por exemplo, juízos analíticos) à lógica formal, quase sempre fazemos uso de premissas implícitas, em expediente análogo a esse que indiquei acima. Se A é casado (c(A)), A não é solteiro(~s(A)). Ora, o que me permite concluir, de c(A), ~s(A)? A lógica formal só permite, por exemplo, concluir que, se A é casado, A é casado ou solteiro (esse raciocínio é necessário, a priori, absoluto, válido, etc, em qualquer universo, conservada a interpretação usual do conectivo “ou”, v). O que permite passar de c(A) para ~s(A) é uma premissa implícita: se c(A), e c(A) -> ~s(A), então ~s(A). Basta usar uma regra usual de inferência, o modus ponens. A premissa implícita esta ali: c(A) -> ~s(A), ou seja, ser casado implica ser não-solteiro. Analogamente, basta observar a existência de uma premissa implícita, como no caso do relógio ou do nepotismo, para transformar um fato em uma norma.

    Um abraço!

  3. Deu no Caderno Mais: “Through the Rythm of Moving Slowly. O camaleônico filósofo cético-agnóstico Julio Lemos assume o temível desafio de descobrir pelo menos três verdades logicamente irrefutáveis até 2.050.

  4. Cristóvam: em qualquer site de cultura ou filosofia, idealmente as pessoas costumam discutir os temas, procurando fugir o máximo possível da caricatura de engraçadinho brasileiro que nunca leu um livro. É o que se pretende aqui. Além do mais, só as verdades lógicas são irrefutáveis; se você discorda disso — o provável é que nem saiba do que está falando — o melhor é, seguindo o exemplo da lenda de Diógenes, meter-se dentro de um barril e ficar de bico fechado. Regards!

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>